“É
Darcy Ribeiro uma das maiores figuras desta segunda metade do século entre
nós... procurou ver sempre, para poder ver melhor, a face mais dramática
da realidade social de nosso país, pugnando pela realização de uma nova
utopia, a construção de um país mais justo, não esta máquina de triturar
pessoas sempre em favor dos bem-nascidos e dos donos do poder.”
M. PAULO NUNES
“Ficamos todos mais brasileiros
com a sua obra.”
(De um
leitor)
DARCY RIBEIRO (1922/1997), foi um dos mais completos intelectuais
brasileiros. Sua vasta obra tem provocado muita discussão e constante
manifestação crítica. Seu livro “Diários Índios – Os Urubus-Kaapor”(Companhia
das Letras – S. Paulo – 1996 – 628 págs.), um dos últimos que publicou em
vida, não tem merecido maior atenção dos analistas, embora seja uma obra
da maior importância pelo que revela e corrige sobre uma das nossas etnias
formadoras.
“Diários Índios” é um
livro-reportagem. Escrito como uma longa carta do Autor à esposa distante,
Bertha Ribeiro, mesmo não sendo destinada a ser enviada nunca, assume a
forma do diário, em que os fatos são anotados no próprio dia em que
ocorrerem, sempre que as circunstâncias o permitem. O Autor tinha, na
época, 27 anos, com “o vigor, a alegria e o elã dessa idade.”
Divide-se o livro em
duas grandes partes, uma dedicada à 1ª Expedição (pág. 15 a 296) e outra à
2ª Expedição (pág. 297 a 602), além de um Anexo contendo elementos
genealógicos (pág. 603 a 616).
A 1ª Expedição foi de 5
de novembro de 1949 a 10 de abril de 1950, durante cinco meses e cinco
dias, e a 2ª Expedição de 1º de agosto de 1951 a 9 de novembro do mesmo
ano, durando três meses e oito dias, totalizando oito meses e treze dias
vividos entre os Urubus-Kaapor, excluindo-se os dias de viagens aéreas.
Entre as duas Expedições medeou o tempo de quase ano e meio, permitindo ao
pesquisador absorver e ordenar os elementos colhidos na primeira para
melhor aprofundar a pesquisa na segunda.
O livro é recheado de
fotos, desenhos, mapas geográficos, genealogias, cantos e versos, quadros,
esquemas e gráficos que facilitam a compreensão e documentam as
conclusões. É um completo manual de Antropologia Aplicada,
registrando um trabalho de campo como poucos. Escrito em linguagem
simples e correta, nunca se afasta da clareza, aliás presente em todas
suas obras. É admirável que tenha conseguido isso, escrevendo nas
condições mais impróprias, muitas vezes cercado e assediado por índios
fascinados pelos arabescos que traçava naqueles cadernões. O livro,
esclarece ele, “é a edição sem retoques dos meus diários de campo nas duas
expedições que fiz.”
A 1ª Expedição começou
do norte para o sul. Saindo de Belém, seus integrantes rumaram para
Bragança e dali para Vizeu, de onde seguiram em velhos batelões de madeira
pelo rio Gurupi(1) às diversas aldeias índias “que por tanto
tempo projetei visitar e estudar detidamente”, como escreveu o Autor.
Compunham-na o próprio
Darcy Ribeiro, em pessoa, o lingüista francês Max Boudin, encarregado de
estudar aqueles idiomas, e o cinegrafista alemão Heinz Foerthmann, a quem
cabiam as filmagens e fotografias. Contava com a colaboração de
barqueiros, intérpretes, carregadores e funcionários do extinto Serviço de
Proteção aos Índios (SPI), lotados nos postos da região, embora a ajuda
destes últimos fosse das mais precárias. E assim enfrentaram marchas de
mil quilômetros, penetrando a selva amazônica em estado bruto e vendo os
índios em seu próprio habitat, há mais de cinquenta anos atrás.
