17/10/2008
Ano 12 - Número 603
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
ESTRANHOS NA FAZENDA
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Chovia há dias e o céu continuava
cinzento, prometendo. Tudo parecia lavado, pingava água das árvores, o
gramado verdejava nas coxilhas e as canhadas viraram banhados. A passarada
gritava, os sapos coaxavam, alguma rês mugia. O grosso do gado se
enfurnava nos capões de mato e só algumas cabeças pastavam no campo limpo.
No casarão da Fazenda, sede da “Primavera”, os moradores se acomodavam em
roda do fogão, depois do café da manhã. O assunto era pouco e não tardou a
recair nas suspeitas que vinham preocupando a todos. Na tarde anterior,
montado na velha mula preta de fiança e coberto por uma capa lageana, o
fazendeiro Elísio Leite Preto, de apelido Nhô Pré, andara investigando
para os lados do rio Canoas e do Taimbé e voltara mais desconfiado. Tudo
indicava que os bugres vinham cruzando o rio à noite e entravam na
Fazenda, deixando sinais de sua passagem.
As desconfianças começaram quando o capataz Aristides e os peões notaram
eitos de roças de milho colhidas às pressas, leitões e ovelhas
desaparecidos sem explicação e até o sumiço de ferramentas deixadas num
paiol. Depois as suspeitas se agravaram com a descoberta de rastos frescos
de pés descalços, alguns deles perto da casa, o que intrigava Nhô Pré
porque os cachorros não deram alarme. Em conversa com o Arigó, negro velho
que morava de agregado na boca do mato, ele lhe afiançou que os bugres
tinham mandingas que faziam calar os cachorros, mesmo os mais brabos. Com
aquilo encasquetado na cabeça e a ruga da testa mais funda, Nhô Pré
imaginava como contar à mulher que a Fazenda vinha sendo visitada pela
bugrada, inclusive no quadro da casa. Criada em colégios e pouco simpática
à lida fazendeira, era de temer a reação dela.
Naquela manhã, enquanto a chuva oriava, as crias da casa aproveitavam para
fazer o serviço de fora. Sozinho com a mulher na frente do fogão, Nhô Pré
encontrou ocasião para falar sem provocar pânico.
“Eles andam por aí” – começou de repente, quebrando o silêncio.
Voltando para ele os olhos azuis, a mulher nada disse, como se esperasse.
“Os bugres têm entrado na Fazenda” – afirmou com calma para não assustar.
– “Agora não tenho dúvida. E parece que são muitos...”
A mulher fez um gesto de incredulidade, seus olhos faiscaram e os cabelos
loiros foram sacudidos em negativas enérgicas de cabeça.
“Não é possível!” – exclamou ela, quase gritando. – “Eles nunca passaram
para o lado de cá, ficaram sempre no Rio Grande.”
“Quem sabe é a crise” – argumentou o marido. – “A safra do lado de lá foi
muito fraca por causa da chuvarada, os bugres não acham roça pra saquear e
se baldeiam pra este lado do rio. Os fazendeiros de lá também estão
batendo forte neles.”
Ela aquietou, cismando, e levantou de repente da cadeira, gritando numa
voz angustiada:
“As crianças! Tem que buscar as crianças!”
Em instantes, chamava pelo capataz, através da janela da cozinha, e
determinava que fosse buscar o casal de filhos, na escola do Umbu, para
onde tinham ido muito cedo.
“Calma, mulher, calma!” – repetia o marido. – “De dia não tem perigo.”
A fazendeira, porém, só se acalmou quando as crianças apontaram no
carreiro do piquete, escoltadas pelo Aristides e um peão armados.
Todos os moradores ficaram sabendo das visitas indesejáveis e o
fazendeiro, para tranqüilidade geral, determinou que a peonada não
largasse das armas, sem perder de vista a casa da sede. Também mandou
recados aos agregados para ficarem de sobreaviso.
As crianças, decidiu a mulher, tinham que ser mandadas para a casa da
cidade com uma das criadas. Lá continuariam as aulas. Lembrava ela que os
bugres gostavam de roubar crianças brancas e depois queimavam as solas dos
pés para não fugirem do toldo. Na manhã seguinte, com um enxoval arrumado
às pressas, as crianças rumaram para a segurança da cidade.
Nhô Pré, enquanto isso, se desdobrava nos cuidados. Ninguém podia se
afastar sozinho e sem armas do pátio da sede e durante a noite um peão
armado de papo-amarelo e revólver dormia na sala da frente, pronto para o
que desse e viesse. Mandou uma reconvença aos vizinhos mais próximos,
dizendo que requisitaria ajutório em caso de precisão, mesmo sabendo que
isso pouco resolvia. Com a imensidão e o isolamento da “Primavera”,
qualquer auxílio seria tardio.
