22/08/2008
Ano 12 - Número 595
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
O CHÃO DE NHEÇU
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O sol banhava de ouro a planície que se estendia desde o rio até o sopé do
Inhacurutum, ponto mais elevado daqueles ínvios de matos e campos. Nheçu,
cacique e pajé todo-poderoso, cujo nome significava “A Reverência”, deixou
a aldeia que chefiava, na base do cerro, e subiu por ele até o alto de
seus 704 metros. Bem posicionado, espraiou o olhar sobre aqueles matos e
campinas verdejantes que se estendiam além do alcance da vista.
Satisfeito, considerou que ali vivia seu povo, feliz e altivo, livre, leve
e solto, sob a sua direção segura e sábia. Guaranis robustos, acobreados e
de cabelos retintos, dispostos para a luta, a caça, a pesca e a lavoura.
Naquelas paragens não trilhavam estrangeiros intrometidos, brancos cheios
de ganância e portadores de idéias estranhas, como vinha acontecendo na
outra banda do grande rio. Ali havia união, reinavam a paz e a concórdia,
ali estava o seu chão sagrado, herdado dos ancestrais dês que o mundo é
mundo.
Mas o assédio dos padres não cessava: queriam entrar em suas terras –
Nesuretugue – para evangelizar os índios e salvar suas almas para
Deus. Ora, eles tinham sua fé, suas crenças e seus deuses, não desejavam e
nem precisavam de outros. Os padres se diziam pacíficos, servos do Senhor,
interessados em almas e não em bens. E Nheçu, então, ainda que
contrariado, reconsiderou e permitiu a entrada. Naquele ato selava o fim
de seu domínio, de sua gente, da liberdade e da paz.
Liderados pelo sacerdote paraguaio Roque Gonzáles, os brancos pisaram o
chão de Nheçu, hoje a região missioneira do Rio Grande do Sul – os 7 Povos
das Missões. Plantaram a redução de São Nicolau (3 de maio de 1626), em
seguida as de Candelária e Assunção do Ijuí (15 de agosto de 1628) e se
aprestavam a fixar mais uma no Caaró. Alarmado, o cacique-pajé percebeu a
enormidade de seu erro e buscou saída num gesto desesperado: mandou
trucidar os três padres que comandavam a invasão – Roque Gonzáles e Afonso
Rodrigues (15 de novembro de 1628) e João de Castilho (17 de novembro de
1628). A morte dos sacerdotes ecoou por matos e campanhas num brado por
vingança e reparação. E a reação veio, virulenta, implacável. Mais de
duzentos índios pereceram, tudo foi destruído e queimado, a Terra de Nheçu
se tornou a Terra de Ninguém. Enquanto o grande chefe desaparecia nas
águas do Ijuí ou degredado nas matas, solitário e abandonado, abre-se um
“buraco negro” de trezentos anos. Iniciando-se pela tragédia, a história
da região sofre um hiato descomunal em que imperou o silêncio do
desconhecido.
Até que, em 1927, no dia 27 de janeiro, Monsenhor Estanislau Wolski
celebra a primeira missa na Sede Roque Gonzáles, centro do atual município
que é a Terra e Sangue das Missões. Toda essa história, fundamentada,
esmiuçada e viva como um romance envolvente está no livro “Terra de Nheçu”,
de Nelson Hoffmann (EDIURI – Santo Ângelo – 2006), relato apaixonante e
merecedor de atenta leitura. Índios e padres, cada grupo com suas crenças
e motivos, cumprindo a missão que lhes foi posta pelo destino. E assim,
entre erros e acertos, traçaram as linhas da “longa e antiga e sempre nova
história.”
(22 de agosto/2008)
CooJornal no 595
Enéas Athanázio,
jurista e escritor
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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