16/07/2024
Ano 27
Número 1.375





ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio




MERGULHO NO MUNDO DO VELHO HEM

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal


Depois de tempos afastado dela, mergulhei na obra de Ernest Hemingway (1899/1961), experiência sempre surpreendente e enriquecedora. Concluí esse périplo com a releitura de “Do outro lado do rio, entre as árvores”, um dos romances menos conhecidos do escritor e que não mereceu muitos aplausos da crítica mas que contém uma história muito humana e tocante, além de revelar um escritor dono de sua arte e vivendo um período em plena maturidade profissional.

A primeira observação que ocorre ao leitor é sobre a inegável técnica do autor na realização da obra, em especial no esmerado e perfeito uso do diálogo, assunto em que foi mestre. Como se sabe, ele costumava escrever à mão, com exceção dos diálogos, datilografados numa máquina colocada sobre uma mesa alta que lhe permitia escrever em pé. Neste romance o chamado estilo Hemingway, muito pessoal e próprio, está visível como nos melhores momentos de sua prosa.

Outra observação que se impõe é relativa à imensa cultura do autor, não apenas livresca, mas vivida e feita de experiências próprias, viajando, observando, divertindo-se e sofrendo, pois que para o escritor todas as vivências acabam sendo positivas, sejam elas boas ou más. Aqui ele vai ministrando verdadeiras aulas, encaixadas na ficção, sobre a geografia da região de Veneza, onde decorre a história, a paisagem, os canais, ruas, palácios, residências senhoriais, praças, museus e até mercados, que, segundo ele, “é o que existe de mais parecido com um bom museu.” E de fato, poucos lugares expressam tão bem a alma de um povo como mercados e feiras populares, fato também anotado por inúmeros outros andarilhos, como João do Rio, Jorge Amado e Pablo Neruda, entre outros.

O romance tem muito de memorialista. Nele o coronel Richard Cantwell, oficial americano de cinquenta anos, desgastado pela guerra e com as coronárias claudicantes, prestes a fulminá-lo, retorna à Itália em busca dos lugares onde havia lutado e sofrido sérios ferimentos. Hospedado no Hotel Gritti, à beira do Grande Canal, em Veneza, dali se entrega a uma estimulante volta ao passado de lutas e vitórias, recordadas com ternura, alternando alegrias e tristezas. E naquela cidade que adora, vai encontrar seu último e verdadeiro amor, uma jovem de dezoito anos, de família nobre e antiga, que desaprova tão estranho namoro. Mas as coisas prosseguem sem dramas, cumprindo o coronel o programa traçado e desfrutando com avidez todos os momentos. Até que, após dolorosas despedidas da amada e uma caçada mal sucedida nas redondezas, o coração, cansado, se entrega e ele perece no banco traseiro do carro. Do outro lado do rio, entre as árvores. Nisso tudo não há de dramalhão, em palavreado carregado, mas tudo é encarado com a objetividade e a frieza de um homem calejado pela vida, não obstante feliz pela bela aventura final de sua vida. Muito do que acontece, inclusive nas recordações de batalhas e fatos pessoais da vida se revelam situações vividas pelo próprio autor e que seus biógrafos têm registrado. Tudo envolto na ficção em que Hemingway foi mestre consumado.

(Revista Rio Total nº 637, ano 12, CooJornal, 20/06/2007)


Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email e.atha@terra.com.br  



Enéas Athanázio,
escritor e Promotor de Justiça catarinense (aposentado), cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC



Direitos Reservados
É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor.