19/12/2009
Ano 13 - Número 663
ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio
PASSEIO PELA “REVISTA DA AML”
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Recebendo com regularidade a “Revista da Academia Mineira de Letras”, não
me furto a alguns comentários sobre o seu mais recente número (Vol. XXXI),
que acabo de examinar com interesse. Não podendo, mesmo a contragosto,
abordar tudo que foi publicado, sou forçado a eleger alguns trabalhos em
detrimento de outros, ainda que lamentando a forçosa omissão. Anoto que a
“Revista” está em seu 82o. ano de circulação, sendo assim, - creio eu, -
uma das publicações acadêmicas mais antigas do País, se não a mais antiga.
A Academia Mineira é a quinta mais antiga do Brasil, precedida apenas
pelas do Pará, Maranhão, Piauí e Ceará. Dessas cinco, tenho o prazer de
ter sido designado sócio-correspondente de duas: Piauí e Minas. Mas
voltemos à “Revista.”
Folheando o volume, não tardo a encontrar artigo de autoria do Prof. Fábio
Lucas denominado “A volta de Rosário Fusco”, onde o consagrado crítico
saúda a publicação do romance “A. S. A. - Associação dos Solitário
Anônimos”, de autoria de Rosário Fusco (1910/1977), homem de forte
personalidade, adepto consumado do surrealismo e figura importante das
letras nacionais, tendo introduzido Kafka na literatura brasileira.
Segundo o crítico, “Fusco foi múltiplo, irreverente e complexo. Ensaísta,
poeta, tradutor, dramaturgo e ficcionista.” Esquecido, como tantos outros
brasileiros, “hibernando na consciência literária”, o lançamento do
importante livro (Editora Giordano – S. Paulo – 2001) vem tirá-lo do
ostracismo, colocando nas mãos dos leitores essa obra que é “narrativa de
veloz andamento, polifacetada, partilhada de contradições, desobediente à
lógica...uma vertiginosa experiência.” Por tudo isso, “A. S. A” merece
efusivas saudações, tanto que já o comentei nesta mesma coluna,
juntando-me às vozes que entoaram a acolhida do notável romance. Fábio
Lucas comenta ainda o “Livro Aberto”, de Fernando Sabino, que considera
“um texto capital na obra do escritor mineiro.”
Detenho-me, em seguida, no ensaio “O naufrágio de um galeão”, de autoria
de Octávio Mello Alvarenga, comemorando o centenário de Pedro Nava (2003).
O excelente trabalho focaliza diversas facetas da personalidade e da obra
do memorialista maior, enriquecendo-a com criativas e humoradas
observações do autor. Lembra que a obra de Nava foi escrita na idade
madura, aponta as influências da profissão médica, traça paralelos com
Guimarães Rosa, a trilha da cronologia por ele seguida, episódios de sua
vida e a sua presença marcante em nossas letras. Recorda passagens
curiosas, como a “corda do morto” que estava roubando a clientela do Dr.
Egon, alter-ego do escritor, e o fato algo chocante de que D. Nieta, com
quem fôra casado por trinta e cinco anos, “permitiu que fosse parar grande
parte da biblioteca de Nava”, inclusive obras autografadas, num “sebo”
carioca. Fechando o ensaio, transcreve trechos de declarações de Nava,
entre elas a de que a ficção se intrometia entre seus dedos, interrompendo
a narrativa memorialista, e levando-o a enveredar pelos caminhos da
imaginação. (Assim também acontecia com Monteiro Lobato.) Confessa que o
homem que mais o honrou ao conhecer foi Lima Barreto, cuja mão apertou,
embora ele estivesse muito bêbado. “Lima Barreto era carioca e o mais
brasileiro de todos esses que acabamos de mencionar, inclusive
literariamente.” (Foi o que também afirmou Agripino Grieco.) Concluindo,
uma nota pessimista, ou realista: “De piora em piora, eu vi o Brasil cair
até a situação em que está hoje. É um país pelintra, caloteiro, sem saída,
à beira do caos, e, no entanto, ninguém percebe isso... Eu nunca assisti
nos meus oitenta anos a outra coisa a não ser violência dentro do Brasil.
Hoje eu tenho pânico. Sinto terror. Todo mundo está aterrorizado... A
consciência da condição humana faz o homem infeliz. Eu nunca fui feliz...”