A 2ª Expedição seguiu em
sentido oposto, isto é, do sul para o norte. “Por um caminho diferente –
escreveu ele – alcançarei suas aldeias partindo da margem do rio Pindaré
(2) , no centro do Maranhão, farei a travessia de centenas de
quilômetros dessas matas até suas aldeias no Gurupi. Iremos palmilhar
território até hoje geograficamente desconhecido.” Não levavam mapas ou
roteiros, mesmo porque não existiam; só poderiam confiar nos guias e na
sorte. O objetivo era conhecer locais intocados, mesmo pelos
“pacificadores” e pioneiros desbravadores, apanhando os índios em toda sua
autenticidade. Seguiam com Darcy o antropólogo social inglês Francis
Huxley e o Prof. Muller, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo,
onde o Autor se formara, e o “mateiro” João Carvalho.
O primeiro registro a
ser feito é o do impacto da selva sobre eles. A grandeza e os mistérios da
floresta inceira, a variedade infinita da vegetação, os ruídos de seus
habitantes terrestres e alados, o calor implacável, as chuvas constantes
ou as secas devastadoras dos períodos – tudo afeta o espírito do jovem
explorador e se reflete nestas páginas. As regras daquele mundo governado
pelas águas, em que a alta e a baixa das marés do oceano distante enchem e
esvaziam sem cessar os rios, igarapés e furos, influindo também nos
mangues e igapós que necessitam cruzar. Narra ele, impressionado, o
momento em que a maré vazou com velocidade espantosa, pondo a nu de
repente o solo arenoso do fundo, onde a embarcação encalhou e teve que
esperar a volta das águas. Puderam todos caminhar no leito seco. “Teríamos
de esperar ali até as três da tarde, quando a maré voltasse”, conformou-se
ele. A variação dessas marés chega a nove e até doze metros. Em outras
ocasiões a água é tão ávara que só é encontrada em poços sujos e fétidos.
Chegam, enfim, à
primeira aldeia Urubu-Kaapor visitada. Clareira arredondada aberta na
mata, cercada pela muralha verdejante, nela se espalhavam as casas. Sempre
em formato retangular, as casas são de quatro águas, sem paredes e
divisões internas. Existiam as casas, casonas e abrigos provisórios
(ranchos). Nada semelhante às ocas arredondadas que nos acostumamos a ver.
Cada aldeia tem seu nome.
A própria arquitetura
revela que os índios viviam em público, desconhecendo aquilo a que
chamamos de privacidade. Tudo feito às claras, sem segredos e sob
vigilância recíproca. A presença permanente do perigo gerou o costume de
cada um comunicar onde ia ou estava. A aldeia necessitava de saber o
paradeiro de cada um de seus membros. Relata o Autor que, às vezes,
sentindo necessidade de solidão, se esgueirava solitário para o mato. Mas
foi sempre descoberto e denunciado de forma ruidosa, em geral pelas
crianças. “O papai branco está fugindo!” – gritavam. Nesse ponto o
socialismo primitivo se iguala ao totalitarismo à George Orwell.
A aldeia se mantinha da
caça, da pesca , da coleta de frutas e raízes, e, acima de tudo, das roças
onde a mandioca era o produto principal. Qualquer caça se dividia entre
todos, mesmo que só coubesse um naco a cada um. Tinham dificuldades em
entender os brancos que estocavam gêneros para si, sem dividi-los com os
demais. Quando a carne abundava, comiam dia e noite, até acabar. Não
exercitavam a poupança e nada aprovisionavam, exceto a mandioca na terra,
onde poderia esperar até um ano. O chamado “pão do Brasil” se constituía
em sua única garantia de sobrevivência. Quando a caça era farta, andavam
fortes e nutridos; quando não havia, ficavam fracos e desnutridos.
Não questionavam a
propriedade imóvel. Usavam a casa e o terreno das roças com
naturalidade e sem contestação, exercendo um direito consuetudinário.
Já valorizavam os objetos móveis – armas, artes plumárias,
cerâmica. Quem os possuísse em quantidade e qualidade passava a ser
considerado rico. Não tardaram, porém, a fabricar objetos falsos e de
carregação para trocar pelas miçangas dos brancos.
