29/08/2009
Ano 12 - Número 647
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
A PAIXÃO PELOS LIVROS
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PROFECIAS VÃS E MIRABOLANTES
Quando teve início a difusão da Internet, repetiram-se as profecias no
sentido de que o livro, em seu formato tradicional, estava com os dias
contados e acabaria por desaparecer num futuro não muito distante. A
freqüência com que surgiam esses vaticínios deixou deveras preocupados os
amantes do livro, mas foi uma preocupação vã porque até agora aquelas
profecias se revelaram mirabolantes, não se realizaram, e os fatos parecem
indicar que estavam equivocadas. Com efeito, nunca foram publicados tantos
livros e sobre os mais variados assuntos como nos dias de hoje, inclusive
no Brasil, e o consumo também cresceu de forma considerável.
BIENAIS E FEIRAS: SUCESSO RECORRENTE
As Bienais do Livro, tanto em São Paulo como no Rio, são visitadas por um
público cada vez maior e vendem milhões de exemplares de todos os gêneros.
O mesmo ocorre com as feiras mais tradicionais realizadas em várias
cidades, como em Paraty e Porto Alegre, por exemplo, cujas vendas são
consideráveis. É verdade que, em termos comparativos com nossa população,
o percentual de compradores de livros ainda é pequeno, mas houve uma
evolução sensível desde que comecei a freqüentar essas feiras. Sempre que
visito as livrarias, em especial as grandes, fico impressionando com a
quantidade, a qualidade, a variedade e o tamanho das obras publicadas.
Livros sofisticados, impressos em papel especial, em várias cores e
recheados de ilustrações revelam uma indústria livreira competente e
arrojada, sinal de que confia no mercado e investe pesado. Afirmava-se
também que os livros grandes, com muitas páginas, não encontrariam
público, mesmo porque o tempo dos leitores é cada vez mais escasso. Puro
engano: obras enormes, em vários volumes, beirando o milheiro de páginas,
figuram muitas vezes entre as mais vendidas, apesar do preço elevado. Em
viagem a São Paulo conheci a “Livraria da FNAC”, num imenso subsolo da
Avenida Paulista, cuja exposição é tão grande e variada que mais parece um
shopping livreiro, exigindo tempo e paciência para uma simples visita. Ela
promove, todos os meses, inúmeros eventos relacionados ao livro e à
literatura a que denomina “Encontros na FNAC”, atraindo considerável
público interessado. Por outro lado, tanto os catálogos das editoras como
as notícias de lançamentos de novos títulos, publicadas nos jornais,
informam a respeito da grande quantidade de obras novas que são colocadas
no mercado a todo instante. O jornal “Folha de S. Paulo” criou a “Publifolha”,
espécie de editora paralela de livros, e tem feito o lançamento de obras
importantes, nacionais e estrangeiras, a preços reduzidos e com boa
qualidade gráfica. A “Biblioteca Folha” publicou uma coleção de clássicos
a preços baixos em relação aos de mercado, incluindo obras de Hemingway,
Graham Greene, Somerset Maugham, Franz Kafka, Vargas Llosa, F. Scott
Fitzgerald, Joseph Conrad, James Joyce, Vladimir Nabokov, Graciliano Ramos
e outros. Depois, em nova série, publicou uma coleção dos melhores autores
nacionais, entre os quais Machado de Assis, Guimarães Rosa, Lima Barreto,
Mário de Andrade, Érico Veríssimo e outros, também absorvida em quantidade
pelos leitores. A reedição da obra adulta de Monteiro Lobato, agora pela
Editora Globo, tem superado todas as expectativas, provocando agradável
surpresa. Conclui-se, pois, que aqueles que previam a substituição do
livro pelo computador estavam equivocados. Esse discurso ainda é repetido,
aqui e ali, pelos preguiçosos, porque a leitura é um exercício a dois, que
exige do autor e do leitor, e requer certa dose de imaginação, ou pelos
chamados “analfabetos funcionais”, aqueles que, mesmo sabendo ler, não
lêem. Em recente artigo a respeito, Ferreira Gullar mostrou, com base em
elementos históricos, que todas as profecias sobre o fim do livro
falharam. Livro e computador seguirão seus passos em linhas paralelas.
