“Diários Índios” (Companhia das Letras
– S. Paulo – 1996), de Darcy Ribeiro, é um imenso repositório de
informações e reflexões a respeito dos índios “Urubus-Kaapor”, do Pará,
entre os quais o Autor viveu vários meses, e sobre a região em seus mais
variados e curiosos aspectos. O livro foi escrito em forma de carta à
esposa Bertha, com as anotações feitas todos os dias, no calor dos
próprios acontecimentos. Uma carta que não se destinava a ser enviada e de
cujo conteúdo a destinatária só tomaria conhecimento após o retorno do
Autor.
É admirável que ele tenha escrito obra de tal qualidade, científica e
literária, em circunstâncias tão precárias. O livro é minucioso, rico em
informações, recheado de fotos, desenhos, mapas geográficos e
genealógicos, além das observações muito agudas e bem humoradas do Autor,
fazendo dele o retrato vivo de uma palpitante aventura.
Neste artigo pretendo comentar alguns aspectos da 2a. Expedição, realizada
entre primeiro de agosto de 1951 e 9 de novembro do mesmo ano, durando
dois meses e oito dias. Essa Expedição, ao contrário da primeira, avançou
do sul para o norte, isto é, do Maranhão para o Pará, percorrendo longas
distâncias através de florestas nunca antes trilhadas por brancos.
Partindo das margens do rio Pindaré, no centro do Maranhão, até a região
do Gurupi, onde se situavam as aldeias visitadas. Deparou-se, desde o
início, com a seca que esvaziava rios, igarapés e furos, num mundo
normalmente governado pelas águas. Agora elas só existiam em poços sujos e
fétidos, determinando alterações na vida dos nativos. Quando os igarapés
ficavam como “couro branco”, ou seja, mostrando a areia do fundo,
impunham-se as mudanças da aldeia para as margens de igarapés maiores.
Migrações determinadas por fatores idênticos aos das nordestinas.
Acompanhavam o Autor, nessa Expedição, o antropólogo social inglês Francis
Huxley (1), o Prof. Müller, da Escola de Sociologia e Política de S.
Paulo, João Carvalho, chefe do Posto do SPI que atendia essas aldeias,
ajudante valioso e indispensável, guias, barqueiros, remadores,
carregadores, mateiros etc.
Embora a cultura indígena seja o objetivo central da Expedição, o espírito
inquiridor de Darcy anota múltiplos outros aspectos. Começa com a
observação de que, na região, tudo é lerdo, vagaroso, sem pressa, com a
vida amoldada ao clima canicular em que qualquer atividade física cansa e
amolenta. Os dias escorrem lentos e marasmáticos. A doença do mateiro e
intérprete João Carvalho provoca o atraso de um mês na saída da Expedição,
período em que só resta esperar com paciência, sem tugir nem mugir. Nesse
período faz anotações sobre as cidadezinhas locais, sua vida e
arquitetura, sua gente e sua arte, a exemplo das célebres redes de São
Bento.
Observa e anota a curiosa questão do preconceito. Assim, o mestiço de
índio e branco é rejeitado pelo branco, que o considera índio, e aceito
pelo índio, que o considera dos seus. O próprio mestiço se considera
“inferior.” Mas o índio, no caso, é menos preconceituoso que o branco. Na
cruza de índia com branco, o filho aceita a mestiçagem; na cruza de índia
com negro, o filho não gosta e reclama.
Mas a Expedição parte e vai surpreender os índios no seu “habitat”, em
plena selva, antes de retornar ao Posto Pedro Dantas, do SPI, depois de
ter andado 800 quilômetros a pé. E nessas andanças vai descortinando a
realidade de povos felizes, organizados e pacíficos, cuja cultura já se
ressentia do contato com o branco, nem sempre bem intencionado.
As aldeias em que viviam eram, em regra, isoladas, embora existissem
aquelas que ficavam próximas, fato que se devia a eventual parentesco
entre os respectivos “capitães” (caciques). Entre eles o sentimento
parental é muito forte. Formavam-se, nesses casos, grupos de aldeias
próximas e ligadas. Nelas se viam, anotou o expedicionário desconsolado,
casas com paredes e em sistema de palafitas, contrariando a arquitetura
autêntica e já denunciando a influência negativa do branco ribeirinho.
Na seca reinante, a natureza se revelava por completo. Ressecada a
cobertura de folhas e gravetos, aparecia o solo arenoso e branquicento,
frágil, impróprio para o pisoteio intensivo do gado e a agricultura das
grandes lavouras mecanizadas. Nessa situação, as queimadas e desmatamentos
constituíam terrível agressão à natureza, fato que o homem branco vem
ignorando de forma sistemática, ameaçando transformar a região num deserto
inaproveitável. Desde então, os queimadores de mato são cada vez mais
numerosos.
