30/05/2009
Ano 12 - Número 634
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
O
AMIGO ESCRITO DE MONTEIRO LOBATO
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“Não somos amigos
falados,
somos amigos escritos.”
Monteiro Lobato
Godofredo Rangel (1884/1951) foi colega de Monteiro Lobato numa
“república” de estudantes, na época em que ambos estudavam Direito nas
“Arcadas”, em São Paulo. Era um pequeno chalé, situado no bairro do
Belenzinho, até hoje existente e que entrou na história literária como
Minarete, assim apelidado pelo poeta Ricardo Gonçalves. Os dois futuros
escritores pouco conviveram e depois se separaram, cada qual seguindo seu
destino. Rangel ingressou na magistratura mineira e Lobato, depois de ter
sido Promotor Público, virou fazendeiro, editor e, por fim, escritor
profissional. Poucas vezes se encontraram no correr da existência mas, em
1903, iniciaram uma correspondência literária que durou 44 anos e foi
reunida, em parte, nos dois volumes de “A Barca de Gleyre”, de Monteiro
Lobato. As cartas-respostas de Rangel nunca foram publicadas e nem se sabe
se ainda existem. Pouco antes de falecer ele renovou a proibição de sua
publicação, de forma que “A Barca” ficou para sempre um livro incompleto
em que só um lado fala e o outro permanece em silêncio. Como biógrafo de
Rangel, muito batalhei pela publicação dessas e outras cartas mas não tive
sucesso e elas continuam inéditas, talvez para sempre.
Godofredo Rangel foi romancista, novelista, contista, cronista, crítico,
gramático e tradutor. Sua obra é pouco volumosa mas de grande qualidade,
fato ressaltado pela melhor crítica da época. Não foi, porém, um homem
bafejado pela sorte.
OS AZARES DE RANGEL
Godofredo Rangel, apesar de seu talento, nunca obteve os favores da boa
sorte. Diria mesmo que foi vítima de muitos azares.
Embora magistrado de carreira, passou a vida a braços com dificuldades
financeiras, obrigando-se a traduzir sem parar e a realizar tarefas
abomináveis para um escritor, como lecionar escrituração mercantil e fazer
a contabilidade de uma usina elétrica, o que levou Lobato a apelidá-lo de
“eletricista do Sapucaí.”
Além disso, sua vida conjugal parece ter sido conturbada desde o início,
como se percebe de certas passagens dos escritos lobatianos. É admirável
que, em circunstâncias tão adversas, pudesse escrever obra tão esmerada.
A SOMBRA QUE OFUSCOU
A excessiva proximidade de Lobato, a quem se ligou desde a mocidade,
também foi prejudicial. Como a árvore normal que tem por destino nascer à
sombra do frondoso carvalho, Rangel acabou ofuscado pela glória literária
do amigo. Percebendo isso, Lobato tudo fez para divulgar e enaltecer a
obra rangelina.
REPERCUSSÃO INCOMUM
A intensa repercussão provocada por “Vida Ociosa”, seu romance de estréia,
publicado em 1920, por paradoxal que pareça, também o prejudicou. Esse
fato, aliado ao grande hiato ocorrido até a publicação de seus livros
posteriores, levou os críticos a analisarem sua obra com base exclusiva no
romance de estréia, abstraindo do restante e dando uma visão distorcida da
realidade. Foi o que ocorreu em quase todos os trabalhos que tenho
encontrado, sendo raras as exceções. O próprio Wilson Martins, nos seus
impiedosos ataques a Rangel, me deixa a nítida impressão de que sua
opinião é formada apenas por “Vida Ociosa”. Assalta-me séria dúvida de que
tenha lido os demais livros do escritor.
SEGUNDA MORTE
Wilson Martins, aliás, nos seus livros e artigos, decretou a segunda morte
de Rangel – a literária. Depois de suas demolidoras palavras, a meu ver
injustas, poucas pessoas se abalançarão a ler, comentar, ensinar ou
publicar Godofredo Rangel. É uma empreitada inglória tentar trazê-lo de
volta ao cenário das letras. Sei disso de experiência própria.