Pertencentes à nação
Tupinambá (3), segundo velha lenda os Urubus receberam esse
nome dos inimigos, em circunstâncias mal explicadas. Tinha sentido
pejorativo. Existiam os Urubus brancos e pretos. Pesquisando
e observando, Darcy Ribeiro descobriu que a tribo se chamava Kaapor e
assim se autodenominavam. Desde então passou a chamá-la sempre assim.
Cada aldeia possuía o
seu capitão, e não cacique, como nos acostumamos a ler. Ele usava,
sempre que possível, uma espécie de capacete vermelho, em geral feito de
tecido obtido dos brancos. Sua chefia, no entanto, se exercia mais pela
força moral que pelo autoritarismo. Poderia ser dito que cada qual sabia
de seus deveres, não precisando de ordens. Existiam ainda os capitães
regionais (Tuxauas).
Esses índios valorizavam
sobremodo o parentesco e a família. A instituição do
cunhadio – como diz o Autor – tinha grande relevância social. Todos
conheciam seus ascendentes e podiam reconstituir a própria árvore
genealógica até distâncias remotas. Anakanpukú, o maior intelectual da
tribo, recitava os nomes mais de duzentos parentes, com seus
significados, os respectivos graus e locais de nascimento e morte, tudo
testado e conferido pelo Autor em sucessivas entrevistas. Também conhecia
o universo da cultura Kaapor, com seus costumes, lendas, mitos,
crenças, religiões, remédios, feitiços etc. Seria, entre nós, um
genealogista e folclorista. Isso tudo de memória, numa cultura ágrafa.(4)
A vida nas aldeias
corria em paz. Nunca se matavam entre si; isso, pelo menos, era tão raro
que o pesquisador não constatou nenhum caso. Sempre que algum indivíduo
estava zangado ou nervoso em excesso, os demais se afastavam dele até que
passasse a crise, evitando confrontos. Nas raras ocasiões em que todos ou
muitos ficavam raivosos, saíam pela mata em excursões punitivas e
descarregavam o ódio contra estranhos. Quem pagava eram membros de tribos
decadentes, inimigos tradicionais ou negros descendentes dos quilombolas.
O Autor registra o resultado de uma dessas sangrentas excursões. Elas
também valiam como vingança de males sofridos e que não sabiam
explicar – epidemias, doenças, perda de familiares e outros.
As relações entre marido
e mulher eram, em geral, cordiais. O trabalho se dividia entre os
cônjuges, cuidando ela dos afazeres domésticos e ele do provimento da
casa. Outros serviços se faziam em conjunto, como nas roças. Nas excursões
de caça, pesca ou coleta, a mulher transportava os objetos para que o
marido, livre, leve e solto, pudesse manejar as armas para a caça ou a
defesa. A mulher não se tornava “besta de carga” e nunca foi considerada
inferior. O casal ensinava e orientava a prole, aplicando-lhe castigos,
quando julgavam necessários, às vezes rigorosos, mas também a tratavam com
grande ternura.
Embora a fidelidade
fosse a regra, aconteciam casos de adultério. O cônjuge ficava aborrecido
por alguns dias mas logo tudo voltava ao normal. Nada indicava a idéia de
traição. Mas quando a adúltera engravidava do outro, o marido
negava a paternidade, recusando-se a fazer o repouso pós-parto
(couvade). Ficava, então, pública a negação.
Após o nascimento do
filho, o casal se recolhia à casa, onde ficava recluso – era a couvade.
O marido ficava de resguardo por cinco dias, até a queda do umbigo do
recém-nascido. A mulher permanecia por dez dias na rede, sem nada fazer.
“A couvade procura proteger não só o filho, mas também o pai, que é
tido como em perigo”—depõe o Autor. A reclusão é acompanhada de dieta
especial. (5) A couvade constituía-se na ostentação do
orgulho paterno. Acreditavam que sua transgressão causava males ao filho,
mesmo à distância.
Com o trabalho assim
parcelado, é claro que a situação do solteiro ou viúvo, ou da mulher
nessas situações, se tornava difícil na tribo. Tornava-se um quase
marginal.