Nessa época muitos índios retornavam das profundezas da selva, para onde
haviam fugido com a intenção de escapar da epidemia de sarampo, gripe e
terçol que estava no auge por ocasião da 1a Expedição. Voltavam fracos,
desnutridos e desfalcados de parentes e amigos. Soube-se, mais tarde, que
morreram 160 dos 700 “Kaapor” existentes (2). Mesmo assim recebiam bem os
brancos, portadores de tantas desgraças.
As aldeias se mantinham, equilibradas, com a caça, a pesca, a coleta e as
lavouras. Mas o aparecimento cada vez mais freqüente de invasores da mata
indignava os índios. Eles derrubavam as árvores frutíferas sem
necessidade, matavam a caça pelo couro e afugentavam os peixes usando
métodos inadequados de pesca. Com eles vinham os “grileiros”, fazedores de
posses artificiais de terras, tão nossos conhecidos das obras de Monteiro
Lobato e Jorge Amado, entre outros. E também os “bugreiros”,
exterminadores sistemáticos de índios, tão presentes na história
catarinense, aos quais cabia calar os recalcitrantes. Um deles, conhecido
como João Grande, se notabilizou por matar índios e espetar suas cabeças
em estacas. E assim, passo a passo, o elemento indígena era escorraçado
para o ermo, cada vez mais longe, - ou perecia. Esse banditismo também
imperava nas vilas onde havia grande mistura de gente das mais variadas
procedências.
Os índios revelavam incontida curiosidade pelos brancos e negros. Dividiam
os brancos em “verdadeiros” (loiros e de olhos azuis, como Huxley) e
“falsos” (os morenos, como Darcy). Ao primeiro contato com os brancos,
revelavam grande espanto, em especial diante dos loiros. Estavam sempre
procurando tocá-los, admirados com a pele macia, e tentavam até examinar
suas partes íntimas para verificar se tinham a mesma cor. Tudo provocava
neles a curiosidade: pele, cabelos, barbas, bigodes, roupas, calçados,
objetos, comidas. Estavam sempre cercando os visitantes, observando,
olhando, e, mais que tudo, perguntando. Pareciam crianças na fase do “por
quê”?
Observou o Autor traços de mestiçagem em algumas aldeias, denunciada pela
presença de barba, pelo tipo e cor da pele. Indicava a existência de
elementos estranhos se cruzando com os índios, mas o fato era aceito com
naturalidade. Tudo indica que os indígenas não deixavam viver crianças com
defeitos físicos visíveis; raros foram os deficientes encontrados pelo
pesquisador. Os índios quase sempre tinham maus dentes.
O casal indígena levava, em geral, vida pacífica. Marido e mulher nunca se
separavam, às vezes nem mesmo para fazer as necessidades. Era costume
esfregar pássaros bonitos na barriga das mulheres grávidas para que os
filhos nascessem bonitos. Também usavam adornar as pessoas e os animais
(cachorros) com colares coloridos para certas ocasiões. O pai que não
fazia a “couvade” (repouso pós-parto) corria o risco de ficar fraco e
morrer. A escolha do nome do filho era feita com grande cuidado e o Autor
relata o caso do índio que lhe pediu sugestão a respeito. Ele sugeriu o
nome de Rondon, que foi aceito pelo pai, de tal forma que naqueles sertões
talvez ainda viva um legítimo “kaapor” com o nome do célebre marechal
indigenista. Curiosos ao extremo, os índios não vacilavam em abrir as
malas de Darcy, delas retirando alguns objetos. Descobertos, lançavam a
culpa sobre as mulheres, acusando-as do mal feito. Não conseguiam conter a
curiosidade. Revelavam grande interesse pelos cantos dos brancos.
Conviviam em paz com grande quantidade de baratas, nada fazendo para
combatê-las, o que exasperava o explorador enojado. Aceitavam o suicídio
como solução para situações extremas, lembrando sempre o caso de Uirá, que
se lançou ao igarapé e pereceu nas suas águas.
A aldeia índia era povoada de animais. Cachorros ferozes em quantidade,
galinhas (que eles não comiam), papagaios, jabotis (encerrados, de carne
apreciada), queixadas (mantidos presos), jacumins, mutuns, araras,
periquitos.
Produziam objetos de cerâmica, feitos com grande esmero e muita técnica.
Segundo o Autor, essa cerâmica se assemelhava à dos Guaranis, aqui do Sul,
embora menos decorada. Fabricavam peças úteis e lógicas, apropriadas ao
uso. Ele relata o caso de uma oleira que não gostava de mostrar sua obra e
sua técnica. Seria, já então, o recato dos artistas?