Trocando pernas, encontro “As diversas vidas de Rotílio Manduca”, ensaio
de Marco Antônio de Sales Coelho, em que aborda novos aspectos da
inesgotável obra de Guimarães Rosa e desvenda a personalidade que serviu
de modelo ao temível Zé Bebelo, de “Grande Sertão.” Ela nasceu na região
do rio São Francisco, o Velho Chico, onde “a força e a singularidade dos
episódios, dos acontecimentos e da trajetória da vida social refletem-se
diretamente na literatura.” Chamou-se, na vida terrena, Rotílio Manduca,
cuja “trajetória assombrosa segue por caminhos espantosos. É um jagunço
dos bons, o mais valente entre os valentes. Muito bom no punhal, na faca e
com o trabuco... A fama de Rotílio como um “justiceiro” correu pelo São
Francisco, e lhe eram atribuídas duzentas mortes. Por isso sua lenda
mantém-se viva até hoje no Vale do São Francisco...” E, no entanto, uma
dessas surpresas em que é pródiga a realidade: “Mas Rotílio tinha outra
“vida.” Despia seu gibão de couro de sertanejo e envergava ternos de linho
da alta sociedade, a fim de circular livremente no Rio de Janeiro e em
Belo Horizonte.” Segundo relato do Prof. Alberto Deodato, seu amigo,
quando Rotílio o visitava no Rio de Janeiro “arranjou-se numa rede
atravessada. Não podia ficar em hotel. Não por falta de dinheiro, mas
porque vinha de um tiroteio no São Francisco. Viajou léguas e léguas de
batina e óculos pretos, a cavalo. Trazia enorme apetrecho de disfarce:
batina, barba, bigode, o diabo. Da noite para o dia desaparecia, levando
tudo que era seu... O fraco desse sertanejo era a admiração pelos
intelectuais.” Nessas visitas conheceu Manuel Bandeira, Ciro dos Anjos e
Ribeiro Couto. Para espanto do amigo, foi visto almoçando com Medeiros
Albuquerque e ficou amigo do ministro Ataulpho de Paiva. Freqüentava rodas
de políticos e intelectuais, lia os clássicos e fazia versos. “Mas seu
habitat – prossegue o ensaísta – era o sertão do São Francisco, jamais
poderia romper o cordão umbilical que o prendia à realidade sertaneja. Ali
nasceu e ali encontraria seu fim.” Morreu esfaqueado na cidade da Barra,
num navio que balançava sobre as águas do rio de seus sonhos: o Velho
Chico. E conclui o ensaísta: “Assim morreu Rotílio Manduca. Até que
renasceu como Zé Bebelo no “Grande Sertão: Veredas.” Eis uma pálida mostra
do que contém esse belo trabalho, enriquecendo a imensa bibliografia sobre
Rosa e sua obra.
Mais adiante, um texto encheu meus olhos de antigo Curador Trabalhista
(função do Ministério Público nas comarcas onde não havia Junta) e depois
professor de “Legislação Social” por tantos anos. Refiro-me ao ensaio
histórico-sociológico “O trabalho através dos tempos”, de Jack Siqueira,
onde ele faz interessante incursão no passado para desvendar as formas
como se encarava e exercitava o labor humano. Vai assim à Mesopotâmia, ao
mundo hebreu, ao Egito, à Grécia, ao Império Romano, investiga a tradição
judaico-cristã e a influência da reforma protestante. É claro que não
esquece a Bíblia, os servos da gleba, a escravidão em suas várias formas,
a filosofia popular sobre o trabalho e nem mesmo os workaholics, os
viciados no trabalho, como são chamados no original, e o trabalho em luta
com o progresso tecnológico que reduz seu espaço e suas vagas. O
desemprego, a violência, o tráfico de drogas e os problemas conseqüentes.
Não é sem preocupação e temor que observa o panorama e conclui: “No mundo
moderno, o trabalho não é mais o algoz como instrumento de punição e
causador de sofrimento. A sua falta é que tem respondido por essas e
outras patologias físicas e sociais.”
O passeio, porém, não termina aí. Merecem especial referência as paradas
em “A primeira e mais bela candanga”, de Murilo Badaró, belíssima crônica
descrevendo as belezas de Rosilene, a “primeira candanga”, e a paixão que
despertou no presidente, causadora de mudanças visíveis na vida dela e do
marido. A segunda é “As academias de letras”, de José Afrânio Moreira
Duarte, artigo histórico e didático a respeito dessas instituições, no
mundo e no Brasil. O volume registra ainda o lançamento do livro “Azul:
estranhos caminhos”, do mesmo José Afrânio, reunindo contos premiados e
outros inéditos, “revelando apuro e singeleza de linguagem, com sugestivas
mensagens do mais autêntico sentimentalismo.” Tocou-me, em especial, a
crônica rememorativa de dias vividos em Catas Altas, cidade onde tudo é
rocha e pedra-ferro, desde as montanhas que a cercam, o leito do rio e até
o calçamento das ruas, em estilo pé-de-moleque, mas onde também estão o
amor e a ternura. Nos arredores dessa cidade singular ergue-se o celebrado
Colégio do Caraça, cuja vida e funcionamento foram tão bem descritos por
Joaquim de Salles no magnífico livro “Se não me falha a memória”
(Instituto Moreira Salles – S. Paulo – 1993).
Mas a revista não contém apenas os trabalhos abordados. Ela traz perfis de
escritores, poetas, professores e homens públicos mineiros, enfoques sobre
artes plásticas, educação, filosofia, religião, crítica literária, contos,
crônicas, poemas, cinema, música, dança, arquitetura, história, memórias e
outros assuntos que fazem dela uma publicação rica em conteúdo, informação
e beleza estilística. Reflete em suas páginas a reconhecida capacidade dos
mineiros para o exercício da arte de escrever.
(19 de dezembro/2009)
CooJornal no 663
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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