Homenagem a Euclides da
Cunha, autor de “Os Sertões”,
no ano do centenário de seu silêncio.
Como já escrevi sobre Canudos numa visão moderna, analisando o livro de
Vargas Llosa (*), e Canudos visto de longe, comentando a obra de Sándor
Márai (**), explica-se o título deste trabalho: abordo aqui o livro de
Frederico Pernambucano de Mello intitulado “Que foi a guerra total de
Canudos” (Stahli Editora – Recife/Zurich – 1997), um dos mais corajosos e
completos ensaios a respeito do movimento messiânico liderado por Antônio
Vicente Mendes Maciel (1830/1897), o Bom Jesus Conselheiro, existente na
vasta bibliografia sobre esse tema da maior complexidade e por isso quase
sempre abordado de forma incompleta. O livro, de excelente feição gráfica,
enriquecido por fotografias autênticas, reproduzidas das originais, e
mapas ilustrativos, padece os efeitos de uma distribuição deficiente, o
que é lamentável, e só obtive um exemplar em visita à livraria da Fundação
Joaquim Nabuco, no Recife. Talvez esse fato tenha contribuído para que não
surgissem na imprensa abordagens na quantidade merecida pela obra.
NOVOS ASPECTOS
O livro repisa os
fatos históricos já conhecidos do episódio com rara segurança, mas também
“revela aspectos novos, difíceis de obter nesta altura do tempo”, como
afirma, com razão, a Editora. Para tanto, o autor não apenas percorreu a
imensa bibliografia sobre o assunto, como mergulhou num mar de documentos
e informações, além de visitar Canudos e seus arredores com freqüência
para bem observar detalhes e sentir ele próprio o clima local, examinando
o terreno, o rio Vaza-Barris e seu vale, a vegetação e tudo mais,
conversando com as pessoas, inquirindo e investigando. Daí, portanto, a
elaboração de um ensaio que focaliza Canudos de perto, refletindo no texto
os resultados positivos das pesquisas in loco. Para completar,
anote-se que o livro é bem escrito, em estilo elegante e de leitura
agradável.
UMA OBRA EM CINCO PARTES
Dividido em cinco
densas partes, o livro contém ainda um apêndice com informações a respeito
dos homens e das armas da Guerra, além da íntegra do “Relatório Monte
Marciano”, de 1895, fornecendo assim inúmeros detalhes importantes para o
leitor interessado. Registra uma bibliografia com mais de 150 títulos,
entre nacionais e estrangeiros, alguns deles muito raros, revelando o
empenho do autor em bem fundamentar suas exposições e conclusões. Registra
ainda uma dezena de depoimentos de personalidades que prestaram
informações, ao vivo, sobre os acontecimentos e aspectos com eles
relacionados. Essa amplitude de elementos informativos faz do livro, além
de seu próprio texto, uma fonte inigualável para outras pesquisas que ele,
porventura, possa inspirar.
O
LONGO TRAÇO
A primeira parte, -
“O longo traço ante bellum”, porventura a que exigiu mais
conhecimento geral sobre o país e uma visão crítica de nosso passado
histórico, procura descobrir as causas remotas que levariam àquela
Guerra tão insólita quanto cruenta, travada nos sertões inóspitos da
Bahia, e outros movimentos similares que pontilharam nossa história.
Acentua o autor o desafio posto diante do colonizador, obrigado a vencer
os mais ásperos obstáculos, como “vastidões estranhas a olhos e pés
europeus, com o pensamento refugiado na idéia de um regresso tão breve
quanto lhe permitisse a formação, a qualquer custo, de cabedal que
o sustentasse pelo resto da vida na terra de origem, reintegrado
finalmente à família. Tudo valia para fazer fortuna onde se estava
apenas de passagem... Em qualquer caso, o sentido do provisório
operava o efeito de truncar possíveis impulsos na direção do
estabelecimento de relações de afeto com a terra...” (Pág. 32 –
Grifos nossos).
Impossível descrever
melhor o sentido que presidiu às relações colonizador/colônia, no primeiro
ciclo econômico do país – o do pau-brasil. Essa forma de agir, como é
natural, lançou raízes, instalando uma forma de exploração predatória,
desumana e cruel, quer em relação às pessoas, aos índios e à natureza.