Nas noites seguintes nada aconteceu e a paz parecia ter voltado à Fazenda.
Tudo funcionava como sempre, embora pairasse no ar um temor antes
desconhecido. O tempo melhorou.
Numa noite escura e quente o pessoal dormia na casa silenciosa. O vento
suave chacoalhava as galhadas altas do velho umbu do pátio, uma coruja
piava num jeito lúgubre. Na sala da frente, o peão de guarda acordou
inquieto, já de arma na mão, com a impressão de ouvir ruídos estranhos
debaixo do soalho de madeira. Afinou o ouvido e percebeu movimentos
cuidadosos de alguém mexendo no porão, local onde se guardavam trastes
variados. Levantou pé-por-pé, abriu num safanão a porta e pulou para fora.
Ligeiro que nem corisco, um bugrão correu pelo lado da casa e desembestou
pelas árvores do pomar rumo do mato. Mesmo apanhado de surpresa, o peão
disparou duas vezes contra o vulto que fugia, gritando para que parasse,
mas ele não atendeu e continuou na corrida, quebrando no peito o mato ralo
que encontrava. Foi um reboliço. Surgiu gente de todos os lados e a
cachorrada estumada saiu acoando no garrão do bugre. Mas ele desapareceu
no mato e o fazendeiro proibiu a perseguição no escuro da noite.
Ninguém mais dormiu. Assustados com a ousadia do bugre, todos amanheceram
acordados em roda do fogo, sugando mates e bebendo café preto, enquanto os
homens se revezavam na guarda. Mal raiou o sol, examinaram o pátio e
descobriram muitos rastos, sinal de que vários bugres lá estiveram. Na
trajetória do bugre atirado encontraram vestígios de sangue, indicando que
fôra atingido. A situação se agravava; agora os bugres buscariam a
vingança: seria a lei do talião – olho por olho, dente por dente. Alguma
coisa precisava ser feita, excogitava o fazendeiro, já pensando em levar a
mulher para a cidade, com o que ela não concordou.
A vigilância foi reforçada e o próprio Nhô Pré foi à cidade para renovar o
estoque de munição. Na volta, aconselhando-se com o Aristides e o Arigó,
decidiu organizar um grupo de batedores de mato para espantar os bugres da
redondeza. Vários peões e agregados, escolhidos a dedo entre os mais
valentes, armados até os dentes, levando foguetes, bombas e cachorros,
constituíram a companhia sob o comando do capataz.
Em dias seguidos, sempre em horas e rumos incertos, enveredaram pelos
matos, gritando, atirando, soltando fogos, estumando a cachorrada, num
alarido que ecoava longe e punha em pânico os pacíficos viventes que neles
moravam. Às vezes saíam alta madrugada, outras ao entardecer e até na
calada da noite. Levavam fachos e lanternas de querosene. Varejaram campos
e matos aos quatro ventos, com sol e chuva, de dia e de noite. Encontraram
vestígios antigos, mas não avistaram um único bugre. Respirando aliviados
e acreditando que a limpeza fôra completa, Nhô Pré e a mulher decidiram
encerrar as batidas e recomeçar as lidas da Fazenda, até então meio
paradas.
Tranqüila, a “Primavera” ganhou vida. Ensalou-se o gado no rodeio, foram
marcadas novas cabeças e domados alguns potros, reiniciando o serviço das
roças e reforçando o lenheiro do pátio. As crias da casa faziam queijos,
torravam café e lidavam na horta. Saudosa dos filhos, a fazendeira pensava
em mandar buscá-los para um fim de semana e até achava tempo para tratar
das primaveras do seu canteiro predileto.
Numa tarde ensolarada, com o céu azul sem nuvem, Siá Barbina, a mais
antiga das empregadas, desceu para o rio das lavadeiras. Levava na cabeça
a imensa trouxa de roupas, presa com uma das mãos, e na outra a bacia de
alumínio para as peças torcidas. Cantarolando, ajoelhou-se à beira do
riacho e principiou a lavação, tal como fazia dês que o mundo é mundo,
esfregando no lajedo liso as roupas mais grosseiras. Entretida no serviço,
tardou a sentir que era bombeada de dentro do mato, na outra margem do
córrego. Foi então que deparou com o rosto acobreado cujos olhos pretos a
fitavam através das folhas, a poucos passos. Procurou se conter e
levantar, mas quando viu aquele índio avantajado cruzando o arroio na sua
direção, jogou contra ele a bacia, provocando um barulho de lata, e correu
gritando morro acima. Seus gritos ecoaram pelo campo próximo, houve um
momento de total silêncio, e a reposta veio rápida. Gritos, latidos, tiros
e logo a bulha de passos que iam na carreira para socorrê-la. Num instante
vários homens armados estavam ao seu lado e invadiam o mato em busca do
bugre. Mas quem diz; ele desapareceu como se tivesse evaporado.
