Jandira e Enéas
14, 15 e 16/01/02
CALMON, O HOMEM
Miguel Calmon du Pin e
Almeida era natural da Bahia, pertencente a uma família rica e de grande
influência. Estudou engenharia na Escola Politécnica do Rio de Janeiro,
período em que conviveu com a juventude das mais prestigiosas famílias
brasileiras. Teve entre seus colegas o futuro escritor Affonso Henriques
de Lima Barreto (1881/1922), mas este não concluiu o curso. Enquanto
Calmon se vestia bem e tinha modos distintos, Lima Barreto se encontrava à
beira da miséria, trajando-se mal e permanecendo afastado de grupos e
reuniões.
Segundo Francisco de
Assis Barbosa, o mais categorizado biógrafo de Lima Barreto, o escritor
“evitava os contatos desagradáveis, talvez por temor de alguma desfeita,
como parece ter acontecido com Miguel Calmon du Pin e Almeida, que o
haveria, certa vez, tratado com desprezo. Este incidente marcou, aliás, a
inimizade entre o filho do almoxarife das Colônias de Alienados e o rapaz
de nome ilustre, para quem o futuro não pouparia benesses, dando-lhe tudo:
além de dinheiro, sucesso na política.” (1)
E de fato, com apenas
27 anos de idade, Calmon veio da Bahia para assumir o poderoso Ministério
da Viação, disposto a executar à risca um ambicioso projeto que incluía a
ligação ferroviária dos grandes centros do país, além de outras medidas de
largo alcance. Para Lima Barreto, no entanto, seu ex-colega era o “símbolo
do sucesso fácil”, reservado aos que tinham nome e dinheiro, e desde o
início assumiu uma postura de absoluta oposição ao antigo companheiro da
Escola Politécnica. “Em conversa com o autor – escreveu Francisco de Assis
Barbosa – Bastos Tigre também se referiu à ojeriza do romancista pelo
antigo colega, a quem chamava sarcasticamente “Bel-Ami”, comparando-o ao
célebre personagem de Maupassant. Estando Lima Barreto embriagado, aludia
às vezes à sua intimidade com Calmon, dizendo: “Vou comprar uma espada
para matar o “Bel-Ami”. O artigo de Lima Barreto “O Ideal de “Bel-Ami” é
um terrível ataque a Miguel Calmon.” (2)
As críticas de Lima
Barreto, porém, parecem exageradas, tendo a história proclamado a
competência de Calmon como técnico e administrador. São reconhecidas as
grandes obras executadas em sua gestão. Seja como for, é curioso observar
que ambos ingressaram na história, ainda que por caminhos diversos. Lima
Barreto, mulato, pobre e tímido, sagrou-se como um de nossos maiores
escritores e, segundo o rigoroso crítico Agripino Grieco, foi “o mais
brasileiro de nossos romancistas.” Calmon, por outro lado, sagrou-se como
homem público capaz, merecedor de muitas homenagens, entre elas a de dar
seu nome ao município catarinense de Calmon. Por ironia da sorte, a
antipatia de Lima Barreto contribuiria para sua sobrevivência histórica,
uma vez que na vasta bibliografia sobre o escritor Calmon é sempre
lembrado. Há males que vêm para bem!
-----------------------------------------------------
(1)
“A
Vida de Lima Barreto”, Francisco de Assis Barbosa,
Rio de Janeiro, José Olympio/MEC,
6a. ed., 1981, pág. 90
(2)
Op. cit.,
pág. 205, merecendo referências ainda
às págs. 80, 91 e 192.
-----------------------------------------------------
CALMON, A CIDADE
Sede de município
criado há cerca de dez anos, antigamente denominada Osman Medeiros, a
cidade de Calmon está situada ao norte do Estado de Santa Catarina, tendo
como cidades vizinhas Matos Costa, Timbó Grande e Caçador, da qual dista
32 km, em precária estrada de chão. Durante muitos anos foi distrito de
Porto União e, depois, de Matos Costa, até obter sua emancipação. Fica a
500 km de Florianópolis, tendo hoje uma população de 2.322 habitantes,
situando-se numa altitude de 1.181 m, o que faz dela uma das cidades mais
frias do Estado.
Calmon nasceu à margem
da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, depois denominada Rede Viação
Paraná-Santa Catarina, e foi durante longos anos uma das sedes da célebre
Companhia Lumber (Southern Brazil Lumber & Colonization Company),
pertencente ao Sindicato Percival Farquhar. A outra sede ficava em Três
Barras. A ferrovia encontra-se desativada e entregue ao abandono.
