21/11/2009
Ano 12 - Número 659
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
EXISTENCIALISTAS, COM TODA RAZÃO
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O ano passado marcou o 25o. aniversário do falecimento de Jean-Paul
Sartre, fato relembrado em diversos eventos em vários países. Entre eles
avulta a publicação do livro “Tête-à-Tête – Simone de Beauvoir e Jean-Paul
Sartre”, de autoria da escritora norte-americana Hazel Rowley, e que só
agora chegou ao Brasil em tradução de Adalgisa Campos da Silva (Editora
Objetiva - Rio – 2006). Trata-se de uma biografia conjunta e entrelaçada
dos dois escritores, gênero bastante raro no mundo das letras, abordando a
existência de ambos desde o início e enfatizando os 51 anos que durou o
célebre “casamento aberto” entre os dois, iniciado em 1929 e encerrado em
1980, com a morte de Sartre, durante os quais mantiveram uma união
indissolúvel, apesar dos desvios e tropeços, que só seria possível num
país como a França com sua notória tolerância para atitudes exóticas e
incomuns. O livro (465 págs.) é minucioso, pesquisado a fundo na imensa
bibliografia e também in loco, tendo a autora visitado os lugares onde
viveram, refazendo seus passos, investigando e entrevistando numerosas
pessoas. O resultado foi um livro muito rico, denso de conteúdo, em cujas
páginas o leitor sente os biografados vivendo, palpitando, agindo, nível
que não é fácil de atingir. Também não se nota a tendência hagiográfica
existente em tantos trabalhos do gênero; sempre que necessário, a autora
discorda, critica, aponta equívocos e posicionamentos errados de seus
personagens. Isso fica bem claro quando ela lamenta o silêncio de Sartre
diante de fatos como a invasão da Hungria e da Tchecoslováquia pelas
tropas soviéticas, ainda que ele explicasse que qualquer declaração sua
nesse sentido seria utilizada na “guerra fria.” Também emerge o
descontentamento da autora quando o filósofo se afasta das diretrizes
sempre mantidas em acordo com Beauvoir para conceder entrevistas que
contrariavam seu modo de pensar a indivíduos que buscavam o teatro e o
escândalo. Num panorama geral, no entanto, o livro é bem fundamentado e
sério, permitindo uma visão segura dos carismáticos e controvertidos
personagens. Além disso, contém toda a bibliografia, matérias publicadas
na imprensa, fontes existentes em arquivos públicos e particulares e
fotografias interessantes. Sua elaboração foi um desafio porque já não
seria nada fácil reconstituir a vida de uma figura intelectual múltipla
como Sartre, quanto mais acrescentando a ela a de Beauvoir.
Como primeira observação, anotaria a coragem e a independência intelectual
de Sartre diante dos acontecimentos de seu tempo. Mesmo quando tudo e
todos tomavam o mesmo caminho, numa espécie de pensamento único e
apaixonado, aceito sem maior exame, ele se levantava só e apontava o
equívoco daquela posição, afrontando tudo e todos. Nessas ocasiões aquele
homenzinho feio, estrábico e fanhoso se tornava um gigante que pairava
acima da mediocridade ou da má-fé. Assim aconteceu, v. g., na guerra de
libertação da Argélia, então colônia francesa, que ambicionava sua
independência depois de séculos de domínio e exploração pela metrópole.
Ora, colocar-se a favor da pretensão argelina se afigurava aos olhos
franceses como uma traição, um delito de lesa-pátria, uma abominação. Pois
Sartre e Beauvoir, com inaudita coragem, reconheceram a justiça do sonho
argelino de libertação e pagaram alto preço: as pessoas os evitavam,
passaram a ser vaiados e xingados na rua, permaneceram como exilados na
própria pátria por longo tempo. Ambos sofreram terríveis e constantes
ameaças, obrigando-os inclusive a mudar de endereço e restringir as saídas
à rua. Sartre só não foi processado porque o governo temia a reação
mundial. “Não se processa um Voltaire!” – teria dito o general De Gaulle.
Tão pesada foi a pressão social contra a Argélia que até Albert Camus,
argelino de nascimento, permaneceu em precavido silêncio. Mas, como
escreveu Monteiro Lobato, “contra a mediocridade insolente ou o safadismo
de alto coturno, quem não se mostra feroz é um patife.” Assim pensavam
Sartre e Beauvoir e o confirmaram em tantas ocasiões. “O homem não é nada
se não for um contestador!” – exclamou ele.