Como se isso não bastasse, a família de Rangel não colabora com os
pesquisadores e pouco se interessa pela sorte do escritor e seu legado
literário. Compraz-se na vaidade provinciana de “ser parente” do grande
escritor que foi amigo e correspondente de Lobato, como se o pobre Rangel
nada mais fosse além disso. Minhas inúmeras tentativas de contato, desde
que comecei a pesquisar, resultaram infrutíferas. Recebi três ou quatro
cartas do Prof. Nello Rangel, filho mais velho do escritor, hoje falecido,
contendo algumas informações mas revelando desconfiança e reserva. Nunca
se abriu ao pesquisador que tentava reconstituir a vida de seu pai e nem
se colocou à sua disposição, como costuma acontecer nesses casos. Atitude
inversa à da família Lobato, que logo se mostrou interessada no meu
trabalho e me enviou cartas e matérias informativas.
Depois de publicado meu livro “Godofredo Rangel”, em 1977, vieram algumas
cartas ufanistas de parentes, orgulhosos com a figura retratada nele. E
foi só.
O VETO
Rangel, como já disse, proibiu a publicação das cartas enviadas a Monteiro
Lobato e que seriam “o outro lado” de “A Barca de Gleyre.” Sua família, no
entanto, parece ter estendido essa proibição indistintamente a todas as
cartas escritas por ele, impedindo assim o conhecimento melhor da obra e
da personalidade do romancista. Nunca consegui entender os temores que
tais cartas possam provocar. Rangel, pelo muito que li e ouvi sobre ele,
era um homem de bem e nada teria a esconder.
MAIS AZARES
Lembro ainda que, quando Secretário da Cultura de Minas Gerais, José
Aparecido de Oliveira se empolgou com meu trabalho e se propôs a editar a
biografia, revista e corrigida, agora com o título de “O Amigo Escrito.”
Enviei o texto original e diversas ilustrações ao referido secretário.
Nesse meio tempo, porém, foi nomeado governador do Distrito Federal e
perdi contato com ele. O novo secretário não se interessou pelo assunto e
o resultado foi a perda dos originais e ilustrações nos escaninhos da
burocracia das Alterosas. Segundo informações oficiais, o material entrou
na Imprensa Oficial do Estado, onde foi protocolado, e desapareceu sem
deixar vestígios, até hoje. Desconfiado das tocaias burocráticas, eu havia
tirado cópias de tudo e o livro acabou publicado, mais tarde, pela
Secretaria da Cultura aqui do Estado (1988). Edição grande, embora
modesta, hoje esgotada.
Como se isso tudo não bastasse, os originais da nova edição de “Vida
Ociosa”, preparados com esmero pela Fundação Casa de Rui Barbosa, tardaram
a encontrar editor. Perambularam de ceca em meca, de editora em editora,
de mão em mão, até que o livro foi lançado por pequena editora carioca,
novata e inexperiente. Brochurinha sem expressão, acrescida de um prefácio
oportunista, não teve a menor repercussão. E o pobre Rangel continua tão
esgotado como antes. O livro trouxe um posfácio meu.
Seja como for, minha contribuição foi dada e acredito que o essencial está
em meus livros, ensaios e artigos. Penso que alguma novidade que acaso
surja não alterará o que foi registrado. Será detalhe secundário.
Vários autores de teses e monografias têm solicitado, ao longo dos anos,
informações sobre Rangel e sua obra, revelando um renovado interesse pelo
autor de “Os Bem Casados.” São fatos auspiciosos, revelando que, apesar de
tudo, a obra de autoria dele ainda encanta a muitos leitores.
AS TRADUÇÕES
Quantos livros foram traduzidos por Godofredo Rangel? Eis aí uma pergunta
com a qual me deparo com freqüência e cuja resposta, nesta altura, parece
impossível. Seu filho, o Prof. Nello Rangel, afirmava que andavam perto de
uma centena, do inglês, do francês e do italiano. Mas a verdade é que,
mesmo com a ajuda dele e de outros amigos, só foi possível relacionar
pouco mais de cinqüenta obras, incluindo algumas que foram revistas por
ele, número com o qual concorda Raimundo de Menezes em seu “Dicionário
Literário Brasileiro.” A relação atualizada até hoje é a seguinte:
1 - “A cura pelo pensamento” - Sachet
2 – “A tragédia de minha vida” – Oscar Wilde
3 - “Oscar Wilde, sua vida e confissões” – Frank Harris (Cia. Editora Nacional)
4 – “Alice no país das maravilhas” – Lewis Carrol
5 - “A crise de nossa civilização”
6 - “As irmãs brancas”
7 – “A ciência da natureza humana” – Alfred Adler
8 – “Bem aventurados os humildes”
9 – “Corsário vermelho”
10 – “Como pensamos. Como formar e educar o pensamento” – John Dewey
11 – “Disraeli” – André Maurois
12 – “Democracia e educação” – John Dewey (em co-autoria com Anísio
Teixeira)
13 – “Geografia pitoresca para as crianças” – Willyer
14 – “História da filosofia” – Will Durant (em co-autoria com Monteiro
Lobato)
15 – “História da civilização” – Will Durant (ambos da Cia. Editora
Nacional)
16 – “História do mundo para crianças” (Van Loon?)
