10/10/2009
Ano 12 - Número 653
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
APENAS UM POUCO FRACO DO PULMÃO
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Como Lages
hospedou Paulo Setúbal
EDIÇÃO AMPLIADA
Com amável dedicatória, recebi do admirável escritor Fernando Jorge a
segunda edição, revista e muito ampliada, de seu livro “Vida, Obra e Época
de Paulo Setúbal”, publicado pela Geração Editorial (S. Paulo – 2008).
Como as demais biografias do Autor, é um trabalho minucioso e que esgota
todas as fontes possíveis, respondendo a todas as indagações que possam
ser feitas. Assim também acontece quando ele trata, neste volume, da
estadia de Paulo Setúbal em Lages nos anos de 1919 e 1920, realizando um
levantamento completo das atividades do escritor paulista naquela cidade
serrana, valendo-se inclusive de informações de Nereu Corrêa em livro que
ele enaltece pela seriedade da pesquisa.
O SINISTRO DIGNÓSTICO
Quando se constatou que ele “estava um pouco fraco do pulmão”, expressão
usada para mascarar a tuberculose ou peste branca, o jovem escritor e
jornalista foi aconselhado pelos médicos a procurar local de altitude mais
elevada, clima saudável e ar puro. Os recursos de então eram ainda
precários no combate à terrível enfermidade. Diante disso, ele se fixou
por uns tempos em Campos do Jordão e, considerando-se curado, retornou à
Paulicéia. Formou-se em Direito e entregou-se à advocacia, ao jornalismo e
aos escritos, sempre com sucesso. Nesse período foi acometido da gripe
espanhola que então grassava, salvando-se por milagre, o que levou os
médicos a vetarem sua permanência na capital paulista. Seu irmão mais
velho, João Batista Setúbal, era casado com a filha de um fazendeiro
lageano e residia na chamada Princesa dos Campos. Dirigiu ao irmão um
convite para passar uma temporada na cidade, cujo clima se recomendava ao
tratamento dos fracos de pulmão. Paulo Setúbal logo aceitou, movido
inclusive pelo desejo de aventura, e rumou para Lages.
ADOTADO PELA CIDADE
A cidade o encantou desde a chegada e sua simpatia pessoal, seu jeito
extrovertido e conversador conquistaram de pronto a simpatia dos
moradores. A comunidade o adotou sem restrições.
Era o único bacharel formado da cidade e seus anúncios logo apareceram nos
jornais, oferecendo os serviços profissionais e registrando ser formado
pela Academia de Direito de São Paulo. Em pouco tempo ficou cheio de
serviço, foi contratado para alguns inventários e tratou deles com
sucesso. Inventários, naquele meio onde imperava o latifúndio, constituíam
os mais cobiçados e bem remunerados serviços advocatícios. “Ganhei fama e
passei a trabalhar sem tréguas” – escreveu ele.
O DINHEIRO SE ESVAÍA
Mas o dinheiro ganho desaparecia como água pelo vão dos dedos. É que ele
aprendera a jogar e se entregava “à paixão torturante das cartas” –
segundo suas próprias palavras. Esquecendo-se da doença, passava noites em
claro, em locais fechados, aspirando o ar viciado e a fumaça dos cigarros.
Numa só jogada apostava todo o ganho de uma longa e trabalhosa causa. Não
satisfeito, prosseguia nas noitadas pelos cabarés e boates da periferia,
sempre acompanhado de bizarras figuras de tropeiros e negociantes de gado.
Mas, ao que parece, vivia feliz, exercitando “a ânsia de viver, de mandar
às favas a lembrança das horas negras” – para repetir o biógrafo.
E que mais fazia ele na cidade campeira que se estendia entre coxilhas
ondulantes? Mantinha uma existência ativa, cheia, movimentada. Amante da
natureza, percorria a cavalo as cercanias da cidade, enlevado com a luta
dos peões, a lida braba dos rodeios, as correrias de homens de bombachas e
chapéus de abas largas. Em redor do fogo, ouvia suas histórias e sugava
mates amargos. Observava com intenso prazer “o mais admirável bosque de
pinheiros que me foi dado contemplar” ao sol que se punha por trás da
última coxilha.
