O DESPERTAR
Nos meus dias de garoto ouvi muitas vezes a afirmação de que Santa
Catarina era o Piauí do Sul. A frase continha evidente sentido pejorativo
e preconceituoso e, com certeza, brotava de pessoas que não gostavam de
Santa Catarina e também não gostavam do Piauí. É muito provável que nada
soubessem a respeito deste último e que o Piauí para elas não fosse mais
que um nome. Mas, como a afirmação parecesse espirituosa, repetiam como
papagaios, inclusive na imprensa. Acontece que a malsinada frase teve em
mim um efeito contrário e que considero benéfico; há males que vêm para
bem – diz o povo. É que ela despertou meu interesse por aquele distante
Estado e comecei a ler tudo que pilhava sobre ele e que não era muito. Aos
poucos, colhendo dados daqui e dali, fui construindo uma imagem real do
Piauí e descortinei um Estado interessante, com uma geografia, uma
história e uma paisagem diferentes e, acima de tudo, com uma cultura
admirável em que avultavam expoentes das artes e das ciências, entre os
quais vários de renome nacional e cujas obras mereciam o aplauso da melhor
crítica brasileira. E assim foi até que, por volta de 1970, fiz a primeira
visita, nessa época ainda inédito em livro e sem conhecer ninguém.
Excursão de turista. Voltei carregado de material sobre o Piauí, sua terra
e sua gente, iniciando-se um intercâmbio que se intensificou cada vez mais
e perdura até hoje. A frase maldosa produziu bons frutos.
ONDE FICA O PIAUÍ
Como Teresina, a capital, está situada no interior, não figura no roteiro
comum das viagens turísticas ao Nordeste. Em geral elas se limitam a
curtas visitas às capitais litorâneas, passando de Fortaleza a São Luís,
sem conhecer a chamada “cidade verde”, às margens do rio Parnaíba,
volumoso e longo curso d’água que foi fundamental na história do Estado.
Teresina é a única capital nordestina distanciada do litoral.
O Nordeste brasileiro se divide em quatro regiões a partir do litoral, com
características e climas próprios. A primeira é a zona da mata, situada na
faixa litorânea; a segunda é o agreste, região semi-árida; a terceira é o
sertão, região quase desértica, pelo menos nos longos períodos de
estiagem, e a última é o meio-norte, intermediária com a Amazônia.
Enquanto que, para nós, aqui do Sul, sertão é a mata fechada, a floresta
inceira e erma, no Nordeste é a quase total ausência de vegetação.
O Estado do Piauí, em virtude de sua posição geográfica, está em sua maior
parte dentro do sertão. Piauí e Maranhão formam o que se chama o
Meio-Norte, já possuindo regiões com características amazônicas, fazendo a
transição. Com o formato aproximado de uma bota, o território piauiense
está encravado entre o Ceará e o Maranhão e tem exíguo litoral, ao
contrário de seus vizinhos. Sua primeira capital foi a cidade histórica de
Oeiras, no sul, depois transferida para Teresina, uma das poucas cidades
pré-traçadas do país, como Goiânia, Belo Horizonte e Brasília. Muito
arborizada, ficou conhecida como “cidade verde”, defendendo-se assim do
intenso calor que predomina na região. O Piauí foi o único Estado
brasileiro povoado do interior para o litoral, ou seja, do sul para o
norte, configurando-se em conseqüência uma história singular,
refletindo-se também na formação de seu povo. Embora estreito, o litoral
piauiense conta com o porto de Luís Correia e com a importante cidade de
Parnaíba. Na foz do rio está o célebre Delta do Parnaíba, um dos recantos
mais bonitos do país.
O MAR INTERIOR
Com estreito litoral, o Piauí tem no rio Parnaíba o seu mar interior,
partícipe indispensável de suas realizações. Nascido nas chapadas do sul,
o rio percorre 1716 quilômetros, através de cachoeiras e curvas
caprichosas, em busca do Atlântico, onde forma o Delta que sobrevoei por
duas vezes. Divide o Piauí do Maranhão, em toda a divisa a oeste, e banha
Teresina, em frente à qual, no lado maranhense, está a cidade de Timon.
Navegável em quase metade de seu curso, o Parnaíba foi importante meio de
penetração e transporte na colonização do Estado. Nele navegavam as
pesadas barcas impelidas pelas varas manejadas por “vareiros” que as
levavam rio acima, com a força dos braços, até o destino. Exigia grande
perícia para não encalhar nos numerosos bancos de areia – as “coroas”, no
dizer do povo, - que afloram em muitos pontos do leito. Humberto e Campos,
o celebrado Conselheiro XX, escreveu sentida crônicas relembrando os
padecimentos dos “vareiros” que criavam no peito monstruosos calos, no
local onde apoiavam as varas.
Entranhado na história e na vida piauienses, o Parnaíba é presença forte
na literatura local. Nas obras dos romancistas Assis Brasil e O. G. Rego
de Carvalho ele aparece como elemento destacado no cenário onde se
movimentam os personagens. Outros autores e poetas lhe dedicaram
incontáveis páginas de boa literatura. Foi, porém, Da Costa e Silva, o
maior poeta piauiense e um dos grandes do país, que o consagrou de forma
indelével no célebre soneto “Saudade”, batizando-o para sempre de “Velho
Monge”:
Saudade! Olhar de minha mãe rezando,
E o pranto lento deslizando em fio...
Saudade! Amor da minha terra... O rio
Cantigas de águas claras soluçando.
Noites de junho... O caburé com frio,
Ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando...
E, ao vento, as folhas lívidas cantando
A saudade imortal de um sol de estio.
Saudade! Asa de dor do Pensamento!
Gemidos vãos de canaviais ao vento...
As mortalhas de névoas sobre a serra...
