26/09/2009
Ano 12 - Número 651
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
40 ANOS
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O dia 1o de abril de 2004 marcou os quarenta
anos do golpe militar de 1964, data que ficará indelével na história
brasileira contemporânea. Muito tem sido dito e escrito a respeito, embora
nem de longe dê uma idéia do que foram os chamados “anos de chumbo.” A
tomada do poder pela força interrompeu uma vivência democrática de dezoito
anos, sob a vigência da Constituição Federal de 1946, a mais democrática
que tivemos e para cuja derrocada contribuíram manifestações levianas de
políticos que se julgavam democratas. Ela se preocupava tanto em garantir
a liberdade individual, depois dos tempos negros do Estado Novo, que não
dava ao presidente da República instrumentos legais para defender o
regime, tanto que o golpe foi tramado às claras, ante os olhos do Governo,
com os golpistas se movimentando e tramando com total liberdade. Seríamos
hoje uma democracia madura, com um povo politizado e hábil no exercício do
voto, com quase sessenta anos de duração. Com a interrupção, eis-nos
recomeçando tudo, dando passos vacilantes, com grande parte da população
desinteressada da coisa pública e sem lideranças novas, uma vez que
aquelas que estavam em formação foram dizimadas. Mas é imperioso seguir em
frente, consolidando a democracia em definitivo, para que coisas assim
nunca mais voltem a acontecer.
No curso das duas décadas autoritárias inúmeros fatos ocorreram que não
foram explicados ou esclarecidos. Lutando com dificuldades, autoridades de
várias áreas conseguiram trazer a público a verdade a respeito de muitos,
embora outros continuem envoltos em espesso mistério. Como se costuma
dizer, muitos esqueletos ainda estão no armário. Entre estes, três
acontecimentos importantes esperam por investigações que levem a
conclusões sérias e definitivas, capazes de afastar para sempre as dúvidas
que pairam sobre eles. Refiro-me às mortes dos ex-presidentes Juscelino
Kubitschek (JK) e João Goulart (Jango) e do ex-governador da Guanabara,
Carlos Lacerda. Eles compunham o mais influente trio de políticos
anteriores ao golpe e detinham a grande maioria do eleitorado, além de
dispor de grande capacidade de mobilização popular. Todos morreram num
período de apenas nove meses, em circunstâncias estranhas e que deixaram
inúmeras dúvidas. Intrigados com os indícios de que poderiam ter sido
vítimas de crime, os jornalistas Carlos Heitor Cony e Anna Lee, depois de
muitas buscas e pesquisas, decidiram publicar o livro “O Beijo da Morte”
(Editora Objetiva – Rio – 2003), espécie de romance-reportagem em que
analisam todos os detalhes que envolvem os casos e as suspeitas
existentes.
Esses fatos ocorreram no contexto da Guerra Fria, uma espécie de
equilíbrio do terror, calcado na permanente ameaça nuclear, entre os
blocos capitalista e socialista que dividiam o planeta. Cada um deles
enxergava ameaças em tudo e todos, o que levou os Estados Unidos a
apoiarem sangrentas ditaduras. Foi nesse clima pesado, de temores e
desconfianças, que ocorreram o golpe de 1964 e os fatos posteriores,
inclusive as mortes dos três líderes. Por outro lado, no âmbito regional
do Cone Sul se desenvolvia a facinorosa Operação Condor (*), até hoje mal
esclarecida, reunindo diversos países, inclusive o Brasil, com o objetivo
de neutralizar os que se opunham às ditaduras que tomaram o poder nesses
países. Suspeita-se que resultaram de operações desse tipo as mortes de
Orlando Letellier, nos Estados Unidos, Juan José Torres, no Uruguai,
Alexos Panagulis, em Atenas, Zuzu Angel, no Rio, Sérgio Fleury, no litoral
paulista, e vários outros, inclusive do trio brasileiro. Além disso,
corriam em surdina comentários de que elas representavam uma “limpeza da
área”, sem a qual a abertura do regime brasileiro não aconteceria.
Admitindo-se essa versão, JK, Jango e Lacerda teriam sido vítimas duas
vezes: da ditadura e da abertura. É curioso recordar que os políticos
civis que mais batalharam pelo golpe acabaram engolidos por ele. Foi o que
aconteceu com Jânio Quadros, Adhemar de Barros e Carlos Lacerda. Sobrou
Magalhães Pinto porque, parece, estava muito doente. Eles esqueceram o
velho ensinamento da Ciência Política de que os processos políticos podem
ser deflagrados, mas nunca controlados. Para completar o quadro, JK, Jango
e Lacerda, antes ferrenhos adversários e até inimigos, organizavam o
movimento denominado “Frente Ampla”, cujo manifesto os dois últimos já
haviam assinado (**). Todos reconheciam que seria a única forma de
abreviar a ditadura e, ainda que retorcendo os narizes, trataram de se
entender. Com esse objetivo, Lacerda visitou Jango em Montevidéu.
JK e Jango tiveram os mandatos cassados e os direitos políticos suspensos
por dez anos, mas o prazo já havia decorrido. Lacerda tivera os direitos
suspensos, mais tarde, e os recuperaria no ano seguinte. Todos poderiam,
em tese, participar do processo eleitoral que se avizinhava, o que causava
temor e preocupação ao governo, em especial Lacerda, cuja capacidade de
mobilização era reconhecida. Num de seus arroubos, ele havia declarado que
lutaria contra o sistema dominante mesmo com risco da própria vida.
