Enéas Athanázio
A SAGA DE ZUMBI
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Conhecidos, em geral, de maneira superficial, os episódios do Quilombo de
Palmares, liderados por Zumbi, constituem passagens muito interessantes de
nossa História e se inscrevem entre os grandes movimentos libertários de todo
o mundo. Embora tenha resistido por 64 anos, entre 1630 e 1694, repelindo de
forma sistemática os diversos ataques sofridos, esse quisto negro instalado em
território nacional costuma ser abordado de forma ligeira, quando não é
omitido, em nossa historiografia oficial. Nos anais históricos estrangeiros,
no entanto, costuma ser abordado com minúcia e destaque.
Constituído
por uma série de aldeias semelhantes às africanas, - os mocambos, - esse
quilombo se estendia por uma área de cerca de 60 léguas, entre as serras da
Barriga e da Jussara, no município de União dos Palmares, no atual Estado de
Alagoas, ambos inexistentes na época. Local elevado, de difícil acesso e
penetração, dotado de terras férteis e águas abundantes, era coberto por
densas florestas que forneciam madeira para as construções, caça e pesca em
quantidade para a alimentação dos moradores. A cidade mais próxima, distante
umas 20 léguas, foi Porto Calvo, o mais importante centro urbano da região.
“Cerca Real do Macaco” abrigava uma espécie de capital do quilombo, com
aproximadamente 1500 construções, ao redor da qual se erguiam os chamados
“mocambos de apoio”. A população total do quilombo foi estimada em 20.000
pessoas. Seu nome se deve à grande quantidade de palmeiras ali existentes até
hoje.
Como informa o historiador Audemário Lins, expert no tema, “o
Quilombo dos Palmares foi inicialmente formado com os primeiros escravos
fugidos de alguns engenhos que se situavam nas vizinhanças da vila de Porto
Calvo. No início do ano de 1542, um escravo importado de Angola, de nome
Gungadin, fugindo do engenho Nossa Senhora da Ajuda, juntamente com outros
escravos, se dispersaram nas matas e naquele local isolado do mundo fundaram o
primeiro quilombo. Daí por diante, deram começo a uma série de outros mocambos
e através de grandes esforços conseguiram provisoriamente a tão desejada
liberdade. Naquela moradia improvisada, esqueciam a senzala, o tronco e tantos
outros locais de sofrimento e de humilhação” (“Zumbi, o rebelde herói negro”,
S.Paulo/Maceió, Editora Catavento, 2001, Pág. 31).
O angolano Gungadin
teria sido, portanto, o pioneiro dos quilombolas, afrontando a férrea
autoridade do senhor-de-engenho e correndo o risco de cair nas mãos dos
temíveis capitães-de-mato, caçadores implacáveis de cativos foragidos. Os maus
tratos, porém, eram de tal severidade e as tarefas impostas tão absurdas que
os negros enfrentavam quaisquer perigos, inclusive mortais, na tentativa de
respirar o ar da liberdade, ainda que precário e repleto de temores. Muitos
preferiam o próprio suicídio a retornar ao cativeiro, lançando-se de propósito
contra as armas agressoras. Nos dias atuais poucos se detêm na análise das
barbaridades cometidas pelos escravistas. Talvez seja porque recordem a maior
nódoa de nossa civilização que esses episódios costumam ser escamoteados.
Foi do engenho Escorial que partiram, fugidos, os primeiros escravos que
deram início ao quilombo de Palmares. Não suportando os maus tratos, ganharam
as matas e foram, aos poucos, se fixar naquelas serras íngremes e
inacessíveis. Preocupados com as invasões francesas, os governantes não
tiveram tempo e recursos para se voltarem contra a cidadela negra que se
implantava na floresta virgem. Os quilombolas, informa o historiador antes
referido, “aproveitaram o precioso tempo para construir um imenso cercado de
madeira e de pedra, e no mesmo período plantaram uma vasta área de fruteiras,
cujos sítios se tornaram belos pomares” (Op. cit., Pág. 34). Com a difusão da
notícia de que os foragidos haviam conquistado, enfim, a liberdade, começou a
afluência de escravos de outros locais e o quilombo não cessou de crescer.
Nele vigorava uma disciplina rígida, com regras instituídas pelos moradores, e
o trabalho constituía uma obrigação de todos. Os conflitos quase não existiam
e tudo pertencia a todos, numa espécie de socialismo rústico. Trataram também
de organizar uma espécie de dispositivo militar com homens treinados para os
combates. Reinava no quilombo o rei Ganga-Zumba.
Enquanto isso, na vila
de Porto Calvo, crescia o menino Zumbi, cuja infância e juventude foram assim
resumidas pelo mencionado autor: “Zumbi era natural de Porto Calvo. Nasceu e
se criou entre a casa paroquial e a sacristia da igreja nova, atual Nossa
Senhora da Apresentação. Durante os primeiros anos de sua infância ele
demonstrava possuir um caráter agressivo e perigoso. O nosso herói era o que
se chama um perfeito boxeador. Os seus certeiros socos e as suas proezas com
os pés e as mãos corriam de boca em boca entre os portocalvenses. Um dia, um
mensageiro negro apareceu, de repente, portando uma missiva enviada pelo seu
tio, o rei Ganga-Zumba, chefe supremo do quilombo de Palmares, convidando-o a
fugir com destino a seu reino...” (Op. cit., Págs. 44 e 45). E assim o jovem
se instalou em terras quilombolas, onde cresceu impregnado dos sonhos de
liberdade nele vigentes, e de tudo participando. Como um dos chefes dos
mocambos e membro do conselho, foi indicado pelo rei, seu tio, já cansado de
tantas lutas, para sucedê-lo. E nessa função se revelou hábil na administração
e na guerra, tornando-se verdadeiro herói negro, até hoje lembrado como
exemplo de coragem e decisão. Sabia aliar autoridade com habilidade
administrativa, além de ter sido um admirável estrategista nas batalhas em
defesa de seu povo.