A prontidão voltou à Fazenda e tudo parou outra vez. A sede e os arredores
lembravam um acampamento de guerra, com aquela homarada armada e atenta,
andando dia e noite para lá e para cá. O fazendeiro, abalado, pela
primeira vez na vida não sabia o que fazer. Coube ao Arigó, naquela prosa
lerda e mansa, sugerir a solução salvadora.
“O patrão carece justar um bugreiro” – disse o negro velho na maior
tranqüilidade.
Nhô Pré levou um baque. Nunca pensara naquilo, sentia repugnância pelos
bugreiros, sojeitos que ganhavam o pão com a matança de bugres. Rejeitou a
idéia de pronto e não se falou mais no assunto.
Os dias passaram e a cada entrada nos matos os peões encontravam novos
vestígios indicando que os bugres se movimentavam por perto e com toda a
liberdade. Os prejuízos cresceram, o gado abandonado, as roças carecendo
de cuidados e tudo o mais entregue ao deus-dará. A mulher e as crias
morriam de medo e nenhuma queria fazer os serviços de fora, quanto mais
aqueles distantes. Visitas não apareciam, atemorizadas pelas notícias que
deveriam correr mundo. Diante da situação, Nhô Pré teve que considerar a
proposta do Arigó, mesmo com a discordância enérgica da mulher.
“Bugreiro não!” – dizia ela, horrorizada. – “Temos que espantar os bugres,
não matar os próximos. . .”
O fazendeiro não lhe deu ouvidos e conferenciou com o Arigó sobre quem
contratar. Cogitaram de um lageano e de um riograndense, mas acabaram se
definindo por Martinho Bugreiro, morador de Taquaras, na Serra-Abaixo, no
picadão entre Lages e Palhoça. Diziam ser o mais competente conhecedor dos
costumes da indiada, capaz de ler suas marcas onde ninguém enxergava nada
e de surpreendê-los nos toldos sem que percebessem sua chegada. Além
disso, mantinha um esquadrão organizado e bem armado, no comando do qual
fizera “limpezas” em diversas regiões. Decidido pela sua contratação, Nhô
Pré ordenou ao Aristides e dois peões os preparativos para a longa viagem
em busca do famoso personagem.
Fazia gosto ver o Aristides e os peões afilipados para viajar. Montavam
cavalos da escolha, apeirados nos trinques, e trajavam roupas da estica
para fazer figuração na terra estranha. Cabresteavam mulas do trote largo,
com bruacas estufadas de munição de boca e de tiro. Foram escoltados até a
estrada geral por outros homens bem armados; afinal, nunca se sabe.
Desde que partiram, a “Primavera” ficou em suspenso. Rolavam lerdos os
dias e as noites, com os moradores entregues ao trivial de comer, dormir,
vigiar, esperar.
Até que, numa tarde, quando o sol descambava para trás das coxilhas, um
piá gritou na frente da casa:
“Aiviéro! Aiviéro eles!”
Todos correram para a área, de onde avistaram o trio de mensageiros saindo
do capão da restinga, num tranco firme de chegar. Houve um vazio que
enervou as pessoas até que surgiu o grupo de cavaleiros levantando a
poeira vermelha do carreiro. Em poucos minutos todos estavam diante da
casa e Nhô Pré desceu a escada rangente para recebê-los. Enfezada, a
mulher se enfurnou no quarto. Nem quis ver aqueles bandidos.
O esquadrão se compunha de vinte e cinco homens, todos ainda moços,
chefiados por Martinho Bugreiro em pessoa e tendo ao lado Belarmino
Luciano, seu inseparável lugar-tenente e cunhado, anos mais tarde morto
com uma flechada. Ali estavam os mais experientes homens de ataque de que
se tinha notícia e também os da retaguarda, aqueles que se ocupavam com as
bagagens, armas e comidas. Vestiam roupas de brim ordinário, de cores
neutras, que não dessem na vista. Portavam revólveres por baixo dos
casacos, mas não se viam armas pesadas, com certeza acomodadas nos
cargueiros.
Martinho era um caboclo simples e comum. Alto, corpo equilibrado, nariz
afilado num rosto moreno e fino. Cabelo espesso, usava um bigode aparado.