A Companhia Lumber é
apontada como uma das causadoras da “Guerra do Contestado”, que envolveu a
questão de limites entre Santa Catarina e o Paraná, e que foi o mais
sangrento episódio da história brasileira. Nessas circunstâncias, Calmon
serviu de palco para violentos atos de guerra, tendo sido incendiadas a
serraria, barracões e casas, obrigando muitos moradores a fugirem do
local, enquanto outros pereceram, vítimas dos ataques dos revoltosos. A
população da região designava esses episódios como a “Revolta dos
Jagunços” e foi assim que ouvi falar deles desde os dias de criança. Matos
Costa, distante vinte quilômetros, também sofreu violentos ataques e lá se
travaram diversas batalhas.
É natural, pois, que
Calmon guarde muitos sinais de uma guerra que durou tantos anos
(1912/1916), não apenas físicos, mas também na memória coletiva e na
tradição oral. Inúmeros episódios ali ocorridos já se encontram
registrados em obras sobre o “Contestado”, a respeito do qual existe uma
bibliografia que não cessa de crescer. Muito, no entanto, ainda está por
descobrir e foi com essa intenção que surgiu o “Grupo Resgate”, liderado
pelo jornalista João Batista Ferreira dos Santos, mais conhecido como JB.
Em constantes pesquisas e andanças, o grupo encontrou grande quantidade de
projéteis e algumas peças de armas de fogo, objetos diversos e até alguns
documentos da época das hostilidades, tudo já descrito e fotografado.
Também vem tomando depoimentos de pessoas mais antigas, procurando
preservar o que restou, além de reunir tudo que diga respeito ao assunto,
como matérias jornalísticas, livros, revistas, fotografias e tudo mais,
formando um acervo notável, com vistas à criação de um museu na antiga
estação ferroviária, construída no estilo padrão da época, com beirais
largos e plataforma de pedra-ferro, local que não poderia ser mais
adequado, tanto pelo passado histórico como pela autenticidade, caso
consiga vencer a inacreditável burocracia nacional. O grupo publica o
jornal “Resgate”, fixando em letra de forma suas mais importantes
descobertas. O jornal, por sua vez, consta do recente livro sobre o
“Contestado”, de Celestino e Sérgio Sachet, reunindo as crônicas da série
televisionada.
Lutando com
dificuldades, com escasso apoio, o “Grupo Resgate” é mais um exemplo de
que as coisas da cultura, no Brasil, sempre “foram levadas no peito” pelos
cidadãos conscientes, com minguada ajuda oficial, quando não enfrentando a
hostilidade do Poder Público. Tão logo tomei conhecimento desse grupo,
tratei de divulgá-lo pelos meios ao meu alcance e incentivar os seus
integrantes.
-----------------------------------------------------
Notas:
(1)
“O Contestado”,
Celestino e Sérgio Sachet,
Florianópolis, Editora Século Catarinense,
2001, pág. 330.
(2)
“O
Contestado: Roteiro para leituras”,
no site da UBE-SC e
site sobre o município de Calmon.
(3)
“Grupo
Resgate” – Avenida Manoel Fortunato, 935
– 89430-000 – Calmon – SC -
(4)
Tel. (0xx49)573-0131
-----------------------------------------------------
CALMON E EU
Como meu padrasto fosse funcionário da Companhia Lumber,
entre 1943 e 1951, muitas férias do internato passei em Calmon, no inverno
e no verão. Privei, assim, da companhia daquele povo, entre o qual fiz
grandes amigos, e conheci a cidade e os arredores. Montado no meu cavalo
baio, - o “Luar de Prata”-, percorri campos, matos e carreiros da região,
visitando fazendas, indústrias, povoados, cachoeiras, festas e famílias
amigas. Mais tarde, numa bicicleta sueca da marca “Horimek”, creio que a
primeira a circular na cidade, prossegui nas andanças, tendo, inclusive,
pedalado de Calmon a Matos Costa, retornando no mesmo dia, numa época em
que a estrada era quase inexistente e não tinha movimento algum. Como não
me dei o trabalho de levar uma prova de meu “raid”, muitos duvidaram,
inclusive meu padrasto, embora eu tivesse permanecido muitas horas na
cidade vizinha e até almoçado na casa de um colega de Colégio. Lembro-me
de que um mecânico, sabedor de minha aventura, fez a seguinte observação:
“Você deve ter aqui alguma paixão, porque só por amor você faria uma coisa
dessas!” Mas o fato é que nunca esqueci daquela jornada solitária, em
especial da travessia dos campos de General Dutra, ermos e limpos,
banhados de sol, com o vento frio afagando as faces e os quero-queros
gritando raivosos em virtude de minha invasão. Graças a esse gosto pelas
andanças, talvez por herança de antepassados nômades, os beduínos do
deserto, tudo em Calmon se tornou familiar, gravando-se para sempre na
minha memória.
