31/10/2009
Ano 12 - Número 656
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
ARCAZ DE UM BARRIGA-VERDE
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MÚLTIPLO E OPEROSO
Recordo aqui uma figura múltipla e realizadora que se destacou em nosso
mundo cultural e deixou marcas positivas. Trata-se de José (Arthur)
Boiteux (1865/1934), professor, escritor, jornalista, historiador,
deputado (estadual e federal), secretário de Estado e magistrado, tendo
chegado ao posto de Desembargador. Acompanhou o governador Adolfo Konder,
como representante do Poder Judiciário, na célebre “bandeira” que ele
empreendeu pelo Oeste do Estado, numa demonstração ostensiva de posse e
para estabelecer contato direto da autoridade com o povo da região. Essa
marcha, repleta de curiosos incidentes, foi muito bem descrita por Othon
D’Eça, também participante, em seu livro “...Aos espanhóis confinantes!”,
que tive a satisfação de prefaciar para a edição da Fundação Catarinense
de Cultura. Um dos bons momentos do livro é justamente aquele em que Boiteux, encarregado das despedidas, discursa montado num burro preto,
calçando botas que lhe vão aos joelhos e coberto por um largo chapéu, para
os ressabiados moradores de um lugarejo ermo, em linguagem castiça e voz
eloqüente ecoando por morros e matos.
Boiteux muito se empenhou para reativar o Instituto Histórico e Geográfico
de Santa Catarina e foi um dos fundadores da Academia Catarinense de
Letras, integrando a chamada “Geração da Academia”. Fundou ainda o
Instituo Politécnico, embrião do ensino superior catarinense.
Produziu inúmeros trabalhos jurídicos, históricos e jornalísticos, além de
conferências e discursos. E obras ficcionais, estas as mais duradouras.
A FACULDADE DE DIREITO
Entre as realizações de Boiteux avulta a criação da Faculdade de Direito
de Santa Catarina, o primeiro curso jurídico catarinense, da qual foi
inspirador e fundador, hoje integrada à UFSC com o esdrúxulo nome de
Centro de Ciências Jurídicas. A Faculdade nasceu em 11 de fevereiro de
1932, razão pela qual seu Centro Acadêmico tem esse nome. Este ano
assinala seu 75º. aniversário, comemorado pela Assembléia Legislativa, em
sessão solene, no mês de fevereiro. Durante muito tempo ela manteve o
“Prêmio Des. José Arthur Boiteux”, que tive a satisfação de receber por
ocasião de minha formatura. Diante do prédio da Faculdade, à rua Esteves
Júnior, havia um busto em homenagem ao fundador, cujo destino desconheço
porque parece que foi retirado.
FORTUNA CRÍTICA
Apesar de sua importância no panorama cultural de uma época e como homem
público em nosso Estado, José Boiteux tem merecido reduzidas manifestações
críticas e escassos informes biográficos. Pelo que me consta, jamais
encontrou um biógrafo que o retratasse de corpo inteiro e os dados sobre
sua vida publicados em alguns livros são desencontrados e lacônicos. A
“Enciclopédia da Literatura Brasileira”, de Afrânio Coutinho e J. Galante
de Sousa, dedica-lhe umas poucas linhas; o “Dicionário Literário
Brasileiro”, de Raimundo de Menezes, vai na mesma trilha; a “Enciclopédia
Brasileira Globo”, tão rica em assuntos nacionais, nem sequer o menciona.
Sua precária sobrevivência na memória literária se deve aos pesquisadores
e historiadores locais, como Lauro Junkes, Iaponan Soares e Celestino
Sachet, em especial a este último. A Fundação José Boiteux, de
Florianópolis, não mede esforços para manter viva a memória de seu
patrono. A obra de Boiteux, em livros, está esgotada de longa data e
colocar a mão em alguma delas é tarefa deveras difícil. Creio que não
existe até hoje um levantamento completo de sua produção, incluindo o que
foi publicado na imprensa.
O CONTISTA
Meu amigo José Roberto Rodrigues, jornalista e poeta, brindou-me há tempos
com um pequeno livro de Boiteux que é uma raridade entre obras
catarinenses. Como estivesse bastante estragado, em vias de se
desintegrar, mandei restaurá-lo e só então pude ler sem que se
desmanchasse nas mãos. Trata-se de “Arcaz de um barriga-verde”, publicado
em segunda edição pela Typ. da Livraria Moderna, de Florianópolis, em
1933. O exemplar foi oferecido por Henrique Boiteux à Biblioteca do Grupo
Escolar David do Amaral, do Rio de Janeiro, em 7 de junho de 1942,
estabelecimento hoje extinto, segundo fui informado. Dali, de déu-em-déu,
depois de ter vagado por sebos e mãos desconhecidas, veio a ter comigo.
