31/10/2008
Ano 12 - Número 605
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
O DESTINO DA “PRIMAVERA”
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Para a amiga IRENE SERRA
Em visita aos Campos Gerais, encontrei por acaso com Nhô Marco, figura que
não via há muito tempo (*). Com mais de noventa anos, aposentado como
charreteiro da Companhia Americana, está lúcido e conserva muito do antigo
vigor. A cabeleira nevada e cheia, as faces bronzeadas e as bombachas
abaixo da linha da cintura, ameaçando uma queda que jamais ocorreu, não
sofreram mudanças mais visíveis no correr dos anos. Só o revólver da marca
Trade, com cabo de madrepérola, do qual tinha incontido orgulho, não está
na cintura, talvez por desnecessário. Apesar do frio intenso, estava em
mangas de camisa e calçava chinelões de couro cru, sem meias, aparentando
total indiferença à rigorosa temperatura. Cumprimentou com as pontas de
dedos e me deu ligeiro abraço, um tanto seco, como costumam ser os abraços
dos caboclos que não gostam de revelar emoção, coisa pouco condizente com
atitudes de homem-macho.
Convidado por ele, fomos até a casinha onde mora com uma sobrinha.
Sentados na sala, não tardou a aparecer a cuia do mate e uma chaleira
fervente, escurecida pelo fogo. O chimarrão bem feito, com erva de
qualidade, estava suave e aquecia o peito naquela friagem. Principiamos
uma prosa sem pressa e ele revelou a mesma memória privilegiada de dantes.
Enquanto cevava no covo da mão o fumo amarelinho para o palheiro, com a
palha entre os lábios, ele me observava de soslaio, talvez analisando os
efeitos dos anos na minha carcaça. Não demorou muito e a conversa recaiu
sobre os tempos do Anhanguera, onde ele cuidava das imensas terras e matas
da Companhia, trabalho ao mesmo tempo inútil e impossível porque a
vastidão da empreitada exigiria muita gente e não havia meio de praticar
furtos de madeira pela inexistência de estradas, mesmo precárias. Naquele
meio solitário, verdadeiro deserto verde, Nhô Marco viveu longos anos e
deixou transparecer alguma saudade da solidão benfazeja em que ninguém
incomodava. Hoje, suspirou ele, tudo estava devassado e até a estrada de
ferro que dava vida àqueles ínvios não existia mais, transformada em
sucata e entregue ao abandono.
Recordamos depois alguns fazendeiros conhecidos, entre eles o proprietário
da “Fazenda Primavera”, a maior e mais rica da região, verdadeiro mundo à
parte que podia sobreviver quase só do que produzia: Elísio Leite Preto,
por apelido Nhô Pré.
“Pois imagine o senhor, - relatou ele, - que depois da mortandade dos
índios praticada por um bugreiro da Serra-Abaixo, encomendada pelo
fazendeiro, a “Primavera” não teve mais sossego e pegou a decair. A
fazendeira, criada em colégios e que nunca gostou da lida campeira,
mudou-se para a cidade e quase nunca se mostrava na Fazenda. Aristides, o
capataz, braço-direito de Nhô Pré, casou com uma italiana e se bandeou
para o Entre-Rios. Quanto ao negro Arigó, agregado que morava pros fundos,
conselheiro de fiança do fazendeiro, se passou em avançada idade. E os
filhos, ah! estes estudaram e foram viver na cidade grande,
desinteressados das coisas da Fazenda. Meio desnorteado, solito e triste,
Nhô Pré continuou na luta por mais uns par de anos e depois, já bem velho
e um tanto caduco, foi morar na cidade, onde contam que morreu de pura
tristeza.”
Mas o que teria acontecido, indaguei eu, para tão completo abandono? Nhô
Marco pensou um pouco, como se relutasse na resposta, mas acabou relatando
o que soubera de outros.
“O senhor, com certeza, não acredita, mas dizem que a Fazenda ficou mal
assombrada e foi isso que levou a fazendeira a mudar em definitivo para a
cidade. Conta o povo que todas as noites, já tarde, se ouviam gemidos
lamurientos, choradeiras e resmungos em vários lugares, mais seguidos no
quadro da casa, no porão e pras bandas do rio das lavadeiras. Sempre que a
peonada saía pelo mato, ouvia lamúrias e gemidos. Por mais que campeassem,
de dia e de noite, em todos os cantos, nunca encontraram qualquer pessoa.
Seriam as almas penadas do quase cento de bugres que foram mortos naquela
empreitada temerosa do bugreiro de Serra-Abaixo. Apavorada, a mulher do
fazendeiro não aceitou proposta pra ficar e o marido não teve outro jeito.
Nhô Pré, pelo que conta o povo, quase morria de arrependimento, mas o que
estava feito não tinha remédio e teve que viver com aquele peso no coração
até o fim. Era um homem bom, justo com seus peões e agregados, trabalhador
e valente. Mas fez um crime medonho e pagou muito caro...”
A fisionomia de Nhô Marco refletia toda a pena que sentia. Curioso do
final da história, indaguei:
“E depois, Nhô Marco, que aconteceu?”
Ele ajeitou a bomba na cuia, com extrema calma, sugou uns goles do mate e
me encarou.
“A Fazenda, aquele brinco de propriedade, a maior e mais bonita daqueles
fundos, foi vendida para uns colonos que lidam com lavoura mecanizada. Não
existe mais nenhum vestígio da sede e das benfeitorias. Virou tudo, tudo
mesmo, um mar de soja tão grande que a vista nem alcança...”
Seus olhos se embaçaram de tristeza e desolação.
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(*) Personagem de ficção do Autor que aparece no livro “A
liberdade fica longe” (2007).
(31 de outubro/2008)
CooJornal no 605
Enéas Athanázio,
jurista e escritor
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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