Saudade! O Parnaíba – “Velho Monge”
As barbas brancas alongando... E, ao longe,
O mugido dos bois da minha terra...
Nascido em Amarante, importante cidade do sul do Estado, o poeta se refere
à célebre montanha que se avista na outra margem do rio. “Saudade” se
transformou numa espécie de hino e caiu na boca do povo. Não existe
piauiense letrado que não o conheça.
ALGUNS EXPOENTES
O Piauí tem uma longa tradição cultural. Teresina mantém efervescente
atividade no campo da cultura em geral e das letras em particular. A
Academia Piauiense de Letras, que completou 90 anos em janeiro, é das mais
ativas do país, mantendo sempre um clima liberal propício à mais ampla
discussão. Também realizador é o Conselho Estadual de Cultura, cuja
revista “Presença” é das melhores. Muitos piauienses obtiveram renome
nacional nas artes e nas ciências.
Entre seus múltiplos expoentes, muitos merecem ser lembrados pelo talento
e pela qualidade da obra produzida. Recordemos antes os que já “passaram
para o outro lado do mistério.” O primeiro deles, sem dúvida, é o referido
Da Costa e Silva, o maior poeta piauiense e um dos maiores do país. Clóvis
Moura, sociólogo, historiador e poeta, mestre da negritude, também nascido
em Amarante, e que foi meu dileto amigo. A. Tito Filho, historiador,
incansável agitador cultural, presidente por longos anos da APL, foi o
responsável pela minha aproximação com o Piauí. H. Dobal, grande poeta,
louvado pela melhor crítica, há pouco falecido. José Lopes dos Santos,
também meu amigo, jornalista, advogado e escritor, figura hospitaleira e
simpática. José Expedito Rego, ficcionista, meu correspondente por longos
anos. J. P. de Lima Cordão, romancista, bom amigo, sempre presente nas
minhas visitas a Teresina. O magistrado Sousa Neto, autor de importantes
obras na área do Direito Penal e poeta. Magalhães da Costa e Fontes
Ibiapina, ambos magistrados e ficcionistas, este último cultivando o
regionalismo. O analista político Carlos Castelo Branco, o célebre
Castelinho. Martins Napoleão, grande poeta, autor de copiosa obra. Mário
Faustino, revelação na poesia da época, inovador, desaparecido muito cedo.
E numerosos outros.
Os autores contemporâneos são muitos e praticam todos os gêneros
literários. Manoel Paulo Nunes é destaque como crítico e animador
cultural. Presidente do Conselho Estadual de Cultura, acadêmico, figura
carismática e de forte presença no meio cultural. Herculano Moraes,
historiador da literatura, poeta e jornalista, é ubíquo, está em tudo e em
toda parte, atuante como poucos. Francisco Miguel de Moura, ficcionista e
poeta, escritor ativo e destacado. Hardi Filho, poeta de mérito, William
Palha Dias, romancista, cronista e historiador, Celso Barros Coelho,
jurista e escritor, Kenard Kruel, jornalista e escritor, Benjamim Santos,
biógrafo de Hemingway, Homero Castelo Branco, ficcionista e historiador,
Dagoberto Carvalho Jr., especialista em Eça de Queiroz, Maria Nilza,
ensaísta, Zózimo Tavares, jornalista e historiador, Oton Lustosa,
romancista, Reginaldo Miranda, historiador jovem e de intensa produção,
Elmar Carvalho, poeta, Felipe Mendes, economista, estudiosos dos problemas
locais, Tobias Pinheiro, ex-presidente da Academia Carioca, Neto Sambaíba,
poeta profissional, além de outros tantos.
Não podem ser esquecidos os nomes de Assis Brasil, ficcionista de grande
renome, e O. G. Rego de Carvalho, autor de uma obra admirável e que foi
considerado por alguns críticos como o melhor romancista do país.
ATRAÇÕES E CURIOSIDADES
Em Teresina, dois pontos, pelo menos, merecem destaque. O Museu do Piauí,
no centro, possui admirável acervo, destacando-se o retrato de D. Pedro
II, em tamanho natural, feito pelo nosso Victor Meireles. Nos arredores da
cidade, o encontro das águas dos rios Parnaíba e Poti é um local
agradável, onde existe um parque bem cuidado e acolhedor. Nas cercanias
está a rua em que se estabelecem os artesãos. Vários prédios de grande
beleza arquitetônica se destacam na área central da cidade: o Palácio de
Karnak, sede do governo, a catedral, o teatro, o Clube dos Diários e
outros.
No interior do Estado, destacam-se o Parque Nacional da Serra da Capivara
(São Raimundo Nonato) e o Parque Nacional de 7 Cidades (Piripiri), ambos
conhecidos em todo o país e merecedores de uma visita. No caminho para
este último, destaca-se o Museu do Jenipapo, erigido no local da célebre
batalha. Além disso, vale relembrar o Delta do Parnaíba, um dos panoramas
mais bonitos do país. A natureza foi pródiga com o Piauí.
Na região sul, situam-se as cidades históricas de Amarante e Oeiras. Esta
foi a primeira capital do Estado, é um centro cultural, histórico e
arquitetônico. Amarante é uma cidade curiosa, destacando-se a avenida
principal, preservada e arborizada com espécies regionais. A cidade de
Pedro II é famosa pela qualidade de suas redes.
A região sul do Estado, conhecida como Gurguéia, vem alcançando intenso
desenvolvimento econômico.
O piauiense é acolhedor e hospitaleiro. Ama sua terra com fervor, tanto
que é dos brasileiros que menos emigra.
Por tudo isso e muito mais, o Piauí merece ser melhor conhecido pelos
brasileiros.
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B. Camboriú, 14 de agosto de 2008.
(07 de março/2009)
CooJornal no 622