Traz algumas anotações, à mão, feitas por leitor atento.(*)
É um volume de contos de realce na obra do autor, tanto que é sempre
lembrado. “Arcaz” – definem os dicionaristas – é “uma grande arca com
gavetões”, objeto vetusto, usado nos tempos de dantes, embora bem
apropriado à intenção do autor: guardar com segurança seus escritos. Ele
próprio, talvez preocupado com o inusitado título, esclarece com minúcias,
colocando a explicação ma boca de um personagem: “É uma arca grande, com
gavetas; e, si eu te disser que arca é uma caixa de madeira com tampa
plana, segura com machas-femeas e fechadura, onde se guardam roupas,
papeis e dinheiro, ficarás sabendo bem o que é o móvel em que o nosso
Pacheco põe ao seguro as suas tão preciosas notas históricas acerca de
nossa terrinha” (p. 75, conforme a ortografia da época).
O livro contém oito narrativas, mais ou menos longas, todas de fundo
histórico, explorando os fatos, as tricas e futricas da política e da
burocracia, os casos acontecidos e as figuras curiosas de uma época em que
os dias corriam lentos e a existência parecia mais tranqüila. Têm como
pano de fundo a velha Desterro, a histórica Laguna logo após a República
Juliana e outros recantos deste Estado que mal se conhecia a si próprio.
São elas as seguintes: “A façanha do Onça”, “O Barbaças”, “No que deu um
puxão de orelhas”, “Nem p’ra festa nem p’ra luto”, “A Anninha do Bentão”,
“As ceroulas de D. Luiz Maurício”, “A narrativa do Zabumba”, “Um bródio no
velho palácio” e “O sete carapuças.” Revelam um observador arguto, atento
ao que ocorria e conhecedor seguro da História, que sabia mesclar com a
boa ficção, tornando seus contos sempre interessantes. Alguns personagens
aparecem em mais de um deles, tudo indicando que foram inspirados em
pessoas reais, por ele captadas nos traços físicos e psicológicos. Tivesse
a ampla divulgação de hoje, Boiteux estaria, talvez, entre os consagrados
contistas nacionais. Pagou o preço de viver e escrever na Província.
ANNINHA DO BENTÃO
Entre os contos mais interessantes, bem trabalhado e curiosamente
premonitório, avulta “Anninha do Bentão”, evocando a figura de Anita
Garibaldi, já então morta em outras terras, como havia informado o marido,
tal como era vista em sua cidade natal – Laguna. Mostra a relutância de
muitas pessoas em aceitarem como heroína a filha da terra, pobre e
desvalida, nascida em Morrinhos, moradora em “casa de porta e janela” e
que mal fôra notada antes de suas façanhas que correram mundo. É a
demonstração prática do velho dito popular de que santo de casa não faz
milagres. Mesmo louvada pelos grandes jornais do Rio e de Lisboa como
“legendária, guerreira, intrépida amazona, heroína de dois mundos”, havia
os que ironizavam e duvidavam, apontando o esquecimento que começava a
recair sobre ela. Com isso, no entanto, não concordava o boticário João
Mendes, cujas palavras proféticas o tempo se encarregou de comprovar,
tanto que Laguna passou a pleitear, inclusive por meios judiciais, a
condição de terra natal de Anita, fato declarado em sentença fundada em
elementos de prova. “Ah! Tudo muda, tudo mudará, meus amigos – exclamou o
boticário – e, então, Annita Garibaldi, Raphael Bandeira e outros serão
devidamente homenageados.” E mais adiante, explodindo de indignação:
“Anninha do Bentão! Anninha do Bentão! Para os diabos que os carreguem!
Heroína de dois mundos, quer queiram, quer não queiram, é o que ella já é
e há de ser, enquanto o mundo for mundo!” (pp. 85 e 57). O modesto
boticário interiorano afrontava o estranho pudor aqui do sul que nos
impede de reconhecer e proclamar os valores locais e que acabam no
ostracismo.
LINGUAGEM E ESTILO
O estilo de Boiteux é clássico, conservador, bem à moda da época. Faz uma
ou outra concessão, como “p’ra”, com o objetivo de se tornar mais
coloquial, mas escreve com mais leveza que outros autores de seu tempo e
até posteriores. Sabe explorar o humor, o insólito, o ridículo. É
conhecedor das técnicas e táticas do autor de ficção e usa o diálogo com
desenvoltura. Seu texto transmite bem o clima da época e retrata com
fidelidade os locais em que as narrativas foram ambientadas.
Muitas de suas formas de dizer atestam a mudança sofrida pela linguagem
literária no sentido da simplificação. Existem palavras, expressões e
hábitos que caíram em desuso, embora aplicados por ele com rigorosa
precisão. Isso, no entanto, em nada atrapalha o prazer do leitor no
contato com seus excelentes contos. A obra de Boiteux, como tantas outras,
mereceria uma reedição e ele próprio ainda espera pelo biógrafo dedicado e
competente que analise sua vida e obra em conjunto. Nada indica, porém,
que isso venha a acontecer e temo que seja mais um dos nossos votado ao
total esquecimento.
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(*) Soube que foi publicada nova edição do livro mas não consegui
encontrá-la.
(31 de outubro/2009)
CooJornal no 656
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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