NOS JORNAIS E NO CARNAVAL
Enquanto isso, os dois jornais da cidade – “O Planalto” e “O Lageano” –
publicavam seus trabalhos, em prosa e verso, além de notas sobre suas
atividades. Artigos, crônicas, contos, poemas românticos e humorísticos,
comentários sobre temas históricos e do momento e até uma espécie de
manifesto em favor de Rui Barbosa, candidato a presidente da República.
Para espairecer, “participou de um bródio, servido entre chalaças e ditos
espirituosos, ao som de uma orquestra de flautas, violinos e cavaquinhos.”
Aderiu de pronto ao animado carnaval da cidade, em 1919, e compareceu ao
baile à fantasia, no Clube 1º. de Julho. À sua entrada, registrou um
jornal, “voltam-se cabeças curiosas; fisionomias iluminam-se num sorriso
acolhedor e travessos corações tremem... tremem num presságio de assalto
irresistível.” O Dr. Paulo Setúbal era um sucesso na terra lageana.
NO JÚRI E OUTRAS TRIBUNAS
Atua em rumoroso julgamento pelo júri (ao que tudo indica o único),
profere discursos e conferências de repercussão que são analisados e
comentados pelos jornais. Produz e publica poemas e mais poemas. E advoga
com intensidade.
Não obstante, continua a jogar e a cometer abusos contra a saúde frágil.
Adoece, tem que guardar a cama, e se recupera, ansioso por voltar à vida
ativa. Nas tardes de folga, comparece à roda que se forma na farmácia “do
culto e verboso Otavinho Silveira. Ali encontrava vários amigos: o Dr.
Nereu de Oliveira Ramos, formado pela Faculdade de Direito de São Paulo; o
Dr. Cândido de Oliveira Ramos, seu parente, formado pela Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro e que no desempenho de sua profissão havia
prestado serviços ao exército sérvio, durante a Primeira Grande Guerra; o
Dr. Walmor Argemiro Ribeiro Branco, primeiro lageano a formar-se em
medicina; o jornalista Manuel Tiago de Castro, redator de “O Lageano.” Ali
a boa prosa corria, como em geral nas boticas das pequenas cidades,
enquanto o chimarrão fechava a roda. Relatou o referido farmacêutico que o
governador Hercílio Luz havia convidado Setúbal para o cargo de Promotor
Público da comarca, mas ele declinou. Essas informações foram colhidas
pelo Autor do livro na obra de Nereu Corrêa.
BATE A SAUDADE
Estava em Lages há mais de um ano e as saudades começaram a bater. Apesar
do sucesso pessoal e profissional, resolveu retornar à Paulicéia. A viagem
até Florianópolis, que durou três dias, foi conturbada e cheia de
incidentes, inclusive com o carro pernoitando, encalhado, num dos
frequentes atoladores da estrada. Dorme num casebre humilde, acolhido por
um casal muito pobre, e fica indignado com a sovinice de um fazendeiro,
seu companheiro de viagem. Em São Paulo, retoma as atividades que o
conduzirão à glória literária e à morte precoce, vitimado pela implacável
peste branca.
O ESTÁGIO NÃO INFLUENCIOU
Lages, com a reconhecida hospitalidade campeira, lhe abriu todas as portas
e sua permanência ficou marcada para sempre na memória da cidade. Segundo
Nereu Corrêa, no entanto, a experiência não se refletiu na obra do
escritor e nenhuma influência exerceu sobre ela. Em seu livro “Confiteor”,
Paulo recorda com saudade sua epopéia na Princesa dos Campos como um
momento mágico de sua vida.
(10 de outubro/2009)
CooJornal no 653
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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