Sartre tinha uma só e única ambição – ser escritor. Perseguiu esse
objetivo de forma incansável, escrevendo sempre, em toda parte, em todos
os lugares e sobre tudo que acontecia. Diz a biógrafa que “transformar a
vida em narrativa era talvez seu prazer mais completo.” Sua pena ágil
funcionava em qualquer lugar – no trem, em baixo das árvores, nos bares e
cafés barulhentos e movimentados, onde tinha “mesa cativa.” Às vezes,
insatisfeito com o que produzira, submetia-se a impiedosa e brutal
auto-condenação, declarando-se bufão e mentiroso. “Escrever é uma ocupação
sem trégua” – queixava-se ele ao considerar o tempo exigido para produzia
um texto literário. Para ele, a literatura haveria de ser, por força, uma
“literatura engajada”, caso contrário não teria sentido. Nada de escritor
recolhido à sua inexpugnável torre de marfim; ele devia estar em
consonância com o seu povo e irmanado nos seus desejos. Em outro paralelo
com Monteiro Lobato, demonstrava desencanto com as letras num mundo tão
mau e injusto, onde o indivíduo isolado pouco valia e nada podia. Para
melhorar isso, deveria o escritor ir à rua.
As preocupações literárias de Sartre remontam à extrema juventude. Muito
cedo já discutia técnicas narrativas com os amigos, em especial com Paul
Nizan, companheiro inseparável e que morreria na II Guerra Mundial. Leitor
insaciável, não tirava os olhos dos livros. Libertário até o fundo da
alma, não tardou a criar sua filosofia da liberdade. Segundo sua teoria,
“os indivíduos viviam num estado de absurdo fundamental ou contingência.
Cada indivíduo tinha que assumir sua liberdade, criar sua própria vida.
Não existia ordem natural; as pessoas seguravam o destino com as próprias
mãos. Cabia a elas determinar a substância de suas vidas, até a maneira
que escolhiam para amar. Ser livre era assustador. A maioria das pessoas
fugia de sua liberdade” (pág. 38). Mas ele, Sartre, não fugiria da sua. A
vida seria sua própria construção. Obteve desde logo os aplausos e a
adesão de Beauvoir. Líder nato, Sartre vivia cercado de seus “acólitos.”
Mesmo imbuído de tanta liberdade, urgia ganhar a vida que ninguém vive
apenas de filosofia. O caminho que se abria era o magistério e ele tratou
de cursar a Ecole Normale Supérieure, o mais importante instituto da
Sorbonne, submetendo-se ao exame de admissão, junto com Simone. Ele obteve
o primeiro lugar e ela o segundo. A colocação dela causou espanto e
provocou admiração pela conquista inusitada em concurso tão difícil e
concorrido. “Foi um triunfo intelectual estarrecedor” – anota a biógrafa.
Com 21 anos de idade, foi a mais jovem de todas as candidatas até então,
ficando apenas dois pontos atrás de Sartre e com grande diferença do
terceiro colocado. Nizan obteve o quinto lugar. Obtida a agrégation, ambos
foram nomeados e passaram a lecionar. Carismáticos e competentes, os dois
fascinavam os alunos. Eles “estavam fascinados por aquele homem miúdo e
redondo que aparecia na escola vestido com um paletó velho de tweed – sem
gravata, - sentava-se na mesa, as pernas balançando no ar, e lançava
idéias, sem jamais olhar para qualquer nota, como se estivesse conversando
com amigos. Não era como os outros adultos. Levava idéias muito a sério,
mas não levava nem um pouco a sério sua posição de autoridade. Nunca
falhava com os alunos e quase nunca lhes dava notas abaixo da média. Até
deixava que fumassem em sala de aula” (págs. 70/71). Algo idêntico
acontecia com Simone. Aquela moça bonita, elegante, com os cabelos em
coque, de gestos sóbrios e saber infinito fascinava as alunas, sempre em
sua companhia, seguindo-a, visitando-a, pedindo coisas, indagando.
Tornaram-se modelos a serem seguidos e imitados. Ambos lecionaram por
longos anos, tanto em Paris como em outras cidades, até que Sartre
abandonou o magistério e Simone foi demitida pelos nazistas durante a
ocupação da França na II Guerra Mundial. Deixaram lembranças inesquecíveis
e marcantes na memória dos alunos e contemporâneos.
Em 1929 Sartre e Simone celebraram o célebre “pacto conjugal.” Nada por
escrito, nenhum papel, formalidade alguma. Ele se baseava em dois
princípios: não poderia haver ciúme e segredo entre os dois. Tudo deveria
ser compreendido e relatado, evitando dúvidas e desconfianças. O tratado
funcionou e permaneceu intacto até a morte de Sartre, em 1980. Era o
“tête-a-tête” – a solução ideal para viverem como casal, mantendo, ao
mesmo tempo, a liberdade individual. Nunca moraram juntos, quando muito em
acomodações separadas do mesmo prédio.