Partindo daí, mostra ele como a cultura livresca e superficial de nossas
elites, aliada ao desinteresse pelo que ocorria nos sertões e a influência
jesuítica geram o clima de religiosidade exacerbada, promissor ao
surgimento dos beatos de todos os tipos, entre eles o Conselheiro.
Figuras que se gestaram num ambiente de abandono, violência, injustiça e
religião mal amanhada, avultando aí os “corpos de penitentes.” (***) “No
seio dessas confrarias – escreve o ensaísta – cultivavam-se exotismos como
a autoflagelação institucionalizada e um despojamento que abolia a higiene
corporal, levando o crente a se entregar à imundície mais repulsiva” (Pág.
52).
A inflação
atormentando o povo, as terríveis secas periódicas, as explorações
políticas, o banditismo, as revoltas - eis o cadinho, descrito em minúcias
e largo fundamento pelo autor, para a entrada em cena de figuras
carismáticas e de intenso apelo popular como o Padre Cícero Romão Batista,
o Beato José Lourenço e outros beatos menores, pregadores e
intérpretes dos livros sacros dos mais exóticos feitios. Assim também,
creio que, de cangaceiros como Lampião e tantos outros, exercitando uma
guerra de guerrilhas “entre nós apelidada, desde os primórdios da
colonização, de “guerra brasílica”, “guerra volante” ou “guerra do mato”
(Pág. 36), tornando-os quase invencíveis e por isso sagrados heróis
populares. (****)
O
ARRAIAL E SEU CHEFE
Na segunda parte o
autor aproxima o foco e analisa “O arraial e seu conselheiro.” Abre o
capítulo com o depoimento insofismável do tenente-coronel José de Siqueira
Menezes, assim expresso: “Canudos não é, como muita gente boa supõe, um
pequeno núcleo de população que um simples maníaco reuniu em torno de si
para fins religiosos. O contrário disso é que deve se julgar” (Pág. 67).
Com esse espírito
investigativo e despido de preconceitos, busca então o autor penetrar a
fundo na realidade e reconstituir a vida dentro do aguerrido arraial e
traçar um retrato justo do Conselheiro. Começa mostrando que em Canudos
havia gente de todo tipo, os “náufragos da vida” de que falava o Padre
Cícero, podendo ser encarado também como uma espécie de quilombo, dada a
porcentagem negra da população. Não se esqueça tampouco a presença dos
cearenses, tangidos pelas secas ou atraídos pelo chefe, “menos pela
quantidade de seus integrantes que pelo significado da contribuição para o
erguimento da estrutura de domínio presente no projeto teocrático do
Conselheiro” (Pág. 87).
Contrariando um tipo
de cultura imposto pela vida na caatinga, onde prevalecia o individual
sobre o coletivo e a independência pessoal acima de tudo, os moradores do
arraial se submetem a um novo sistema organizado à semelhança de um
socialismo tosco onde o interesse de todos predominava. E para surpresa
geral, o sistema funcionou. As atribuições se definiam com precisão e a
ordem imperava; todos abdicavam de forma tácita de parcela de sua
liberdade em benefício comum. Todos se entregavam “a um projeto
alternativo de vida comunitária” (Pág. 88).
FIGURAS DESTACADAS
Assinala o ensaísta
a presença de algumas figuras que se destacaram antes e durante os
acontecimentos, como a Pimpona, Antônio Vilanova, o Norberto das Baixas,
Joaquim Macambira, Pajeú, José Venâncio, o cearense Feitosa, João Abade
etc. (****) Faz aí interessantes considerações sobre a guerra de
guerrilhas que infernizava os militares, a busca da invisibilidade (“os
jagunços vestem-se de folhas para serem confundidos com o mato...”), o
isolamento que permitiu a conservação de formas primitivas de vida social,
fazendo “da sociedade sertaneja uma espécie de quadro arqueológico da
sociedade brasileira” (Pág. 81). Relevantes são ainda suas observações
sobre a linguagem sertaneja. O isolamento no semideserto da caatinga
nordestina, como na vastidão das fazendas aqui do Sul, manteve em uso
vocábulos abandonados em outras regiões do país, levando observadores
apressados a afirmarem que tais falas estão erradas. Demonstra, com
cerrada argumentação, que esse conservadorismo manteve em uso a linguagem
do Século XVI, como também o afirmou Câmara Cascudo: “O sertanejo não fala
errado. Fala diferente de nós, apenas. Sua prosódia, construção gramatical
e vocabulário não são atuais nem faltos de lógica. O sertanejo usa, em
proporção séria, o português do Século XVI, da era do descobrimento” (Pág.
