Para
Aluysio Mendonça
Sampaio, in memoriam
Manoel Cardoso
Santo Souza
Wagner Ribeiro
Ilma Fontes
Ítalo Cardoso Fiscina
bons amigos sergipanos
Integrando o ciclo
cacaureiro, iniciado com “Cacau” e seguido por “Terras do Sem Fim”, “São
Jorge dos Ilhéus” e “Gabriela, Cravo e Canela”, o romance “Tocaia Grande”,
de Jorge Amado, é um dos pontos mais elevados de sua obra romancística.
Segundo Antônio Houaiss, esse romance denso e volumoso é “sua obra de
mestre e por excelência crescente.” E de fato, neste livro, escrito de déu
em déu, segundo o autor, ele se revela em sua plena maturidade, escrevendo
com a liberdade própria de quem dominou a técnica, exercitando a
imaginação, a criatividade sem limites, as experimentações e o humor como
nunca o fizera antes.
Mesmo sendo obra de
ficção, “Tocaia Grande” contém um fundo de verdade histórica, embora não
seja um romance histórico no rigor da palavra. O próprio autor sugere
isso em trecho de suas memórias transcrito no intróito (p. VII). Ele
retrata a luta de um resumido grupo de pessoas para criar uma cidade na
zona do cacau, no sul da Bahia, desde seu aparecimento, marcado pela
violenta tocaia que lhe deu nome e acabou com a guerra pela posse da terra
entre os coronéis que dominavam a região, narrando seus avanços e
tropeços, vitórias e derrotas, não faltando a enchente que quase tudo
destruiu, a febre sem nome que matava até macaco, aumentando num repente a
população do campo santo e, por fim, a chegada da fé e da lei,
acompanhadas da violência e do obscurantismo, assumindo as rédeas da
povoação depois que tudo havia sido implantado com extraordinário esforço
e coragem. É uma história em tudo semelhante ao que aconteceu – mutatis
mutandis – no surgimento de cidades em regiões canavieiras, cafeeiras
ou ervateiras em diferentes pontos do país. A luta ingente de figuras
anônimas, lideradas por personagens como o “turco” Fadul Abdala, o “seu”
Fadu, o imponente negro Castor Abduim da Assunção, vulto Tição, misto de
ferreiro e feiticeiro, a esquelética Siá Jacinta Coroca, ex-mulher-dama e
que depois assumiu o conceituado ofício de parteira, por motivo de pura
força maior, e “segurou” incontáveis crianças, o capitão Natário da
Fonseca e o coronel Boaventura Andrade, ligados pela confiança, a amizade
e a gratidão pelos serviços prestados, os dois maiorais, aquele do povoado
e este da região, e que tudo perdem quando são atacados sem piedade em
nome da ordem e da moralidade que, na verdade, esconde a cobiça e a
ambição dos poderosos. Tudo por artimanha da política e da justiça, de
mãos dadas, porque “assunto mais traiçoeiro do que a política só mesmo a
justiça” – como ponderava o coronel (p. 104).
Aninhada no vale do rio
de águas límpidas e ricas em pescado, Tocaia Grande começou como simples
ponto e pernoite de tropeiros de burros e cargueiros de cacau, um lugar
perdido na mata e isolado do mundo. O panorama bonito atraía à primeira
vista e ali Natário da Fonseca ergueria a morada definitiva, no alto da
colina, qual um Pinheiro Machado provinciano se instalando em seu Morro da
Graça. Isso depois que levantou o dedo do gatilho, encerrando a jagunçagem,
quando subia pelos ares a fumaça da bem sucedida tocaia. Em troca, como
recompensa, recebeu a patente de capitão e um trato de terras suficiente
para lhe dar a alforria de todo e qualquer patrão. Além de sua casa, foram
surgindo construções: o armazém do “turco”, a ferraria de Tição, o
barracão para pernoite dos viajeiros, o depósito de cacau seco, casebres
de taipa e de palha a se espalharem pelas ruas da frente e de trás. Ali
vivia um povo pobre, sem maiores ambições, tranqüilo e amigo. Um por todos
e todos por um, ajudavam-se como podiam e viviam em paz. Amavam, sofriam,
adoeciam, nasciam e morriam – como em toda parte. Festejavam São João,
realizavam as cheganças comandadas por Coroca, divertiam-se em bailes,
dançarás, reisados, festas e quadrilhas pontuadas por Tição. Deram início
à feira popular. local de encontros, namoros e converseios. Mas não havia
igreja e padre, nem cartório e juiz de paz, mesmo porque dispensáveis. Os
casais se ajuntavam, os nascidos se batizavam em casa, os mortos eram
encomendados por experientes rezadeiras sem necessidade de papel algum. E
o arruado lamacento virou povoado, depois arraial e vila, e um dia seria
cidade. Aos olhos da lei e dos padres, porém, era a “cidadela do pecado e
o couto dos bandidos” (p. 487). E isso foi sua tragédia e perdição.