PANORAMA NO ESTADO
Aqui no Estado a situação não é tão promissora. Nossas feiras do livro são
fracas e não dispomos de boas livrarias, com poucas exceções. E o mais
grave é que não temos livreiros, na verdadeira acepção da palavra,
daqueles que conhecem e amam o métier, ressalvadas as exceções de praxe.
Salva-se a Feira do Livro de Jaraguá do Sul, cuja terceira edição, em
julho passado, foi um grande sucesso.
Consta que existem no Estado cerca de cinqüenta editoras, entre as quais
as oficiais.
A rede de livrarias no território estadual é pequena, o mesmo ocorrendo
com as bibliotecas públicas, muitas delas apenas nominais, que não
funcionam ou o fazem de forma precária. A visita a muitas delas é
desanimadora. Creio que nunca houve, pelo menos que me lembre, um esforço
sério e contínuo para dotar o Estado de bibliotecas públicas bem
aparelhadas, com um acervo razoável e pessoal qualificado.
LIVRARIAS E SEBOS
No plano nacional tem aumentado o número de livrarias convencionais. Ao
lado delas funcionam os sebos, muitos deles de luxo, embora a maioria seja
popular, instalada nos mais diversos locais, inclusive em calçadas das
vias públicas. Os primeiros compram e vendem obras raras, esgotadas e de
difícil acesso, atingindo algumas delas preços incríveis. É o caso da
“Leart – Livraria e Encadernação”, pertencente à amiga Zelina Castello
Branco, viúva do escritor, jornalista e bibliófilo Carlos Heitor Castello
Branco, o maior expert em livros que pude conhecer. Instalada no bairro de
Pinheiros, em São Paulo, possui livros que fazem a alegria de
colecionadores de todo o país e que a visitam de tempos em tempos na
incansável pesquisa de raridades. Alguns sebos paulistanos também são
admiráveis pela quantidade e variedade de obras à venda. Em visita a um
deles, que ocupa nada menos que nove andares, com as paredes recobertas de
estantes repletas, o gerente ficou muito aborrecido porque não encontrei
nenhum dos três títulos que procurava. Outros sebos bons existem também no
Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Florianópolis, Blumenau e outras
cidades, inclusive aqui, muitos deles com aquele cheirinho característico
do livro usado que os identifica à distância. Sebos populares vendem
livros a preços inferiores ao de um exemplar de jornal. Só não lê quem não
quer. Nas cidades nordestinas é comum encontrar sebos em plena rua e em
todos os lugares, costume que não existe por aqui, onde os livros só são
exibidos de maneira mais formal.
COMÉRCIO MARGINAL
À margem desse mercado oficial do livro se desenvolve imensa rede informal
constituída pelas pequenas editoras, edições feitas pelos próprios autores
(edições do autor), edições feitas em sistema de cooperativas, obras
editadas por empresas e instituições culturais e obras fora do comércio.
Em tiragens maiores ou menores, quase nunca chegam às livrarias ou só são
expostas em algumas, realizando seus autores as vendas diretas aos
interessados, com largo uso do sistema dos correios para a distribuição.
Circula dessa forma grande volume de livros, cujo número é impossível
precisar.
Houve um período bastante longo em que ocorreu verdadeira “febre” de
antologias, todas publicando e vendendo. O encarecimento dos custos
diminuiu essas edições, embora muitas ainda continuem sendo feitas. A
publicação por tais meios nem sempre influi na qualidade das obras; muitas
vezes são de qualidade literária superior às que contam com grande
divulgação e esmerada distribuição. A maioria dos best-sellers que pulula
nas montras dos livreiros é de valor literário inferior. Em literatura,
distribuição agressiva e divulgação constante na mídia não constituem
garantias de qualidade. Muitos autores célebres preferiram publicar seus
livros em pequenas edições pessoais e bem elaboradas que em tiragens
mecânicas e impessoais saídas de grandes prelos. O escritor português
Miguel Torga é um exemplo; a britânica Virgínia Woolf criou pequena
editora artesanal na qual dava a público obras artísticas em conteúdo e
feição gráfica. Por outro lado, muitos autores que publicam por conta
própria vendem bem, tornam-se conhecidos e até se transformam em
escritores profissionais. Suas obras, com o tempo, conquistam espaços,
vencendo os óbices criados pela ausência de divulgação e se impõem. Tenho
conhecido escritores que viajam pelo país com suas obras embaixo do braço,
vendendo-as aqui e ali, e vivem apenas dessa atividade. Muitos nomes
poderiam ser lembrados.