Aspecto curioso, bem
observado pelo Autor, se revelava na incapacidade dos índios entenderem
desenhos, mesmo os mais simples. Não conseguiam identificar casas, objetos
ou armas desenhados num caderno. As sociedades ágrafas não sabem “ler” em
duas dimensões.
Suas tentativas de
desenhar nos cadernos do Autor resultavam em riscos toscos como os de uma
criança. Quando não rasgavam o papel com a pressão exagerada da caneta.
As línguas faladas na
região pareciam infinitas e diferenciadas, tanto que aqueles que se
expressavam numa delas não entendiam as demais. Segundo o Autor, em acordo
com o lingüista da Expedição, seriam mais de mil!
Na época da 1ª Expedição
grassava naquelas aldeias tremenda epidemia de sarampo, gripe e terçol,
levada pelos brancos. Sem defesa, morreram ou cegaram às dezenas, talvez
centenas. Aldeias inteiras fugiram espavoridas para a selva, escapando das
doenças – ou levando-as. Partiam como Uirá, em busca de um deus que os
salvasse.(6) Foi uma mortandade. Só se salvou uma aldeia cujo
capitão proibiu a saída dos moradores.
Mas o livro não cabe
nestas notas. Muitos outros aspectos são mostrados ao vivo e no próprio
meio. As festas, a nominação, a iniciação, as comidas e bebidas, a
cerâmica, a rica arte plumária, as relações sexuais, as relações com
outras tribos, como os Tembés e os Timbiras, com os negros e os brancos,
as excursões pela floresta, a pé ou em canoas, os trajes e usos corporais,
as pajelanças, a aceitação do suicídios nas situações limites, os feitiços
e muitos outros são registrados com minúcia e cuidado.
Também nasceram dessas
Expedições um livro de Boudin sobre o idioma tembé, um belo livro-álbum
sobre arte plumária feito por Bertha e Darcy, além de um filme de
Foerthmann, cujos originais teriam desaparecido do SPI, no Rio de Janeiro.
Sente-se uma ligeira
melancolia nas palavras do Autor quando constata a inclinação dos nativos
– “os meus índios”, como ele diz – pelas roupas, calçados e badulaques dos
brancos, cujo uso os torna dependentes destes, em especial de regatões e
mascates sem escrúpulos que os exploram da maneira mais vil. Essa
penetração avassaladora dos hábitos “civilizados” levaria à deterioração
da cultura indígena, rica e autóctone, como de fato aconteceu. Angustiado
e impotente diante desse processo inexorável, as páginas de seu livro se
transformam num clamor contra a destruição de uma raça altiva e
acolhedora.
Mas é chegado o momento
do retorno. A presença de tantos brancos, e por tanto tempo, perturba a
vida daquelas aldeias remotas. É a hora das despedidas e agradecimentos
pela hospitalidade, troca de presentes e aquisição de peças para um museu
em formação.
Essa, enfim, a súmula de
um livro riquíssimo, fundamental para nos conhecermos, escrito por um
cientista social corajoso e amante da verdade, que preferiu enfrentar o
perigo e o desconforto a ficar produzindo obras livrescas e falsas nos
atapetados gabinetes.
_______________________
NOTAS:
(1)
Rio do
Estado do Pará que servia de limite entre ele e o Maranhão. Nasce na Serra
do Gurupi e desemboca no Atlântico, onde forma um delta navegável
(Enciclopédia Brasileira Globo, P. Alegre, 1972, Vol. V).
(2)
Rio do
Estado do Maranhão (Enciclopédia, cit., Vol. IX).
(3)
Enciclopédia, cit., Vol. XI.
(4)
O livro
contém genealogias com mais de uma centena de pessoas.
(5)
Dicionario
de Sociologia, Henry Pratt Fairchild, Edictor, Fondo de Cultura Económica,
México/ B. Aires, 1949, pág. 7; Enciclopédia, cit., Vol. IV.
(6)
Em um dos
ensaios do livro “Gentidades”, o Autor narra a lenda de Uirá (L & PM
Editores, P. Alegre, 1997, pág.91).
(Publicado in “Literatura”,
Brasília, número 21, ag/2001, págs. 41/46).
(19 de setembro/2008)
CooJornal no 599