Enéas Athanázio
UM LADRÃO PREGUIÇOSO
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A criatividade do escritor belga Georges Simenon
(1903/1989) era ilimitada. Entre seus inúmeros personagens, Jules Maigret,
comissário da polícia judiciária francesa, tornou-se, sem dúvida, o mais
famoso, destacando-se como um dos maiores detetives da literatura universal,
ao lado de Sherlock Holmes, Hércule Poirot e raros outros.
Simenon
produziu mais de 200 romances (75 deles tendo Maigret como figura central),
155 contos (30 com Maigret) e cerca de 25 textos memorialistas, sem falar nos
incontáveis trabalhos publicados apenas na imprensa. Suas memórias são a parte
controversa dessa obra abundante, uma vez que nem sempre os fatos narrados se
amparam na realidade. Nelas parece ter interferido um pouco o lado
“imaginativo” do escritor. Seja como for, Simenon foi dos mais férteis
escritores da literatura francesa, dono de prodigiosa imaginação e não menos
admirável capacidade de trabalho. Relatam seus biógrafos que, quando escrevia,
permanecia recluso em casa, fechado num escritório, levando apenas o cachimbo
e o guia telefônico, do qual se valia para extrair nomes de personagens.
Quando baixava nele o “animus scribendi” não recebia nem o papa e até seu
editor brasileiro deu com a cara na porta quando o procurou numa dessas
ocasiões. Na sua concepção, romance não deveria ser muito longo, permitindo
que fosse lido de uma só vez, não decaindo assim a tensão psicológica
inspirada pelo texto em sucessivas interrupções. Apesar de seu enorme sucesso
mundial, na vida privada Simenon foi marcado pela tragédia e vários fatos
graves obscureceram sua trajetória. Viveu os últimos anos trancado em casa,
recluso entre suas paredes, e só raramente se mostrava em público.
Entre as mais interessantes investigações do célebre comissário está “Maigret
e o ladrão preguiçoso” (L&PM Pocket – P. Alegre – 2009), que foi lançado no
ano que passou, em tradução de Paulo Nunes. É o relato de um dos mais
engenhosos casos que o comissário resolve, ainda que não fosse de sua
atribuição, para concluir, de maneira fatalista, que nada aconteceria diante
da absoluta fragilidade da prova indiciária existente. Em paralelo, como se
fosse assunto secundário, também é desvendado o caso principal, aquele a que a
cúpula policial dedicava o maior empenho. O ladrão, porém, foi encontrado
morto em local e circunstâncias estranhas, insinuando-se que se tratava de
mero “acerto de contas”, conclusão que o faro policial de Maigret repeliu de
pronto. É que o ladrão estava acima de qualquer suspeita, nem a mãe e a mulher
com quem vivia imaginariam que exercia semelhante atividade. Homem tranquilo,
sempre calmo e sereno, bem trajado e limpo, parecia um burocrata bem
comportado, ainda que seus meios de vida fossem ignorados. Mas a dura
realidade, que a todos espantou, revelou um ladrão ardiloso, dotado de
inteligência invulgar e paciência beneditina, sempre disposto a observar com
atenção a futura vítima antes de desferir o golpe. Jamais assaltava casas
desocupadas, invadindo-as na calada da noite, como que desafiando as próprias
vítimas, até que cometeu uma falha, talvez pequena, e que lhe foi fatal. Sua
própria mãe, quando investigada, declarou que tinha certeza de que seu filho
não a deixaria desamparada, como de fato aconteceu. Essas as linhas gerais da
história, além das quais não me arrisco a avançar sob pena de retirar do
leitor o prazer da surpresa.
Como, porém, o ladrão resguardou o futuro
da mãe, velha e doente? Bem, esse detalhe Maigret sugere, mas não o revela por
inteiro. Afinal, é preciso deixar algo à imaginação do leitor.
(06 de março/2010) CooJornal no 674
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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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