Nessa época de vida livre e largada, embora já fosse viciado na leitura,
não me passava pela cabeça que seria escritor, ainda que estivesse
absorvendo, sem saber, fatos e imagens que contribuiriam, mais tarde, para
a formação do ficcionista em que, bem ou mal, me tornei. Essa convivência
com as coisas de Calmon, sua geografia e sua paisagem, os acontecimentos e
as pessoas, os costumes, valores, crenças, idéias e, acima de tudo, a
linguagem rica e criativa inspiraram muitos de meus contos, crônicas e até
novelas, onde aparecem personagens que guardam semelhança com figuras
locais, algumas das quais se identificam neles. Os leitores mais atentos
também descobrem acontecimentos e lugares descritos, como a célebre
Pirambeira, onde o trem anunciava sua chegada triunfal, martelando os
velhos trilhos e a locomotiva fazia uma choradeira com o apito, manejado
por maquinistas que eram verdadeiros artistas na exploração de todas as
potencialidades do aparelho. Por isso tudo, minha ligação com Calmon é
muito íntima, ainda que não a visite com a freqüência que desejaria, de
tal modo que divido entre ela e Campos Novos a minha naturalidade – sou
meio camponovense e meio calmonense. No meu imaginário elas se misturam,
se envolvem e se completam como se fossem uma só.
-----------------------------------------------------
CALMON: A EXCURSÃO
Foi por tudo isso, e muito mais, que Jandira e eu decidimos
visitar Calmon e outras cidades da região do “Contestado”, cumprindo uma
promessa sempre renovada aos amigos de lá e várias vezes adiada.
Escolhemos o mês de janeiro para fugir de duas coisas: do frio intenso de
lá e do excessivo movimento daqui. Depois de tudo programado, pusemos o pé
na estrada.
Numa segunda-feira ensolarada, dia 14 de janeiro de 2002,
por volta das 9,00h, deixamos para trás o bulício de Balneário Camboriú e
tomamos a BR 470, no rumo da Serra-Acima. Passamos ao largo de Blumenau,
Indaial, Rio do Sul e outras cidades do Vale do Itajaí, todas nossas
velhas conhecidas e onde temos bons amigos, para almoçar no “Restaurante
Cansian”, acavalado num coxilhão, bem no encontro dessa rodovia com a BR
116, pela qual prosseguimos, passando por Ponte Alta, Santa Cecília e Le
Bon Regis, todas cidades campeiras bem características. Pelas 16,00h nos
alojávamos no antigo “Ronda Hotel”, em plena avenida principal de Caçador,
nosso velho conhecido (Apt. 37). Hotel amplo, espaçoso, de teto alto e com
garagem coberta, coisas que desapareceram nas grandes cidades, onde a
ganância imobiliária suprimiu todos os cantinhos disponíveis. No saguão do
hotel corria um delicioso chimarrão, cuja cuia passava de mão em mão, e
está visto que suguei várias delas para matar as saudades.
Na portaria nos aguardavam mensagens de boas-vindas do
pessoal de Calmon e não tardaram a aparecer dois repórteres do jornal
“Gazeta”, tablóide publicado na cidade, moderno e bem feito. Fizeram uma
entrevista, com perguntas bem pensadas, e tiramos fotos. Espantou-me a
pouca idade dos moços; poderiam, com folga, ser meus filhos mais moços!
Acomodadas as coisas, vestimos nossas blusas de mangas
longas e partimos para as andanças a pé pela cidade. Percorremos a avenida
central (Barão do Rio Branco), larga e limpa, fomos à estação ferroviária,
prédio de linda arquitetura, hoje entregue ao abandono, visitamos o
mirante, subimos e descemos escadarias e ladeiras em que é pródiga a
cidade, situada à margem do Rio do Peixe, com topografia muito irregular.