Aos poucos ambos se profissionalizam como escritores. Numa atividade
intensa e febril, Sartre escreve para os jornais e revistas, termina seu
primeiro livro e busca editora, participa ativamente de atos políticos e
cívicos, aprimora sua filosofia existencialista e ela vai se disseminando
de tal forma que se transforma num modismo, numa febre mundial. Também
Beauvoir produz sem parar e o casal aparece junto, sempre ao lado um do
outro, parecendo inseparável. São tomados de autêntica mania deambulatória
e viajam sem cessar, para lá e para cá, dentro do país e no exterior.
Tornam-se famosos em todo o mundo e Sartre não se furta a experiências
diferentes: treina o box e prova a mescalina para ter noção de seus
efeitos.
Com a guerra, Sartre é recrutado e vai servir no serviço meteorológico,
uma posição burocrática e monótona. Fardado, calçando pesadas botas
militares, era uma figurinha estranha e feia. Após a baixa, durante a
ocupação, integrou a Resistência e amargou a cadeia no dia de seu
aniversário. Sentiu como poucos o peso da ocupação e revelou o amor ao
país em inúmeras situações difíceis e perigosas. Nunca, porém, se filiou a
partido; segundo ele, os intelectuais deveriam traçar diretrizes, apontar
soluções, ficando a ação para os ativistas. Não obstante, distribuía na
rua o jornal que havia ajudado a fundar, impedindo assim que fosse
apreendido pela polícia. Mas – dizia – “o dever do escritor é denunciar a
injustiça em qualquer lugar, ainda mais quando ele ama o país que permite
que essa injustiça aconteça” (págs. 203 e 237). Durante a ocupação, Simone
migra para o sul em busca de ares mais livres; o clima parisiense se
tornara insuportável.
Mas tudo tem um fim e a guerra termina. A França é libertada e o mundo
entra em nova fase. Os livros de Sartre e Simone obtêm espantoso sucesso,
são vendidos em quantidade, a fama dos autores corre mundo. Simone recebe
o Prêmio Goncourt, criado pelos célebres irmãos em 1903, e Sartre é
aquinhoado com o Nobel, em 1964, mas recusa-o por questão de princípios.
Ambos estão em boas condições financeiras e seus créditos na Editora
Gallimard não cessam de crescer. Mas Sartre é pródigo, gasta em excesso,
sustenta um ror de pessoas que considera “a família”, não apenas distribui
dinheiro mas o espalha, não se importa com bens materiais. Ao morrer nada
tinha de seu, nem mesmo uma cama, embora seus direitos autorais valessem
fortunas.
“O Segundo Sexo”, de Simone, causa escândalo e provoca discussões
intermináveis. “A Náusea” e “O Muro”, ambos de Sartre alcançam imenso
sucesso. Publica o ensaio sobre Flaubert, em dois volumes, o mais completo
estudo sobre essa figura que o fascinava de longos anos, sempre em busca
do “le mot juste.” No seu rastro, tudo que escrevem é absorvido por um
público sequioso e fiel ao redor do mundo. Mas Sartre não se contém,
trabalha em demasia, é uma máquina de produzir. São artigos, ficções,
ensaios, peças teatrais, entrevistas, palestras, cartas – um nunca acabar!
Bebe muito, vive vida irregular, consome soníferos e calmantes sem
critério, deixando Simone assombrada com a possibilidade de sua morte. O
corpo cansado vem dando mostras de fraqueza, as limitações vão aparecendo,
e sobrevém a triste decadência que Beauvoir vai descrevendo no dia-a-dia
em “A Cerimônia do Adeus”, livro melancólico e duro. Em 1980 Sartre falece
em Paris, entristecendo milhões de pessoas, e seu sepultamento foi
apoteótico como poucos na história francesa. Seis anos depois, Simone
seguiria o mesmo caminho.
Muitas foram as manifestações em todos os sentidos. O balanço de sua vida
e obra, no entanto, firmou a geral convicção de que Jean-Paul Sartre foi
um dos grandes heróis intelectuais do Século XX e que teve em Simone de
Beauvoir a companheira que permitiu seus elevados saltos e ajudou de forma
decisiva na sua realização pessoal e profissional. Ainda que ele
considerasse que “o inferno são os outros”, uma multidão desses outros o
homenageou na partida e continua a fazê-lo ainda hoje através da constante
leitura de suas obras.
(2006)
(21 de novembro/2009)
CooJornal no 659
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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