Embora escravo alforriado Zumbi entendia que a
liberdade deveria se estender a todo seu povo e por isso passou a viver com
ele, tornando-se seu líder. As notícias a respeito de sua força, decisão e
coragem fizeram dele o homem mais temido pelas autoridades,
senhores-de-engenho e militares da época. Seu nome despertava o receio
permanente dos inimigos e, ao mesmo tempo, reforçava a confiança de sua gente.
Sob sua orientação, interceptavam-se mercadorias destinadas às fazendas e
engenhos, organizavam-se ataques para libertação de outros escravos e atos de
verdadeira guerrilha que começaram a ameaçar de forma séria todas as
propriedades da região e até mesmo as vilas. Muitos moradores preferiam
negociar com os quilombolas, evitando o confronto, numa demonstração de que os
habitantes dos mocambos começavam a ser aceitos como iguais. Com isso não
concordava, porém, o poder constituído e os ataques contra Palmares se
tornaram cada vez mais violentos e freqüentes. O quilombo entrou em crise, as
lavouras diminuíram, a produção se reduziu, as roças foram arrasadas pelos
inimigos, o cerco foi se apertando. O capitão Furtado de Mendonça, comandando
grande contingente de soldados, por determinação do governo da capitania de
Pernambuco, atacou Palmares com a decisão de dizimar até seu último habitante.
Mesmo lutando até o fim. Zumbi pereceu trespassado pelas balas e degolado a
sangue frio, diante de sua loira mulher – Maria. Dando vivas à liberdade. Em
desespero, a mulher teria se lançado ao abismo, falecendo na queda. (Outra
versão afirma que o ataque foi comandado pelo bandeirante paulista Domingos
Jorge Velho e que Zumbi, ainda que ferido, conseguira escapar, sendo morto
somente no ano seguinte), E assim, a ferro e fogo, encontrou seu fim a
cidadela erigida pelos negros que não queriam mais que o direito de viver em
liberdade.
Em maio de 2004, numa viagem a Alagoas, minha mulher e eu
decidimos visitar aquela região e conhecer in loco o palco desses
acontecimentos. Seguindo no rumo norte, em direção à divisa de Pernambuco,
chegamos a União dos Palmares, distante 81 quilômetros de Maceió. Como fosse
um sábado, aproveitamos para visitar a feira livre, cujas barracas se
estendiam por quase toda a cidade, com a incrível quantidade de toldos das
mais variadas cores tomando as ruas e vendendo tudo que se possa imaginar,
desde frutas e obras de artesanato até bois vivos, numa impressionante
profusão de mercadorias. Tons de pregões, conversas, músicas e sons
indefiníveis enchiam o ar de um bruaá impossível de descrever. Caminhões “paus
de arara” chegavam e partiam para todos os recantos do sertão, do agreste e da
zona da mata, trilhando por entre o mar de canaviais. Caminhonetes, carroças,
charretes, carrinhos-de-mão, cargueiros – tudo servia para transportar para lá
e para cá os produtos dos negócios. Depois de muitas andanças, percorremos a
cidade, observando inclusive a “Casa do Poeta Jorge de Lima”, lá nascido, e o
“Museu Maria Mariá.”
Mesmo com o chão molhado pelas recentes chuvas,
enfrentamos a subida para o topo da Serra da Barriga, onde ficava o
quartel-general do quilombo. Graças à perícia e à coragem do motorista, João,
percorremos os quinze quilômetros de curvas que margeiam despenhadeiros
assustadores e vencemos aquela subida tão empinada que parece demandar ao céu.
Por caminhos estreitos e cobertos de capim, alcançamos a torre da Embratel,
erguida à beira do precipício, de onde se avista toda a região, as serras e a
planície, lá embaixo. Ali ficava o posto das sentinelas do reduto, de modo que
ninguém poderia se aproximar sem ser avistado. Mais adiante, num grande platô,
deparamos com o local em que funcionava o comando do quilombo. Dali se enxerga
todo o vale onde se espalhavam os mocambos e, mais adiante, a Serra da
Jussara. Tudo verdejando, coberto de matas e árvores frutíferas, creio que
descendentes daquelas plantadas em grande número pelos quilombolas. A estátua
de Zumbi e de outras figuras destacadas, placas comemorativas e mirantes ali
se encontram, lembrando que aquele é o chão da liberdade e permitindo espraiar
a vista em derredor, até o ponto em que céu e montanha se misturam num azulado
indistinto. Em algumas cabanas, cobertas de palha, se desenvolvem, todos os
anos, solenidades, representações e performances lembrando os episódios do
quilombo e mantendo viva sua memória.
Observando lá do alto é mais
fácil compreender como aquele povo, com minguados recursos e armas, pôde
resistir por mais de meio século ao constante assédio dos exércitos oficiais
aliados ao poder econômico.
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Fontes: “Enciclopédia Brasileira Globo”, P. Alegre, 1971, Vol. IX.
“Zumbi, o rebelde herói negro”, Audemário Lins, S. Paulo/Maceió, Edições
Catavento, 2001. “Casa-Grande & Senzala”, Gilberto Freyre, Rio de Janeiro,
Livraria e Editora José Olympio, 1983. “Guia do Nordeste”, Editora Abril/4
Rodas, 2004. Folhetos da Prefeitura Municipal de União dos Palmares (AL) e
informações obtidas no local. _____________________________
(22 de agosto/2009) CooJornal no 646
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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