Reencontrei lugares ligados, por alguma razão, à minha juventude, e
lembrei de pessoas, umas já “estudando a geologia do campo santo” (como
dizia Machado) e outras “em lugar incerto e não sabido” (como dizem os
oficiais de justiça). Jantamos num restaurante freqüentado pela garotada,
no alto da avenida, e depois voltamos a passos lentos ao hotel. Um pouco
de leitura completou a noite, cujo silêncio podia ser ouvido; apenas algum
guapeca latia de vez em quando.
Durante a viagem pegamos calor intenso, chuvas fortes e
chuviscos, frio e ventos gelados. À medida em que subíamos a Serra e nos
afastávamos do Litoral, tudo mudava: paisagem, vegetação, clima,
vestimentas, comidas, sotaques. E isso num percurso de pouco mais de 300
km. Santa Catarina é um arquipélago de diminutas nações!
-----------------------------------------------------
No dia seguinte, pelas 9,00h, seguimos para Calmon, desta vez no táxi do
senhor Alevi Antônio Dalmass, recomendado pelo hotel e velho conhecedor
daqueles ínvios. Nosso carro ficou na garagem, poupando-se dos 32 km de
pedras e buracos da estrada carroçável, por ironia denominada “Estrada da
Amizade.” Levamos cerca de duas horas para fazer um trajeto tão curto, e
só chegamos ao destino graças à perícia do motorista, ainda mais que
chovia muito e o chão estava liso. Logo que saímos, comecei a rever
lugares familiares: a Serraria Queimada, a encruzilhada de São João de
Cima, o mata-burros da fábrica de pasta mecânica Homerich, o portão da
fazenda de meu amigo João Driessen, a serrinha da usina velha, o cemitério
onde vi fogo-fátuo pela única vez na vida, morros, matarias, lagoas e,
afinal, a entrada da cidade. Tudo bem familiar. Muitos lugares pareciam
iguais, imutáveis, indiferentes ao longo tempo decorrido.
Logo no começo da Avenida Manoel Fortunato, João Batista
Ferreira dos Santos, o JB, líder do “Grupo Resgate”, nos esperava diante
da casa onde reside, preocupado com o mau tempo e as condições da estrada.
Entramos no escritório, examinamos muita coisa, inclusive a caixa de
munições que encontraram (trouxe comigo duas balas de fuzil), conhecemos
Mauri, o “braço direito” de JB, e a família deste. Tiramos fotos. Dei
entrevista para a “Rádio União”, da cidade paranaense de União da Vitória,
que foi transmitida mais tarde, quando almoçávamos na casa do amigo Neri
Gregório. Fizemos outra entrevista, esta para os arquivos e o jornal do
próprio grupo, também denominado “Resgate.” É curioso observar que conheci
Manoel Fortunato, que dá nome à avenida. Carroceiro e dono de bar nas
proximidades, é personagem de contos meus. Entregamos a JB os livros e
presentes que levamos e saímos pela cidade.
Percorremos toda a cidade, visitando a última casa onde
minha mãe e meu padrasto residiram, bem conservada (as outras não existem
mais), locais que eu costumava freqüentar, ruas, obras, construções. A
cidade cresceu, muitas construções novas surgiram. Visitamos, em seguida,
a estação ferroviária, em outros tempos o local de encontro das pessoas,
ali reunidas para acompanhar a passagem dos trens de passageiros. Como as
outras, está entregue ao abandono, vítima da intempérie, deteriorando-se,
ocupada por pessoas desconhecidas. Nos vãos da plataforma de pedra-ferro e
no pátio em derredor o mato campeia livre. No próprio pátio foram erguidas
casas. Placas com o nome da estação, altitude e distâncias desapareceram
(queimadas nos fogões?) ou estão apagadas. Não há vidros nas janelas. Os
imensos barracões que se enfileiravam à margem dos trilhos desapareceram.
E até o monumento erigido nas proximidades está abandonado. Enfim, um
panorama desolador e que me oprimiu o coração. Diante dessas situações,
tão freqüentes, e apesar do meu patriotismo talvez ingênuo, chego a
descrer deste país e de seus homens.
Seguimos, então, para a Câmara Municipal (a cidade tem nove
vereadores). Fomos recebidos por diversas pessoas, pelos vereadores
Santino Koch e Ademar Boff (este natural de Campos Novos) e funcionários,
num plenário bem instalado, onde todos falaram sobre minha visita e minha
obra, acentuando meu esforço na divulgação das coisas locais e da região.
Todos pareciam felizes com a minha presença e falavam com sinceridade.
