24/10/2008
Ano 12 - Número 604
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
O BATIZADO OU A HISTÓRIA DE TIPOTI
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Perdida num desvão entre o rio e a
serra, a Vila do Calmoso vegetava em silêncio, esquecida pelo mundo. Só se
agitava um tanto nas chuvaradas, quando o rio saía da caixa e a água
barrenta bufava furiosa na ânsia de alcançar o rio do Peixe e dali o
Uruguai. Ou, então, nos espaçados dias de visita do padre, quando ele
rezava missa e novena, fazia práticas terroristas, casava e batizava.
Nessas ocasiões a Vila passava por uma verdadeira faxina moral, mandando
rio abaixo as faltas daquela gente. Não seriam, com certeza, mais que
pecadilhos, inclusive por absoluta falta de oportunidade.
Numa dessas visitas, enquanto o padre agia na igrejinha atopetada de
gente, Tipoti caminhava pelas ruas poeirentas de um jeito nervoso, falando
com este e aquele, depois retomando as andanças sem destino aparente. Ele
era o cacique do toldo dos bugres que existia para as bandas da usina
velha, onde chefiava um cento de pessoas que viviam em condições
miseráveis depois que a madeireira americana invadiu suas terras, botou
abaixo o mato, acabou com a caça e a pesca. A roupa molambenta retratava
bem a pobreza do chefe índio, cujos pés craquentos afundavam na poeira
vermelha do chão seco.
Na plataforma da estação, numa roda de prosa, Tipoti avistou seu Jango,
funcionário da Companhia e seu velho conhecido. Com o maior respeito,
chamou-o para um particular, longe dos outros.
“Seu Jango, - foi dizendo ele, revelando preocupação no rosto cor-de-cuia,
- quero aproveitar a visita do padre para batizar meu filho, mas não
consigo. Ele já está taludo e não pode esperar mais...”
Surpreso, o outro indagou:
“Qual é a dificuldade? O padre criou algum problema?”
“Não, - respondeu o cacique, - o problema é que ninguém quer batizar meu
filho... Convido um e outro, gente conhecida, e dizem que bugre não carece
de batismo. Ainda fazem troça de mim, perguntando por que bugrinho à toa
havéra de receber batismo. . .”
Uma sombra anuviou as faces do cacique e um brilho diferente iluminou seus
olhos negros. Os músculos do rosto ficaram rijos, mas ele se dominou e
conteve a explosão de ódio que lavrava dentro dele. Observou a reação do
outro e falou, medindo as palavras:
“Batiza meu filho, seu Jango! Fica compadre de Tipoti, não vai se
arrepender...”
“Mas claro, Tipoti - exclamou o funcionário, abraçando-o. - Vai ser uma
honra ficar seu compadre. Vamos nos mexer antes que o padre encerre os
batizados.
Ao lado de um índio sorridente, o padrinho apanhou o menino no local onde
esperava e o levou para sua casa. Lá ele foi lavado e enfiado nas roupas
de um filho de Jango, calçado e penteado. Moreninho, com os cabelos negros
e brilhantes, aparados como tigela e com franjas, o menino era o retrato
de um pequeno caingangue. Risonho e simpático, abraçava o pai, o padrinho
e a madrinha, numa alegria irradiante. Orgulhoso do filho, Tipoti não
escondia a felicidade.
Em pouco tempo chegavam à igreja e formavam ao lado dos que aguardavam o
momento do batismo. Quando chegou a vez do bugrinho, o padre perguntou num
carregado sotaque alemão:
“Como é o nome da criança?”
O padrinho olhou para o cacique, postado a seu lado, e este murmurou meio
indeciso:
“É Tipoti também.”
“Tipoti de quê?” - indagou o padre, já meio irritado.
Nem o pai e nem os padrinhos haviam pensado no detalhe. Apanhados de
surpresa, houve um momento de ansiedade, até que seu Jango teve uma idéia:
se o pai era o Tipoti grande, o filho teria que ser o Tipoti pequeno!
“É Tipoti-Mirim, filho de Tipoti-Guaçu!” – respondeu o padrinho com
firmeza.
O padre pensou um instante, fez ligeiro ar de dúvida, mas aceitou a
informação. O menino índio foi batizado nas regras. Mas, embora o batizado
fosse um só, na verdade tanto o pai como o filho recebeu novo nome.
Comovido, o cacique abraçou o filho e o compadre. Naquele abraço meio
desajeitado transparecia a gratidão do índio maltratado pelos invasores de
seu chão. A madrinha ainda achou jeito de improvisar um presentinho para o
menino.
Com o filho nos braços, Tipoti abanou para os compadres antes de descer o
coxilhão no rumo do toldo, agora levando um cristão novo.
(24 de outubro/2008)
CooJornal no 604
Enéas Athanázio,
jurista e escritor
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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