100 – Nota 18). Observo, para concluir, que encontrei em Saramago diversos
vocábulos considerados arcaicos, usados pelos campeiros catarinenses, e
desconhecidos em outras regiões.
PERFIL DO CONSELHEIRO
Quanto ao
Conselheiro, mostra o autor que não se tratava de um fanático e ignorante,
como tantas vezes foi pintado. Invocando o depoimento do general Dantas
Barreto, escreve o ensaísta: “Daí a conclusão de que o exército brasileiro
não se bateu contra nenhum idiota, em Canudos, mas contra um místico de
inteligência superior, capaz de levar seu povo a uma guerra total, vale
dizer, a uma guerra protagonizada por homens, mulheres, velhos e meninos,
na defesa de uma cidadela escolhida com perfeição...” (Pág. 83). Mais
adiante: “Os republicanos mergulham em verdadeiro pânico, vendo que o
Conselheiro não era o idiota que tantos julgavam. Um idiota não põe a
correr três expedições policiais e duas militares, como se dera nos
últimos anos” (Pág. 116).
Esse o verdadeiro
Conselheiro, comandando de forma discreta o seu burgo, incrustado à margem
do Vaza-Barris, e que se transformou, em quatro anos, na segunda cidade do
Estado da Bahia.
O
LITORAL E O SERTÃO
Com o expressivo
título de “Choque de dois mundos”, a terceira parte aborda o confronto
entre o litoral desenvolvido e o sertão abandonado, cada qual com sua
cultura, incapazes de se compreenderem como integrantes da mesma pátria.
Mais uma vez acolhe o depoimento do general Dantas Barreto, quase sempre
esquecido pelos cronistas, quando descreve as peculiaridades sertanejas e
as dificuldades que elas impõem ao desenrolar da luta. Reabilita e
valoriza a palavra desse militar, mostrando quão isenta, confiável e
serena ela é. Analisa a morte de Moreira César, as circunstâncias e a
boataria que a envolveram, o comportamento do militar durante o conflito e
o enorme impacto que seu desaparecimento causou à opinião pública de todo
o País e, em conseqüência, o pânico que se instala nas forças legais.
Começa então a nova composição de forças para enfrentar os rebeldes, sob o
comando supremo do general Artur Oscar de Andrade Guimarães, reunindo
cerca da terça parte de todo o exército nacional. Monta-se o cenário para
uma incursão sem precedentes para varrer do mapa o fatídico arraial
conselheirista.
ENSAIO
SOCIOLÓGICO
A quarta parte –
“Pelo Nordeste” – constitui um puro ensaio de sociologia. Aqui o autor
descreve o entusiasmo cívico que acompanha os preparativos da nova
expedição a correr pelas principais cidades da região, os temores de novos
fracassos e o receio de que o Padre Cícero viesse a apoiar o Conselheiro.
Mostra o clima de misticismo reinante naqueles sertões, relembrando o
“milagre” do Juazeiro, com as hóstias sanguinolentas de Maria de Araújo, a
pregação ininterrupta de outros beatos e os grandes redutos formados em
torno de alguns deles, como Caldeirão, Pau-de-Colher e Pedra Bonita. E o
alívio generalizado quando se confirma que o “Padim” se afastara do
Juazeiro em cumprimento a decreto do Santo Ofício e não para reforçar a
resistência de Canudos como se suspeitava. Seu apoio, naquele quadro de
fanatismo, teria conseqüências trágicas e, por certo, alteraria a história
de Canudos e sua guerra.
Esse o clima
reinante em março e abril de 1897.