Aliados, os três seriam invencíveis. Cansado do exílio, Jango se preparava
para retornar ao Brasil, possibilidade que andara sondando e que, a rigor,
não tinha obstáculos. Estava a situação nesse pé quando todos foram
colhidos pela indesejada das gentes, – como dizia o poeta, – de forma
inesperada e estranha. Todas essas mortes foram, de certa forma,
anunciadas, ocorreram dentro de um período curto, na esteira de mortes
semelhantes no cenário internacional e deixaram indícios intrigantes.
JK foi o primeiro a perecer, em 22 de agosto de 1976, num esquisito
acidente de trânsito ocorrido na Via Dutra, nas proximidades da cidade de
Resende. Na semana anterior havia corrido a notícia de que havia falecido
em um desastre no Distrito Federal. Ele vinha mantendo segredo sobre essa
viagem ao Rio e até exibira a passagem de avião que o levaria de retorno a
Brasília. Surgiram inúmeras dúvidas, inclusive a respeito de uma parada no
Hotel-Fazenda Vilaforte, cuja ocorrência, ou não, influiria de forma
decisiva nas conclusões do laudo técnico. Além disso, aventou-se a
hipótese de uma bomba colocada no Opala do ex-presidente, tiros desferidos
nos pneus e até um atirador de elite atingindo o motorista na cabeça. Os
negativos das únicas fotos de JK morto, ainda dentro do veículo,
desapareceram sem deixar vestígios. Seguiram-se os costumeiros “inquéritos
rigorosos”, comissões e diligências, afastando sempre – como seria de
esperar - a hipótese de atentado.
Em 6 de dezembro de 1976, portanto, três meses e quinze dias depois,
falecia João Goulart, em sua estância de Mercedes, na Argentina. Não houve
testemunhas do óbito, presenciado apenas pela viúva, e atestado por um
médico pediatra, de uma longínqua cidade, como provocado “por una
enfermedad.” As circunstâncias do velório e sepultamento foram estranhas,
revestidas de múltiplos incidentes, e nunca se fez uma exumação.
Suspeitou-se até mesmo de que o corpo não estivesse no jazigo para evitar
a exumação. Ele estava bem de saúde, embora tomasse medicamentos para
controle da pressão, importados da França, além de alguns adquiridos em
farmácias normais. Surgiram suspeitas de que foi envenenado com esses
medicamentos estrangeiros e existem pesquisadores sustentando a hipótese
de atentado, baseada em inúmeros pequenos detalhes.
Cinco meses e quinze dias após, em 21 de maio de 1977, chegava a vez de
Lacerda. Com sintomas gripais, foi internado na Clínica São Vicente, no
Rio de Janeiro, falecendo no dia seguinte, vitimado por uma septicemia
generalizada, ou seja, infecção geral, de origem externa, para a qual não
havia explicação razoável. Muitas suspeitas cercaram a morte do
ex-governador, mas nenhum procedimento legal foi instaurado para
esclarecê-la. Não se descobriu a “porta de entrada” dessa septicemia.
Segundo os autores, “Lacerda morreu devido a um estado altamente
infeccioso que não foi devidamente combatido, pois havia dúvida sobre a
verdadeira causa dos sintomas que apresentava” (pág. 228). É curioso que
não tenham sido realizados todos os exames e investigações de praxe, ainda
mais em se tratando de quem era. Ficou em aberto a hipótese, levantada na
época, de envenenamento por antraz, através de correspondência, livro,
alimento, pomada, peça de vestuário ou mobiliário contaminada, assento de
carro etc.
Em torno dos casos pulularam versões e comentários, surgiram depoimentos
taxativos e espertalhões tentando “vender” informações. Mas as questões
essenciais continuam sem respostas convincentes. Atentado ou coincidência,
a verdade é que ocorrera a “limpeza do terreno” para a permanência do
grupo dominante, sem perigo de retorno dos políticos derrubados, mesmo
havendo a abertura estimulada pelo Governo Carter, dos Estados Unidos.
Todos os três eram severamente vigiados em todos os seus passos e havia
ordem superior para que Jango fosse preso caso ingressasse no território
nacional. Diante de tantos indícios e circunstâncias, muitas perguntas
esperam por respostas adequadas, razão pela qual o livro dos jornalistas
não se fecha em torno de conclusões, deixando ao leitor o julgamento, até
que um dia, quem sabe, esses esqueletos venham a ser tirados do armário.
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(*) Sobre a Operação Condor, bastidores da política brasileira e do Cone
Sul, personalidades da vida pública e outros fatos, vide os livros “Dossiê
Brasil”, de Geneton Moraes Neto (Editora Objetiva – Rio – 1997) e
“Nitroglicerina Pura”, de Geneton Moras Neto e Joel Silveira (Editora
Record – Rio – 1992).
(**) O manifesto da Frente Ampla foi publicado no livro “Uma rosa é uma
rosa é uma rosa”, de Carlos Lacerda (Editora Nova Fronteira – Rio – 1977).
(2004)
(26 de setembro/2009)
CooJornal no 651
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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