Mas vai que um dia,
quando o capitão Natário da Fonseca rumava para a Fazenda da Atalaia,
encontrou uma família de retirantes. Aí tem início a saga dos sergipanos
no país grapiúna.
Esqueléticos e famintos,
caminham sem rumo pela mata inceira. Trazem nas faces as marcas do
infortúnio e os sinais do desespero. Penalizado, o antigo jagunço sofrena
a mula e puxa prosa.
- Sergipanos? – indaga.
- Inhô, sim! – responde
o mais idoso.
- Uma família só?
- Inhô, sim! Tudo é
parente.
- Tão vindo de onde?
- Tamos chegando de
perto de Maroim. Mecê já ouviu falar? (p. 214).
São filhos de Sergipe
Del Rey que trabalhavam às meias e foram expulsos da terra porque o patrão
necessitava de espaço para o gado e a cana. Toando ao léu, saíram pelo
mundo em busca de algo que parecia impossível e vão bater no sul da Bahia,
onde os frutos amarelos brilhavam como o ouro que valiam. Tocaia Grande
carecia de braços e Natário para lá os endereçou. Sergipano como eles,
nascido e criado em Propriá, seguiu satisfeito em sua jornada solitária.
Orientados pelo “turco”
Fadul, os retirantes se instalam em terras para lá do rio, devolutas, sem
dono e ocupação. Mourejando no cabo da foice e do machado, abrem clareira
no matagal virgem e iniciam as plantações: mandioca, milho, feijão,
hortaliças. Muito em breve Tocaia Grande consumiria o alimento de seu
próprio chão. Erguem a casa de farinha, o rancho tosco onde se abrigam
da intempérie e caem no serviço duro e sem trégua. Criam porcos, cabras,
galinhas. São hábeis no manuseio das ferramentas. Em pouco se impõem pela
seriedade, caráter, espírito comunitário. O embrião da primeira feira
livre, onde expunham seus produtos e animais domésticos, trazidos em canoa
do outro lado do rio, foi de sua iniciativa. Coroca, a primeira parteira,
era da família. Também o pontilhão sobre o rio, construído em
madeira-de-lei, e que resistiu à maior enchente, foi obra deles.
- Gente trabalhadeira! –
era a voz geral.
Em breve outros
sergipanos começam a chegar. Estes provêm de Estância, terra de Gilberto
Amado e do próprio coronel Boaventura, desembarcados em Ilhéus. E os
sergipanos decididos contribuem em várias frentes, produzindo de um tudo e
aumentando a população, que as estancianas são de bom parir (p. 341). A
vila prospera, atraindo o olho gordo dos ambiciosos e malandros.
Trabalhando sem cansaço, buscando diversão nas coisas simples, vibrando
com as conquistas e sofrendo nas derrotas, eles de integram à comunidade
nascente. Com ela padecem as doenças, submergem nas enchentes, vivem a
angústia das crises e também morrem nos ataques violentos. Mas sua marca
fica registrada para sempre e nada a apagará da história quando Tocaia
Grande, depois de virada a face obscura, exibir a face luminosa e se
tornar a orgulhosa cidade de Irisópolis, com igreja, juiz, vigário,
intendente e até clube literário.
(23 de janeiro/2010)
CooJornal no 668