Recebi na ocasião uma placa que conservarei com carinho entre meus
guardados, com os seguintes dizeres:
“O Grupo Resgate tem a honra de homenagear
o escritor ENÉAS ATHANÁZIO pelos serviços
prestados em prol da cultura de Calmon e região
do Contestado. Calmon/SC, 15 / janeiro / 2002.”
Agradeci, emocionado.
Dali, fomos à casa de Neri Gregório, ex-vereador e meu
conhecido desde a infância, onde nos ofereceram lauta churrascada com
carne de gado, de porco, de ovelha e de frango, conforme o gosto do
freguês, além de inúmeros acompanhamentos, tudo naquela fartura típica da
região. Estavam presentes o próprio Neri, Oclides Serafini, Ademar Boff
(cujo irmão, Alcides Boff, também camponovense, foi o primeiro prefeito de
Calmon), vereadores e outros amigos com as respectivas famílias, além dos
incansáveis JB e Mauri, que tudo filmavam e fotografavam. O “papo” correu
solto, revolvendo com saudade um passado distante. Após o almoço,
improvisamos um lançamento, tendo eu autografado muitos exemplares de meu
livro “O Cavalo Inveja e a Mula Manca.” Com os estômagos repletos e as
almas lavadas, partimos para novas andanças.
Visitamos, em seguida, o Zezé Bendlin, meu antigo
companheiro de andanças e caçadas, em seu sítio nas cercanias. Ele fechava
uma porteira, acompanhado de inseparáveis cachorros, e eu o reconheci de
longe: apesar dos anos, guardava o mesmo sorriso largo. Tão logo me viu,
naquela franqueza própria do caboclo, exclamou:
-Bah, Inéias, como você
tá véio!
Depois, caindo em si, tentou consertar:
-Quer dizer, nóis tamo véio!
Mesmo com tão cordial recepção, a conversa foi agradável e ele revelou
satisfação ao me ver. Tiramos umas fotos e seguimos, que o céu cinzento
prometia.
Com mais vinte quilômetros de buracos e pedras, entramos em Matos Costa, a
antiga São João dos Pobres, onde pereceu o corajoso capitão Matos Costa na
“Guerra do Contestado”, num dos episódios mais tristes do conflito, porque
ele foi um pacificador e compreendia muito bem os revoltosos, pelos quais
nutria simpatia. A vila foi, no início, um reduto de negros, e só mais
tarde entraram outras etnias. Nos meus tempos de Colégio era o “ponto de
café” para os passageiros dos trens e ali se comia um bolinho da graxa que
deixou saudades. Andamos pela cidade, visitamos os amigos Dico Fagundes e
esposa, fazendeiros na região, velhos conhecidos de minha família. Fomos à
Câmara Municipal e, na saída, me deparei com outro camponovense, o Ernesto
Pasquali, antigo morador da Barra do Leão, no interior de Campos Novos.
Camponovense é como italiano: tem em qualquer parte do mundo!
Retornando, visitamos Oclides Serafini, em sua “Fazenda
Serra do Bugre”, ao pé da lendária Pirambeira, avistada em toda sua beleza
da área da casa, com a mataria inceira e suas campinas, recortada contra o
céu azul. Local muito agradável, bem cuidado, uma morada acolhedora, onde
o bom “papo” rolou. A fazenda conserva muita mata nativa, pássaros e
animais silvestres em quantidade. Avistam-se veados, de vez em quando,
tatus e bugios que vêm gritar nas proximidades. Ela revela uma família
caprichosa e dedicada. Tanto Oclides como a Pirambeira são personagens
meus. Ele parecia o mais emocionado com minha visita. Clidão, grande no
tamanho e no coração!
Em Calmon, chegou a
hora das despedidas. Trocamos abraços e promessas de novas visitas.
Constatei com satisfação que JB e Mauri são benquistos e respeitados.
Depois, pulando sobre pedras e buracos, retornamos a Caçador, onde
chegamos pelas 19,00h. Retomamos as andanças pela cidade, jantamos no
“Restaurante Pastelão”, e nos recolhemos para descansar e absorver tantas
sensações concentradas num só e único dia.
Foi um dia repleto!
A região tem áreas
enormes cobertas com reflorestamento de “pinus eliotti”, essa floresta
exótica tão combatida pelos ecologistas. As áreas de vegetação natural
estão ficando cada vez mais raras, é um mar de “pinus.” As opiniões sobre
o assunto, na região, se dividem. Existem os que afirmam que essa árvore,
ao contrário do que se diz, não estraga a terra, embora todos reconheçam,
a uma voz, que nela a fauna nativa não sobrevive. Nem os bichos, nem os
pássaros, nem os répteis, nem os insetos. O que irá acontecer, só o futuro
dirá.
