03/10/2009
Ano 12 - Número 652
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
ANIVERSARIANTE ILUSTRE
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Fundada em 11 de fevereiro de 1932, a
Faculdade de Direito de Santa Catarina completou 77 anos de existência.
Criada por inspiração do professor, desembargador e escritor José Arthur
Boiteux (*), foi a primeira escola de Direito em nosso Estado, embora não
tenha sido a primeira de nível superior. Funcionava, no início, à rua
Felipe Schmidt, em dependências que ficavam sobre a célebre “Confeitaria
do Chiquinho” e, mais tarde, foi transferida para sua sede própria, à rua
Esteves Júnior, número 11, onde funcionou por longos anos até ser
instalada no campus da Trindade, integrada à Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), com o estranho nome de Centro de Ciências Jurídicas,
denominação inexplicável, uma vez que as mais tradicionais Faculdades de
Direito do País conservaram o nome antigo. Exemplos são a Faculdade de
Direito do Largo de São Francisco, as “Arcadas”, em São Paulo, e a
Faculdade de Direito do Recife, ambas conservando o nome original mesmo
após todas as peripécias de nossa história. Seria a troca de nome uma
forma de escamotear o passado contestador e polêmico da velha Faculdade?
Funcionou por vários anos como escola particular e depois estadual, embora
houvesse o pagamento de mensalidades por parte dos alunos, ônus que só foi
extinto com a federalização.
A Assembléia Legislativa do Estado, acolhendo sugestão dos alunos filiados
ao Centro Acadêmico XI de Fevereiro, realizou sessão solene em homenagem à
ilustre aniversariante. Dentre os diversos discursos proferidos na
ocasião, o único que continha elementos históricos sobre a Instituição foi
o pronunciado pela atual Diretora, ainda que epidérmicos. E, no entanto,
haveria muito a dizer.
A Faculdade de Direito tem formado inúmeras gerações de bacharéis desde
sua turma inicial, muitos deles ocupando posições de relevo na vida
pública como advogados, magistrados, integrantes do Ministério Público,
policiais, políticos, professores, escritores, jornalistas etc. Tive a
sorte de freqüentá-la em um dos melhores momentos de sua existência, ainda
na vigência da Constituição Federal de 1946, a mais democrática das Cartas
brasileiras, que garantia o amplo debate de todos os assuntos sem os medos
e receios que o regime autoritário viria a instalar no seio das
universidades. Fui aluno de professores de primeira linha, inesquecíveis,
e tive colegas do maior destaque na vida profissional, grande parte deles
pontificando até hoje em suas múltiplas atividades. Sempre ligados no que
acontecia no Estado e no País, os acadêmicos discutiam, protestavam,
sabatinavam candidatos, criticavam e aplaudiam. Nossas assembléias, ainda
que acaloradas, constituíam exemplos do espírito democrático vigente entre
os estudantes, muito diferente da alienação e do desinteresse com que me
deparei, mais tarde, como professor em duas universidades.
O ambiente da Faculdade vivia em permanente ebulição. Cursos de extensão
universitária eram constantes e sobre os mais variados temas. Ao longo do
Curso, freqüentei pelo menos uma dúzia deles. Júris simulados também
aconteciam. Num deles funcionei como Promotor de Justiça, tendo como
assistente de acusação meu colega de turma Telmo Marengo. Em outro, tempos
depois, servi como jurado. Houve júris sobre assuntos não-criminais, como
a construção de Brasília, um dos grandes temas da época. Por inacreditável
que seja, havia forte oposição à construção da nova Capital e as
discussões a respeito costumavam ser furiosas. Conferencistas de fora,
alguns de grande renome, compareciam com frequência, pronunciando suas
palestras no salão nobre com suas cadeiras de palhinha. Graças a isso,
conheci muitos expoentes da cultura nacional, jurídica ou não. Nelson
Hungria em campanha pela comutação da pena de morte de Caryl Chessman, o
Bandido da Luz Vermelha, sem resultado; Nelson Carneiro em sua incansável
luta pela adoção do divórcio; Mozart Victor Russomano, luminar do Direito
do Trabalho; Darcy Azambuja, doublé de cientista social e escritor
regionalista; Buys de Barros, notável economista; Ataliba Nogueira,
expoente do Direito Tributário; Plínio Salgado, eterno candidato a
presidente da República; Carlos Lacerda, o célebre orador padre Godinho,
Roland Corbisier, o criminalista José Bonifácio de Andrada, Pedro Calmon,
magnífico reitor da Universidade do Brasil, Andrés Daglio, conferencista
uruguaio, Osny Duarte Pereira, Dagoberto Salles, Benjamim de Oliveira,
Josué de Castro e sua luta contra a fome, o processualista Galeno Lacerda,
o folclórico criminalista Mário Jorge, tantos e tantos outros que a
memória não reteve. Entre os grandes eventos da época, lembro-me da
realização da Semana Nacional de Estudos Jurídicos, em 1957, reunindo em
Florianópolis o melhor dentre acadêmicos e professores. No concurso
nacional de oratória, nessa ocasião, destacou-se o então acadêmico
Norberto Ulysséa Ungaretti, em magnífico discurso, e que perdeu a primeira
colocação por insignificante diferença em julgamento muito questionado. Os
concursos para a cátedra e a livre-docência, expondo ao público os
conhecimentos dos candidatos a professores, também despertavam grande
interesse. Assisti a alguns memoráveis.
