Enéas Athanázio
MERGULHO NO MUNDO DO VELHO HEM
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Depois de tempos
afastado dela, mergulhei na obra de Ernest Hemingway (1899/1961), experiência
sempre surpreendente e enriquecedora. Concluí esse périplo com a releitura de
“Do outro lado do rio, entre as árvores”, um dos romances menos conhecidos do
escritor e que não mereceu muitos aplausos da crítica mas que contém uma
história muito humana e tocante, além de revelar um escritor dono de sua arte
e vivendo um período em plena maturidade profissional.
A primeira
observação que ocorre ao leitor é sobre a inegável técnica do autor na
realização da obra, em especial no esmerado e perfeito uso do diálogo, assunto
em que foi mestre. Como se sabe, ele costumava escrever à mão, com exceção dos
diálogos, datilografados numa máquina colocada sobre uma mesa alta que lhe
permitia escrever em pé. Neste romance o chamado estilo Hemingway, muito
pessoal e próprio, está visível como nos melhores momentos de sua prosa.
Outra observação que se impõe é relativa à imensa cultura do autor, não
apenas livresca, mas vivida e feita de experiências próprias, viajando,
observando, divertindo-se e sofrendo, pois que para o escritor todas as
vivências acabam sendo positivas, sejam elas boas ou más. Aqui ele vai
ministrando verdadeiras aulas, encaixadas na ficção, sobre a geografia da
região de Veneza, onde decorre a história, a paisagem, os canais, ruas,
palácios, residências senhoriais, praças, museus e até mercados, que, segundo
ele, “é o que existe de mais parecido com um bom museu.” E de fato, poucos
lugares expressam tão bem a alma de um povo como mercados e feiras populares,
fato também anotado por inúmeros outros andarilhos, como João do Rio, Jorge
Amado e Pablo Neruda, entre outros.
O romance tem muito de
memorialista. Nele o coronel Richard Cantwell, oficial americano de cinquenta
anos, desgastado pela guerra e com as coronárias claudicantes, prestes a
fulminá-lo, retorna à Itália em busca dos lugares onde havia lutado e sofrido
sérios ferimentos. Hospedado no Hotel Gritti, à beira do Grande Canal, em
Veneza, dali se entrega a uma estimulante volta ao passado de lutas e
vitórias, recordadas com ternura, alternando alegrias e tristezas. E naquela
cidade que adora, vai encontrar seu último e verdadeiro amor, uma jovem de
dezoito anos, de família nobre e antiga, que desaprova tão estranho namoro.
Mas as coisas prosseguem sem dramas, cumprindo o coronel o programa traçado e
desfrutando com avidez todos os momentos. Até que, após dolorosas despedidas
da amada e uma caçada mal sucedida nas redondezas, o coração, cansado, se
entrega e ele perece no banco traseiro do carro. Do outro lado do rio, entre
as árvores. Nisso tudo não há de dramalhão, em palavreado carregado, mas tudo
é encarado com a objetividade e a frieza de um homem calejado pela vida, não
obstante feliz pela bela aventura final de sua vida. Muito do que acontece,
inclusive nas recordações de batalhas e fatos pessoais da vida se revelam
situações vividas pelo próprio autor e que seus biógrafos têm registrado. Tudo
envolto na ficção em que Hemingway foi mestre consumado.
(Revista Rio Total nº
637, ano 12, CooJornal, 20/06/2007)
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
Enéas Athanázio,
escritor e Promotor de Justiça catarinense (aposentado), cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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