Enéas Athanázio
UMA FIGURA LIGADA À NOSSA HISTÓRIA: MIGUEL
CALMON |
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Embora natural da Bahia, Miguel Calmon du Pin e
Almeida é uma figura que ficou ligada à nossa História, em especial pela sua
atuação como homem público na primeira década do Século XX, merecendo por
isso algumas considerações, uma vez que é pouco conhecido entre nós. Nascido
em Salvador, no bairro do Caquende, em família rica e influente, integrada
entre muitos outros pelo poderoso Marquês de Abrantes, em 18 de setembro de
1879, recebeu primorosa educação nos melhores colégios de então. A família
descendia de franceses, daí o nome “du Pin”, adotado por seus membros. Aos
16 anos, muda-se para o Rio de Janeiro, onde faz os preparatórios para
ingressar na célebre Escola Politécnica, na qual fez um curso brilhante e se
embebeu da filosofia positiva, influenciado por Augusto Comte. Em 30 de
março de 1900, aos 21 anos, estava formado em engenharia civil e disposto a
dar o salto em direção às grandes realizações. Levava consigo a fama de
excelente estudante.
Durante o curso teve como colega o futuro
escritor Lima Barreto (1881/1922), que não chegou a se formar. Enquanto
Calmon era rico, sempre bem posto e vivendo à larga, Lima beirava a miséria,
vestia-se mal e não se interessava muito pelo estudo. Afirmando que Calmon o
desfeiteara, criou por ele profunda antipatia que se estenderia por toda a
vida. Tão logo Calmon galgou posições de relevo, Lima assumiu contra ele
nítida postura de oposição. Para ele, o antigo colega era exemplo do sucesso
fácil, baseado no dinheiro e na influência familiar. Sobre ele escreveu
páginas que hoje integram suas Obras Completas onde o coloca em situações
constrangedoras, comparando-o inclusive a Bel Ami, célebre personagem de
Maupassant. Quando embriagado, Lima afirmava ter comprado uma espada para
“matar o Bel Ami.” Calmon, no entanto, parece não ter dado maior importância
ao fato, pelo menos não me consta que a ele se referisse uma única vez. As
críticas de Lima soam algo exageradas, uma vez que Calmon se revelaria
técnico competente e exímio administrador. Por vias traversas, porém, elas
contribuíram de alguma forma para a permanência do baiano na História.
Formado, Calmon decide regressar à terra natal. Queria mostrar aos
conterrâneos seu saber e suas habilidades. Entrega-se, então, a febril
atividade, envolvendo-se em diversas empreitadas. Movimenta uma empresa de
lenha econômica, em Itaparica, que não parece ter prosperado. Torna-se
professor da jovem Escola Politécnica da Bahia, título que usará com orgulho
pelos anos a fora. Em 1902, aprofunda-se em estudos sobre álcool combustível
e energia solar, temas em que ninguém falava e dos quais foi precursor. Tudo
isso chama a atenção e desperta interesse por sua pessoa, não tardando a ser
convidado para a Secretaria Estadual da Agricultura, cargo que assume em 26
de setembro de 1902, com apenas 23 anos de idade. Sua gestão é ativa e
realizadora, assim reconhecida, e permanece no cargo até 14 de julho de
1905, credenciado a disputar uma vaga no Parlamento. E de fato, no ano
seguinte era eleito deputado federal pela Bahia, integrando a bancada
conservadora, seguidora do laissez faire, laisser passer. Junta-se a outros
deputados moços, formando-se a chamada bancada da juventude, por alguns
rotulada, em tom sarcástico, como jardim da infância. Mas é ativo e
estudioso, fala bem e sua presença não tarda a ser notada.
Para
surpresa de muitos e desagrado de outros, recebe convite espontâneo do
Presidente Afonso Pena para integrar sua equipe de governo como Ministro da
Viação. Depois de consultar o Conselheiro Rui Barbosa, seu líder político no
Estado natal, assume o cargo em 1906. Nesse Ministério trabalhava Machado de
Assis, modesto e dedicado funcionário, de quem Calmon foi chefe. Tinha 27
anos de idade, o mais jovem ministro da História do país. Tão logo assume,
entrega-se a febril atividade, envolvendo e animando todo o corpo de
funcionários da pasta. Viação e povoamento, água para o Rio de Janeiro,
saneamento, portos e ferrovias, legislação da área, linhas telegráficas,
radiocomunicação, ampliação e melhoramento dos correios, apoio à ação de
Rondon e outros assuntos são enfrentados com decisão. Avulta em sua gestão a
Exposição de 1908, realizada na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, para
marcar o centenário da abertura dos portos brasileiros. O evento tem
repercussão internacional e projeta o jovem ministro em todo o país.