17 – “História dos Estados Unidos” – André Maurois
18 - “Maravilhas da medicina” – Dietz
19 – “Lógica” – Giard
20 – “Madre Cabrini”
21 – “Noites de vigília” – A. J. Cronin
22 – “O caminho da felicidade” – Pouchet
23 – “Os filhos” – Pouchet
24 – “Sede otimistas” – Pouchet
25 – “O apóstolo” – Sholem Asch
26 – “Por que os homens falham?” – Giovani Papini
27 – “Vida de Santo Agostinho” – Giovani Papini
28 – “Sete homens e uma mulher”
29 – “Vida de Metternich” – Salvador de Madariaga
30 – “Vida de Colombo” – Salvador de Madariaga
31 – “Zola e seu tempo” – Mathiew Josephson
32 – “Os judeus e nós os cristãos” – Oscar de Férenzy (Cia. Editora
Nacional, 1939)
33 – Beaumarchais (ignora-se o nome da obra)
34 – Victor Hugo (idem)
35 – “A mulher” – Michelet (primeira tradução, deveria chamar-se “O Amor”,
sendo o título trocado por equívoco)
36 – “O it” – Elinor Glyn (Cia. Editora Nacional, julho de 1940)
37 – “Enquanto é tempo de amar” – Florence L. Barclay (idem, 1944)
38 – “Vendida” – W. Heimburg (idem, 1935)
39 – “O outro milagre” – Henry Ardel (idem, s/d)
40 – “O sheik” – E. M. Hull (idem, s/d)
41 – “O filho de Tarzan” – Edgar Rice Burroughs (Cia. Editora Nacional –
Coleção Terramarear – Vol. 24, 1935)
42 – “Tarzan, o rei da jângal” – Edgar Rice Burroughs (idem, idem – Vol.
37, 1935)
43 – “O fantasma de Sandokan” – Emílio Salgari (idem, idem – Vol. 46,
1936)
44 – “A ilha de coral” – R. M. Ballantine (idem, idem – Vol. 10, 1936)
45 – “Perdidos no deserto” – Mayne Reid (idem, idem – Vol. 47, 1936)
46 – “O homem do Hotel Carlton” – Edgar Wallace (Cia. Editora Nacional –
Série Negra – Vol. 2, 1934)
47 – “A porta dos traidores” – Edgar Wallace (idem, idem – Vol. 20, 1936)
48 – “As cruzadas” – E. Barringtin (Cia. Editora Nacional – Coleção
Paratodos, 1933)
49 – “As cruzadas” – Harold Lamb (Cia. Editora Nacional – 1936)
50 – “Scaramouche, o fazedor de reis” – Rafael Sabatini (idem, idem, 1936)
51 – “O pimpinela escarlate” – Baronesa Orczy (idem, idem, 1934)
52 – “O clube dos suicidas” – R. L. Stevenson (idem, idem, 1933)
53 – “Talleyrand” – Duff Cooper (Cia. Editora Nacional – 1945).
É fácil imaginar o quanto de esforço intelectual foi exigido para realizar
tais traduções, algumas de obras complexas e volumosas. Como asseverou o
crítico Fernando Góes, “Gastou-se traduzindo infatigavelmente uma série
enorme de livros de toda a espécie, o que, por certo, impediu-lhe de
construir a obra que Lobato esperava de seu engenho.” É claro que Rangel
tinha consciência disso mas os minguados proventos da magistratura da
época impunham esses e outros sacrifícios.
A relação é muito incompleta e qualquer informação no sentido de
completá-la será bem recebida.
(30 de maio/2009)
CooJornal no 634
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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