SOCIEDADES E AGREMIAÇÕES LIVREIRAS
Falando-se em livros, não podem ser esquecidas as sociedades ou
agremiações que reúnem bibliófilos, bibliômanos, bibliomaníacos,
colecionadores aficionados ou simples leitores. Entidades do gênero
existem em todo o mundo. Aqui no Brasil, merece referência especial a
“Confraria dos Bibliófilos do Brasil” (CBB), com sede em Brasília. Criada
por José Salles Neto, com número limitado de associados (apenas 350),
edita obras escolhidas pelos seus integrantes em volumes numerados para
cada um deles, conforme a ordem de sua inscrição. São livros de
reconhecida qualidade literária, sempre que possível publicados em datas
que relembram eventos da vida de seu autor, em formato grande, com
sobrecapa e caixa, ilustrados de forma exclusiva por artistas plásticos de
renome.
A Confraria editou, até o momento em que escrevo, cerca de 15 obras, entre
elas “Dez Contos Selecionados de Clarice Lispector”. Escolhidos com
esmero, com o auxílio do próprio presidente, os contos constituem uma
antologia única, revelando inúmeras facetas da contística da autora em
suas diversas fases. O livro foi composto em linotipo, a impressão do
texto e das vinhetas foi realizada em máquina tipográfica manual, a
encadernação e o acabamento executados por técnico especializado, no miolo
foi utilizado papel de elite, a capa e a sobrecapa feitas em papel
fabricado à mão com fibras vegetais por artesã papeleira. As ilustrações
foram reproduzidas em serigrafia a partir dos originais. Elas são de
autoria do artista plástico Marcelo Grassmann, muito conhecido, que
apresenta, no final do volume, uma suíte com várias páginas de desenhos,
em outra tonalidade de cor, enriquecendo ainda mais o livro.
Como se vê, uma obra similar ao que se faz em todo o mundo nas melhores
editoras artísticas. Em paralelo, a Confraria lançou as “Edições da
Confraria”, publicando livros com venda aberta ao público e com as mesmas
qualidades. Sua mais recente publicação foi “Sentinela do Nada e Outros
Contos”, de autoria do ficcionista e crítico de artes plásticas
catarinense Harry Laus, desconhecido no país mas muito cortejado na
Europa. Em nosso Estado a entidade conta com três ou quatro associados.
(Contatos: Caixa Postal 8 6 3 1 – CEP 70312-970 – BRASÍLIA/DF).
LIVROS SOBRE LIVROS
Como existem livros sobre todos os assuntos imagináveis, é natural que
também existam livros sobre livros. O já mencionado Somerset Maugham,
leitor aficionado, daqueles que, à falta de outra coisa, liam até guias
telefônicos, costumava dizer que não pode haver objeto mais inútil que
livro que fala de outros livros. E, no entanto, ele próprio se entregava
com prazer à leitura desses livros. Pensando bem, de que serve ler livros
sobre outros livros? Não seria mais útil e proveitoso ler os próprios?
Para mim, embora reconhecendo que sou dos poucos, essa leitura ainda tem
encantos. Passam os anos e não me canso de ler coletâneas de ensaios
literários, como acabo de fazer, trilhando as páginas amareladas de um
velho volume denominado “Método e Interpretação”, de José Aderaldo
Castello (Edição do CEC/SP – 1964). Nele o autor reuniu textos analíticos
de livros de diversos autores, entre os quais Lima Barreto, Monteiro
Lobato e Gilberto Amado, nada menos que três dos meus monstros sagrados.