Tão logo é empossado parece tomado de autêntica febre ferroviária.
Entrega-se de corpo e alma à construção de ferrovias, consciente de que elas
integravam o país e constituíam as veias para circulação da riqueza
nacional. Inicia trechos e conclui outros, mais curtos ou mais longos,
espalhados por todo nosso território. Essa atividade é constante em toda sua
gestão, iniciando-se em 1907, perpassando 1908 e prosseguindo em 1909. No
período foram construídos trilhos em quilometragem que suplantou tudo que
fora construído até então. Como diz seu biógrafo, Pedro Calmon, “foi o seu
maior título de benemerência (...) Pela primeira vez, enfim, a construção de
estradas de ferro em nosso país atingia a mil quilômetros em um ano!”
(“Miguel Calmon, uma grande vida”, Rio, José Olympio/INL, 1983, pp. 57/58).
Trilhos entram Mato Grosso a dentro, furando uma região erma e isolada, a
despeito da descrença de muitos: nasce a Noroeste do Brasil (NOB). Eles
infletem para o sul, ligando o sudeste ao Prata – é a São Paulo-Rio Grande,
interligando São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, cruzando
nosso território pelo Vale do Rio do Peixe, desde Porto União até Marcelino
Ramos (RS). Essa ferrovia, no entanto, só ficaria concluída em 1910, quando
Calmon já não ocupava o Ministério da Viação, embora a ele se deva a
iniciativa e a construção de sua maior parte. É nesse período que ele se
liga mais de perto à nossa História, merecendo inclusive a homenagem de uma
estação com seu nome, hoje o município de Calmon. Não se sabe e não consegui
esclarecer se ele veio à região e visitou a estação que levava seu nome. O
Presidente Pena também mereceu homenagem semelhante, dando seu nome a outra
estação. Seja como for, Calmon está ligado para sempre ao nosso Estado.
Em 14 de junho de 1909 falece Afonso Pena, alterando a fundo a política
do país e Miguel Calmon deixa o Ministério. Sai dele consagrado como grande
ativista e realizador, ainda que fosse vítima de muitos boatos e suposições
maliciosas, inclusive partindo do biógrafo de Percival Farquhar. Mas tais
coisas parecem inevitáveis no mundo da política e em nada afetaram o jovem
ex-ministro. Em 24 de agosto do mesmo ano, para surpresa geral, casa-se com
Alice da Porciúncula, moça de família antiga e tradicional do Rio Grande do
Sul, muito rica, em separação de bens, como de praxe. A união do baiano com
a gaúcha daria bons frutos, como logo se verá. Rumam para a Europa, onde ele
faz atentas observações sobre a educação, tema que o absorve. Voltando, é
eleito deputado federal pela segunda vez e o casal vai residir num palacete
da rua São Clemente, no Rio, que seria sua morada definitiva. Estuda muito e
escreve sobre educação, economia e agricultura. Posiciona-se em favor do
catarinense Lauro Muller para candidato à Presidência, sem resultado.
Deixando a Câmara, retorna à Europa, agora em pé de guerra, na fase em que
as hostilidades estão prestes a começar, e entende que nova e angustiante
fase histórica iria transformar o mundo, como de fato aconteceu após a I
Guerra Mundial (1914/1918). Volta impressionado com o poderio bélico e os
preparativos dos países europeus, e, em conseqüência, percebe a importância
da segurança e da defesa nacionais, não com fins belicistas ou militaristas,
mas como pressuposto da soberania. Integra o grupo que batalha pela criação
do serviço militar obrigatório, junto com Olavo Bilac e outras figuras de
relevo, e a Liga de Defesa Nacional. Custeava de seu bolso as viagens e
despesas de Bilac que, com sua musa e seu verbo, esquentava a campanha pelo
serviço militar. Nessa época o país é assolado pela gripe espanhola,
ocorrendo milhares de mortes e deixando um rastro de tristeza que estendeu
um manto de medo e desolação. Na Bahia, Calmon trabalha por Rui Barbosa,
como candidato à Presidência, pela segunda vez, mas é derrotado. Campanha
violenta e agressiva, quando atentados se sucederam e Calmon revelou
inigualável coragem em um deles, escapando ileso por verdadeiro milagre. É
outra vez eleito para a Câmara Federal com votação consagradora (1920).