A
ESCRITA DA DINAMITE
Na derradeira parte,
a guerra de extermínio – “A escrita da dinamite.” Não poderia sobreviver o
Estado dentro do Estado; urgia que fosse desmantelado e não restasse pedra
sobre pedra. Nela o leitor descortina toda a truculência da guerra, com
seus ataques e contra-ataques, investidas calculadas ou arriscadas, erros
e acertos, as derrotas e a vitória final das forças legais com o
esmagamento do “império” do Belo Monte, a 5 de outubro de 1897, quando
ocorre o completo desmoronamento da resistência rebelde. Nesse meio tempo,
as cenas de horror, as mortes de Pajeú e do próprio Conselheiro, as
degolas em série de prisioneiros (“a gravata vermelha”), as cenas de
extrema coragem e de abjeta covardia, os lances heróicos, as tocaias, os
ataques de surpresa, as táticas guerreiras de ambos os lados.
Revela o autor,
passo a passo, admirável domínio de temas militares, penetrando fundo na
análise das táticas e técnicas, estratégias de combate, formação e
desempenho das forças militares, características e qualidades do armamento
usado, organização militar e outros tantos detalhes em geral só conhecidos
na caserna. Discute detalhes do relevo e do posicionamento das tropas, seu
abastecimento, os combates de maior importância, as quantidades de
combatentes de lado a lado, ressaltando os sinais de modernidade
presentes na campanha, por parte do exército. Assinala os pontos
positivos de parte dos jagunços, derivados de uma inteligência
intuitiva, como a invisibilidade, a eficácia das linhas de atiradores, a
combinação de armas modernas e arcaicas, a adoção de ordem tática diluída,
o ataque aos animais de tração, os tiros à distância, provocando danos ao
acaso e o enervamento do inimigo, a exposição de corpos de inimigos ou
partes deles em locais visíveis para abater o moral da soldadesca.
O
FIM: INCÊNDIO E EXUMAÇÃO
Por fim, encerradas
as hostilidades, incendiada a vila e varejada de ponta a ponta, é exumado
o corpo do Conselheiro, decepada sua cabeça e levada à Bahia, onde o sábio
Nina Rodrigues sobre ela se debruça em acurados estudos. “Para nova
surpresa dos republicanos exaltados e de toda a nação, – escreve o
ensaísta – não se consegue encontrar nenhuma anomalia que denunciasse
traços de degenerescência.” Proclama, por fim, o extraordinário cientista:
“É, pois, um crânio normal!” (Pág. 237).
Concluindo, é
visível, diante do esboço demonstrado, ser impossível bem conhecer e
melhor entender Canudos sem a leitura atenta deste livro modelar. Ele
realça, além de tudo, a marca indelével deixada pela guerra em nossa
história de violência e arbítrio, despertando uma pergunta deveras
inquietante: teria sido necessário tudo o que se fez? Outros meios e modos
poderiam, creio eu, evitar a carnificina que encharcou aqueles sertões com
o sangue de tantos brasileiros, vítimas uns do abandono, da miséria e da
ignorância, e outros da exaltação exacerbada dos que enxergavam em toda
parte perigos para a pátria que o tempo implacável acabaria mostrando
inexistentes. Como voltaria a ocorrer no País em tantas outras ocasiões
posteriores.
______________________________
Notas:
(*) “Canudos numa visão
moderna”, in “O Perto e o Longe”, Blumenau, Fundação Casa Dr.
Blumenau, 1990, Vol. I, Pág. 5.
(**) “Canudos visto de
longe”, in “Jornal Página 3”, Balneário Camboriú/SC, 22/02/03, Pág.
18, e “Literatura”, Brasília, Vol. 24, 2003, Pág. 47.
(***) O autor reproduz a impressionante foto do Beato da
Cruz, de Juazeiro do Norte, contemporâneo de Canudos, carregando uma cruz,
as orações a tiracolo, o gorro, a túnica e o cordeiro de Deus, ou seja, um
cordeiro vivo, tangido por uma corda (Pág. 155).
(****) Todos estes
personagens e outros mais estão biografados no Apêndice A (Os
homens da guerra). O Apêndice B relaciona as armas usadas com suas
características e o Apêndice C contém a íntegra do Relatório Monte
Marciano (Pág. 257 a 295).
(24 de outubro/2009)
CooJornal no 655