A selva era a grande mãe dos indígenas, sua fonte de suprimento, sempre
respeitada e conservada. Dela tiravam cipós e embiras, folhas e palmas,
madeiras, frutas inúmeras, resinas, óleos, látex, variada e rica
farmacopéia, caça miúda e graúda, pássaros para alimentação e para arte
plumária, peixes de muitos tipos e outros produtos. O Autor relaciona
incrível quantidade de produtos medicinais e sua aplicação (pág. 568).
Cultivavam a mandioca (venenosa ou não), batatas, carás, feijão (pintado,
vermelho e branco), bananas diversas, fibras (algodão, caroá), cabaças de
três tipos, tabaco (todos fumavam), plantas tóxicas para flechas, plantas
aromáticas, para tinturas e muitas outras. O “chibé” (farinha de mandioca
com água) parecia ser o alimento preferido e mais consumido. Farinha
d’água fermentada era a “bebida nacional da Amazônia” (puba).
O ano, para eles, se dividia em duas estações: inverno (fevereiro a maio,
época das chuvas) e verão (setembro a novembro, época das secas). Os
demais meses eram intermediários, indefinidos, neutros.
Os “Urubus-Kaapor” olhavam para seus vizinhos com ar de nítida
superioridade. Assim, os Guajás, seus inimigos, seriam feitos de pau
podre, enquanto eles, os “Kaapor”, foram feitos de madeiras nobres. Os
Guajás não encontravam o caminho do céu e lá não chegavam porque não eram
enterrados, apodreciam na mata, ao relento. E de fato, o Autor encontrou
um esqueleto humano incompleto. Seria um Guajá? “Maíra fez os Guajás de
pau podre” – repetiam sempre. Esses tradicionais inimigos eram nômades,
atrasados, não viviam em aldeias, mas em choças miseráveis, embora fossem
temidos, porque os vestígios por eles deixados eram observados com muita
atenção. Com o inimigo, mesmo feito de pau podre, não se brinca.
Viviam esses índios num mundo rico de mitos e lendas; tudo se interpretava
metaforicamente. Muitas são as páginas dessas crenças colhidas pelo Autor
neste livro. Registra, por exemplo, a fuga do índio que é vítima de
desgraças. Com seus parentes, amigos, bens e adornos, parte em busca de
Maíra e do Paraíso Perdido. Seria uma espécie de suicídio social,
afastando-se de todos, ou um recomeço com o enterro do passado doloroso.
Registra, ainda, as sessões de cura, com o trabalho do pajé, sempre usando
grossos cigarrões de fumo forte, com seus cantos e litanias monótonas e
repetitivas. E muitos outros mitos e lendas, entre elas o Gênesis na visão
indígena, bastante parecido com o bíblico, explicações míticas para
variados fenômenos. Essas semelhanças levam, inevitavelmente, a indagar
qual o mecanismo que provoca a difusão desses mitos por todo o mundo e
entre povos de tanto desnível cultural.
Muitas dessas páginas foram colhidas dos relatos de Tanurú, o contador de
histórias da tribo, intérprete da linguagem das lendas, intelectual
iletrado e “causeur” insuperável.
Embora vencendo a grande resistência dos índios em tocar no assunto, Darcy
conseguiu arrancar depoimentos que registram a memória ancestral da tribo
sobre a “antropofagia ritual.” Admitiram que “antigamente” o canibalismo
foi praticado. A vítima (inimigo) permanecia presa até ser morta, assada e
comida por todos, começando pelo fígado. Talvez venha daí a ameaça “te
como o fígado!”, corrente ainda hoje. O gosto da carne humana lembrava o
da cotia – informavam. O relato colhido assemelha-se ao de Hans Staden e
seu cativeiro entre os Tupinambás.
Fechando esse livro monumental, chegou o Autor a duas conclusões
fundamentais: a) os “Kaapor” têm nítidas características ameríndias,
podendo ser considerados “puros”, uma vez que, se houve miscigenação, foi
tão pequena que não afetou essas características; b) os “Kaapor” seriam
Tupinambás “tardios”, conclusão não aceita pela Antropologia de hoje.
Detalhes de natureza histórica e cultural afastariam a validade dessa
conclusão, como explica Mércio Pereira Gomes, no livro já referido na nota
número 2.
O livro de Darcy Ribeiro é um extraordinário documento sobre a região
visitada e o povo que a habitava, contribuindo em muito para a revelação
de um Brasil desconhecido.
____________
NOTAS:
(1) Mércio Pereira Gomes, biógrafo de Darcy Ribeiro, afirma que se tratava
de Jules Huxley, aprendiz de antropólogo inglês e que mais tarde escreveu
um livro sobre os !Urubus-Kaapor.”
(2) Mércio Pereira Gomes, in “Darcy Ribeiro”, Ícone Editora, S. Paulo,
2000, pág. 69.
(03 de outubro/2008)
CooJornal no 601