Agora sua atuação se volta para o aspecto social e o nacionalismo. Mostrava
que a exploração colonial de Java e da Índia, pela metrópole britânica, nada
rendera àqueles países, pelos quais muito havia andado. Estavam as coisas
nesse pé quando sobrevém novo convite para o Ministério, desta vez para a
pasta da Agricultura.
Em 1922 assume a pasta que era um desafio neste
“país essencialmente agrícola”, cuja agricultura se desenrolava em moldes
primitivos e ultra-conservadores. Nela permanecerá até 1926, quando novos
movimentos já começavam a se anunciar no horizonte e desembocariam na
Revolução de 1930, provocando profundas mudanças no país. Em sua gestão,
voltou os olhos para o álcool combustível, sua produção e consumo, para o
trabalhismo pacífico, sem luta de classes, crédito e transporte para a
lavoura e tomou medidas administrativas na área do abastecimento, como a
criação da Superintendência do Abastecimento, a implantação de feiras
livres, levando os produtos diretamente do produtor ao consumidor, sem
intermediários, além de incentivos aos produtores. Procurou por todas os
meios modernizar a agricultura. Segundo seu biógrafo, já referido, foi uma
gestão inovadora e corajosa.
Mas era necessário prosseguir na
carreira política. Em 1927 é eleito senador pelo Estado natal. Sua eleição é
contestada por adversários rancorosos, mas, apesar de tudo, é reconhecida.
Também é eleito presidente do Partido Republicano da Bahia, o que, junto ao
novo mandato, lhe confere invulgar posição. Dedica-se com esmero à nova
função parlamentar enquanto o clima revolucionário vai se implantando no
país. A disputa entre Getúlio Vargas e Júlio Prestes é ferrenha,
inclinando-se Calmon por este último. Como tantos de seu tempo, não viu com
clareza e os ventos do sul impuseram novas e profundas mudanças ao país,
afastando-o para sempre do cenário político. Com a vitória da Revolução de
1930, refugia-se na Embaixada da Romênia e nela permanece até que baixe a
poeira. Depois, com mais calma, ruma para o Exterior, só retornando em 1931
e já sem mandato. Como se dizia na época, era mais um dos “decaídos” ou
“carcomidos”, e tratou de se recolher à intimidade do lar e aos negócios
particulares. Considerou finda sua longa e vitoriosa carreira política. Não
se entregou, porém, ao desânimo e continuou estudando, escrevendo,
proferindo palestras. Continuava ligado às entidades de defesa da
agricultura e conservou intacta até o fim sua fé na democracia, ainda que
nos moldes clássicos, como predominara na República Velha.
Não
viveria muito, no entanto, na nova era implantada por Vargas. Em 24 de
fevereiro de 1935, aos 56 anos, falecia no Rio de Janeiro, ainda moço e
preparado para dar muito ao país. Mas as pessoas na época morriam cedo, a
média de vida no Brasil era baixa, roubando das atividades construtivas
muitos que acabavam de completar seu preparo intelectual. O sepultamento foi
consagrador.
Ciosa da memória do marido, sua viúva doou ao Museu
Histórico Nacional grande coleção de objetos que justificaram a criação de
uma sala especial e lá permaneceram por muito tempo, até que foram dispersos
no acervo da instituição. O livro acima mencionado, de autoria de Pedro
Calmon, o antigo reitor da Universidade do Brasil, parece ser a única
biografia de Miguel Calmon ou, pelo menos, desconheço a existência de outra.
O batismo da cidade catarinense com seu nome foi, no entanto, a maior
homenagem a ele prestada. Nela nasceram e continuarão nascendo inúmeras
pessoas que levam e levarão o nome de “calmonenses”, assim como tudo que diz
respeito à cidade, perpetuando a memória de seu patrono.
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Algumas fontes: “Miguel Calmon, uma
grande vida”, Pedro Calmon, Rio/Brasília, José Olympio/INL, 1983. “Feiras
e Mafuás”, Lima Barreto, S. Paulo, Brasiliense, 1956. “A vida de Lima
Barreto”, Francisco de Assis Barbosa, Rio/Brasília, José Olympio/INL, 6ª.
ed., 1981. “Chatô, o rei do Brasil”, Fernando Morais, S. Paulo, Cia. das
Letras, 1994. “Farquhar, o último titã”, Charles Anderson Gauld, S.
Paulo, Editora de Cultura, 2006. “A fabricação do imortal”, Regina Abreu,
Rio, Lapa/Rocco, 1996. Trabalhos de minha autoria, publicados em
“Blumenau em Cadernos” e no “Jornal Página 3.”
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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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