Falava pouco, de um jeito nasalado e meio pernóstico, sem sotaque
barriga-verde. Calmo e tranqüilo, embora aparentasse um ar meio tristonho,
ninguém diria que carregava nas costas o peso da tragédia. Tinha fama de
homem sério nos negócios e merecia até a confiança dos governos. Seu
batalhão agia com discrição e disciplina profissionais.
Acomodados no galpão, já varrido e preparado, os homens trataram de se
organizar e dedicaram o dia seguinte ao descanso. Convinha deixar que a
poeira da chegada baixasse. Os índios poderiam ter bombeiros por perto e
isso prejudicaria a batida. Discretos e silenciosos, pouco se mostravam,
só saindo sozinhos ou em duplas, quando necessário. Martinho passou um
tempão consultando o mapa da Fazenda, tirado por agrimensor, e se
informando sobre rios, córregos, matos e campos.
Alta madrugada, refeitos da viagem, levando suas armas e mochilas
pequenas, os homens desapareceram no mato para os lados do Taimbé, só
retornando no anoitecer seguinte. E assim fizeram várias vezes, quietos e
tranqüilos, como se voltassem do mais comum dos serviços. Nem parecia que
a Fazenda hospedava toda aquela gente.
Em grupos de dois ou três, tomavam banho na sanga, lavavam as roupas e se
recolhiam ao galpão para comer e dormir. Nas poucas palavras trocadas com
o fazendeiro, o bugreiro afiançava que “o selviço ia muito bem.”
Numa dessas saídas, permaneceram ausentes por quatro dias.
Todos se inquietaram e Nhô Pré já pensava em providências quando eles
apontaram no tópe de um coxilhão, no lado oposto da partida. Desta vez
proseavam alto, rindo e fumando sem qualquer cautela. Traziam grande
quantidade de arcos, flechas, lanças, cocares, enfeites, balaios, purungos
e outros apetrechos tomados dos bugres, além de algumas moças e meninotas
índias que foram amarradas como bichos no tronco da mangueira. Seriam
vendidas na viagem de volta, nos lugarejos do caminho, e quanto mais
longe, melhor.
No outro dia, muito cedo, quando Nhô Pré mateava na área, Martinho pediu
licença, subiu e sentou ao seu lado. Trocaram algumas palavras, o bugreiro
sugou um mate e começou a falar do seu jeitão entojado, trocando o r pelo
l.
“Seu selviço tá feito” – disse ele. – “Andemo nos quatro lado da Fazenda e
na úrtima batida varêmo pro Rio Grande. Com o ajutório dum bugre manso, a
troco de uma garrafa de pinga, achêmo a paragem deles. Quando cheguêmo
tavam dormindo, demo uns tiro pra assustá e dispois passêmo o resto no fio
do facão, que a munição tá cara. Peguêmo o cacique, o curandô, os
conselheiro e os guerreiro. Não sobrou um pra contá o causo. Dispois
amontoemo os tarecos e toquemo fogo em tudo, até nos ranchos. Arguma muié
avalentoada também levou chumbo, o resto fugiu pros mato co’as criança.”
Repugnado, Nhô Pré sentia um misto de remorso e vergonha pelo que tinha
mandado fazer. Mas o que estava feito, estava feito, não tinha remédio.
“A limpeza foi geral e completa” – continuava o caboclo na prestação de
contas. – “Nenhum bugre vai le incomodá. Peguêmo pra mais de cento. Ai
bugre sem cabeça e sem orelha sameado por todo esse fundão” – e ele fez um
gesto abrangente.
Em seguida, puxou um saco de estopa, salpicado de sangue seco, e fez
menção de exibir a prova da macabra missão. Ali se acomodava mais de uma
centena de pares de orelhas. Nhô Pré, nauseado, se recusou a olhar. Fez as
contas de cabeça, foi até a arca do canto do quarto e apanhou um maço de
dinheiro. Voltou à área e pagou ao homem com uma nota em cima da outra.
O esquadrão permaneceu na “Primavera” por uns dias para o caso de aparecer
algum bugre de má tenção. Depois, com muita calma, arrumou os trens e
pegou o estradão de volta. Só então, pelas costas e de longe, a fazendeira
anuiu em olhar para Martinho, admirada de que pudesse ser um homem normal,
que comia, dormia e tratava com outras pessoas como qualquer vivente.
Ficou a observá-lo em silêncio até que desapareceu na curva.
Naquela semana, causou geral espanto a quantidade de corvos no céu da
Fazenda, voando baixo, mais ainda para os lados do Taimbé e do Canoas. E
até para além do Pelotas.
(17 de outubro/2008)
CooJornal no 603
Enéas Athanázio,
jurista e escritor
e.atha@terra.com.br
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