-----------------------------------------------------
Na manhã seguinte, dia
16 de janeiro, uma quarta-feira de sol aberto, muito cedo, eu já mateava
e proseava no saguão do hotel. Descobri ligações com conhecidos, tive
notícias de outros e fui informado de muita coisa mais recente sobre a
cidade e a região.
Deixando com pena o
conforto do velho “Ronda Hotel”, fui até a “Rádio Caçanjurê”, uma das
emissoras mais antigas do Estado, onde o radialista Joair, conhecido de
longa data, pedia minha presença para uma entrevista. Ele já vinha
anunciando que eu andava por lá. Fizemos uma entrevista longa, falando de
minha obra e recordando passagens de minhas antigas visitas à cidade.
Fomos, em seguida, à
Universidade do Contestado (UnC), em cujo “campus” de Canoinhas eu
lecionei durante vários anos na época em que fui Promotor de Justiça
naquela cidade. Soube que a Biblioteca Central possui quase todos os meus
livros, diversos deles bem manuseados, e no painel está um “release” sobre
o destaque que recebi da revista “Literatura” (Brasília).
Chegou, então, o
momento de deixar a cidade e iniciar o retorno, agora por outro caminho.
Fomos saindo devagar no rumo da BR 116, pela qual subimos na direção
norte. Fizemos uma longa escala em Monte Castelo, curiosa cidade de
colonização polonesa/ucraína e um dos centros de maior produção de
erva-mate, nos ricos tempos do “ouro verde.” Plantada no alto, o horizonte
se abre para todos os lados, a perder de vista, em campos e matos
verdejantes. Seu nome homenageia os expedicionários brasileiros que
lutaram na Itália. Monte Castelo é o lugar ideal para quem deseja uma
tranqüilidade que desapareceu em quase toda parte.
Almoçamos no conhecido
“Restaurante Matinhos”, amplo e confortável, deixamos de lado a cidade de
Mafra e iniciamos a descida da Serra, passando por Rio Negrinho, São Bento
do Sul, Campo Alegre e Joinville, retomando a BR 101. Chegamos em Piçarras
para rever o “Meu Chão”, cuja reforma está quase pronta. A Estrada Dona
Francisca, no sinuoso trecho da Serra, foi reformada, iluminada e
ajardinada. Ficou uma estrada turística, embora perigosa. E o “Meu Chão”
está ficando lindo, e ficará ainda mais quando tremular no mastro a
bandeira do “Contestado”, branca e com uma cruz verde, feita pela Jandira.
Por volta das 18,00h chegávamos ao nosso prédio, em Balneário Camboriú.
Depois de cinqüenta
anos de luta, Calmon conseguiu passar para a jurisdição da comarca de
Caçador, mais próxima e com a qual tem mais afinidades. A Justiça demorou
a enxergar!
A região do
“Contestado” está empobrecida. O homem de lá vem lutando pela
sobrevivência num clima bravo e hostil. A multinacional e suas sucessoras
sugaram o que havia de melhor e deixaram atrás de si um rastro de
devastação, montanhas de serragem e aleijados de serrarias. Apesar do
esforço desse povo guerreiro, a região nunca se recuperou, e vive no mais
completo abandono por parte dos governos. É um povo catarinense por amor à
terra, o mais catarinense dos catarinenses, que lutou até o fim contra a
invasão nacional e estrangeira. Santa Catarina, decididamente, não o
merece! A exploração aconteceu com o beneplácito de governos e políticos,
tendo o poderoso Assis Chateaubriand e sua cadeia de jornais como
advogados de Percival Farquhar.
-----------------------------------------------------
Notas:
(1)
Sobre Caçador, Matos Costa e Monte Castelo,
v.
“História de Santa Catarina”, Curitiba, Grafipar, Vol. IV, 1970.
(2)
Sobre o itinerário percorrido e as demais cidades,
v. “Guia 4 Rodas – Brasil”, S. Paulo, Editora Abril, 1999.
(3) Sobre a ligação de Chateaubriand com Farquhar, v.
“Chatô, o Rei do
Brasil”,
de Fernando Moraes,
S. Paulo, Cia. das Letras, 1994.
-----------------------------------------------------
BALNEÁRIO CAMBORIÚ, 20
de janeiro de 2002.
(05 de julho/2008)
CooJornal no 588