Dentre os mestres, começo por evocar Othon D’Eça, tanto pela ligação
pessoal como pela afinidade com o escritor. Nos tempos em que residiu em
Campos Novos, minha cidade natal, ainda solteiro, tornou-se grande amigo
de meu pai e jamais o esqueceria. Sempre que me encontrava, na rua ou nos
corredores da Faculdade, abraçava-me com efusão, exclamando: “Parece que
estou vendo o José ainda mocinho!”, referindo-se a meu pai. Professor de
Direito Romano e homem de vasta cultura, era irrequieto durante as aulas,
gesticulante, movimentado, descendo e subindo no estrado onde ficava a
mesa. Apaixonado por Eça de Queiroz, bastava mencionar o escritor luso
para que se desmanchasse em comentários. Suas aulas eram ministradas aos
sábados à tarde, em dia e horário inacreditáveis, mas a maioria dos alunos
marcava presença. Sobre ele muito tenho escrito e prefaciei seu livro
“... Aos espanhóis confinantes!”, edição de suas Obras Completas,
publicadas pela FCC.
Inesquecível também é Joaquim Madeira Neves, talvez o mais popular entre
os alunos, sempre em meio a um círculo deles. Professor de Medicina Legal,
tinha uma erudição espantosa e suas aulas nos deixavam embasbacados.
Osmundo Wanderley da Nóbrega, magistrado sério e circunspeto, mestre de
Direito Civil respeitado pelo grande conhecimento, embora um tanto arredio
e de pouca conversa. Severino Nicomedes Alves Pedrosa, pernambucano que
jamais perdeu o sotaque, magistrado e professor de Direito Civil,
pragmático nas lições e irônico nas respostas. Edmundo Acácio Moreira,
modesto, quase humilde, mas que parecia reter todo o Direito Civil na
cabeça, citando dispositivos, teorias e decisões de memória, sem recorrer
a anotações. Luna Freire, professor de Direito Processual Civil, também
sábio na sua matéria, conhecendo-a tanto no passado como na atualidade.
João Bayer Filho, político e professor de Direito Penal, um artista na
gesticulação e na impostação da voz. Alcebíades Valério Silveira de Souza,
mestre de Direito Internacional Público, conhecedor profundo da matéria e
que guardava na cabeça, como que desenhado em traços fortes, o complicado
mapa geopolítico mundial. Atualizado como poucos, abordava qualquer fato
novo que eclodisse no mais recôndito do Globo. Abelardo de Assumpção Rupp,
mestre de Direito Comercial, pessoa de rara bondade e por isso muito
querida. João David Ferreira Lima, professor de Ciência das Finanças,
lutador incansável pela federalização e diretor da Faculdade. José do
Patrocínio Gallotti, apaixonado socialista, e Pedro de Moura Ferro, sempre
indignado com as injustiças do mundo e os entraves da burocracia. Ferreira
Bastos, nosso iniciador nos meandros do Direito Penal, Renato Barbosa,
mestre de Direito Internacional Privado, tantas vezes irritado com as
urzes do caminho, Telmo Vieira Ribeiro e suas lições de Direito
Constitucional. Henrique Stodieck, mestre de Direito do Trabalho, como tal
respeitado em todo o País. E outros, muitos outros, inclusive os mais
jovens que lecionaram por pouco tempo e talvez por isso não deixaram
maiores marcas. Todos, porém, contribuíram para a formação de verdadeiros
profissionais e são credores de nosso reconhecimento. Não fui aluno de
Henrique da Silva Fontes, já aposentado, embora tenha assistido a várias
de suas palestras.
Com colegas de turma e contemporâneos em geral também mantive um
relacionamento muito rico e agradável. Entre os primeiros, vem-me à
memória a figura de Telmo Marengo, creio que o mais inteligente de todos.
Questionava os professores, em pé, com argumentação perfeita e, às vezes,
colocando-os em dificuldades. Costumava ir à minha pensão, à noite, e
ficava caminhando entre as camas, no quarto onde eu dormia, gesticulando e
falando como quem procurava convencer. Bem humorado, ria com facilidade e
gostava de relembrar fatos engraçados que havia presenciado. Henrique
Gabriel Botelho Berenhauser, estudioso como poucos, leitor incansável, foi
outro de meus companheiros ao longo de todo o Curso. José de Brito
Andrade, simpático e alegre, tornou-se renomado criminalista. Luiz
Henrique Baptista, muito amável, místico, sempre conversando com Deus, com
quem parecia manter relações muito chegadas. Yara Coelho de Souza, sempre
na nossa roda, grande colega e amiga. E outros, muitos outros, embora
esses fossem os mais próximos, aqueles que ficaram para sempre na
lembrança.
Com estas desalinhavadas, registro minha homenagem à nossa provecta
Faculdade, proclamando mais uma vez – como tantos outros ex-alunos – que
não concordo e não gosto do atual nome. Para nós, ela será sempre a
Faculdade de Direito de Santa Catarina.
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(*) Apesar de sua importância na vida pública e na
literatura catarinense, José Arthur Boiteux não tem merecido maior
destaque. A “Enciclopédia de Literatura Brasileira”, de Afrânio Coutinho e
J. Galante de Sousa, dedica-lhe algumas magras linhas, e o mesmo faz o
“Dicionário Literário Brasileiro”, de Raimundo de Menezes. A “Enciclopédia
Brasileira Globo”, tão rica em temas nacionais, nem sequer o menciona. Sua
sobrevivência se deve aos pesquisadores locais, como Celestino Sachet,
Lauro Junkes e Iaponan Soares. Por mais que indague, nunca consegui saber
o destino do busto do Fundador que havia diante da Faculdade.
(03 de outubro/2009)
CooJornal no 652
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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