Mesmo sendo um exigente exercício de leitura, foi uma experiência
agradável, mostrando quão vastos são os caminhos que uma obra pode abrir
para um crítico competente. Outras coletâneas de ensaios têm ocupado meu
tempo, algumas delas comentadas neste jornal.
PAIXÃO PELOS LIVROS
Li também uma coletânea de crônicas sobre livros, esta mais voltada à
análise da paixão livresca, publicada por pequena editora Trata-se de “A
paixão pelos livros”, reunindo depoimentos de autores brasileiros e
estrangeiros, como Carlos Drummond de Andrade, D’Alembert, Flaubert,
Petrarca, John Milton, Camilo Castelo Branco, Montaigne, William Saroyan,
Varlam Chalámov, Plínio Doyle, José Mindlin e outros. A disparidade
literária entre os textos salta aos olhos, mas o conjunto é interessante.
Mindlin e Doyle não são escritores, embora tocados pela mesma paixão que
fez deles os maiores bibliófilos nacionais. Os depoimentos do russo Varlam
Chalámov e do norte-americano William Saroyan são tocantes, como também o
empenho de Doyle para obter algum livro desejado, virando mundos e fundos
para integrá-lo à sua biblioteca, hoje pertencente à Fundação Casa de Rui
Barbosa. Como se sabe, ele foi o anfitrião do “Sabadoyle”, reunião de
escritores que acontecia em sua residência, no Rio de Janeiro, e que tive
ocasião de freqüentar algumas vezes, onde conheci alguns escritores que
depois se tornaram grandes amigos, como Joaquim Inojosa, Sílvio Meira,
José Chamilete e outros. Iniciadas por Drummond, as reuniões dos sábados
duraram cerca de trinta anos e reuniam as maiores figuras de nossas
letras. Alguns escritores faziam longas viagens para comparecer. Não tinha
estatuto, regulamento ou quaisquer normas. Um dos convidados era
encarregado de lavrar a ata, algumas delas feitas em versos, que deveria
ser lida ao final da reunião. O nome “Sabadoyle” foi inventado por Raul
Bopp, o célebre autor de “Cobra Norato” (sábado+Doyle). Sobre ele existe
hoje extensa bibliografia e muitas atas foram publicadas.
Outro apaixonado foi o poeta Cassiano Nunes (1921/2007). Ele vivia –
literalmente – na biblioteca, uma vez que os livros invadiram todas as
peças de sua casa, inclusive o quarto de dormir.
O livro aqui comentado faz indagar sobre a forma como se inocula a “doença
livresca” e o apego que se desenvolve na pessoa, tantas vezes inibindo-a
de se desfazer de um livro que nunca serviu para nada, é um autêntico
trambolho, mas que tem algo de especial e indefinível aos olhos de seu
dono. Como tem acontecido comigo.
LIVROS QUE NÃO SE VENDEM
E os livros que não se vendem? Nelson Palma Travassos, editor que passou a
vida fazendo livros, próprios e alheios, costumava dizer que livro que não
se vende é inútil. É claro que tal afirmação era uma brincadeira, pois, se
assim não fosse, os livros mais importantes que existem, ou pelo menos a
maioria deles, nunca teria sido publicada. O próprio Travassos, homem
culto e escritor de talento, sabia muito bem disso, tanto que publicou
inúmeros livros de vendagem duvidosa mas de significação cultural ou
literária. Como se isso não bastasse, ele próprio publicou um livro
denominado “Livro sobre livros” (Editora Hucitec – S. Paulo – 1978),
reunindo parte do que produziu de melhor.
Eis aí algumas observações, muito pessoais e empíricas, de quem tem vivido
os últimos trinta e cinco anos às voltas com os livros, lendo-os,
divulgando-os, escrevendo-os e viajando sempre com eles embaixo do braço.
E que não saberia viver num mundo onde eles não existissem.
(29 de agosto/2009)
CooJornal no 647
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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