Caminho longo e tortuoso
Embora publicado em 1964
nos Estados Unidos, depois de mais de quatro décadas de marchas e
contramarchas, saiu no Brasil, em tradução de Eliana Nogueira do Vale, o
livro “Farquhar, o último titã”, de autoria do historiador e brasilianista
avant la lettre norte-americano Charles Anderson Gauld (1911/1977).
Trata-se, segundo a crítica, da mais longa e minuciosa biografia do
empreendedor norte-americano, nascido em York, Percival Farquhar
(1864/1953), cuja vida está estreitamente ligada ao Brasil em geral e ao
nosso Estado em particular, onde sua ação teve sérias conseqüências, até
hoje sentidas em algumas regiões. O volume tem mais de 500 páginas, custou
ao autor ingentes esforços e se fundamenta em bibliografia imensa, como
costuma acontecer com ensaios biográficos americanos que esmiúçam o tema
até o limite. Para chegar às mãos dos leitores brasileiros o livro
percorreu longo e tortuoso caminho, merecedor de explicações minuciosas da
editora e da tradutora. Publicado pela Editora de Cultura (S. Paulo –
2006), o livro contém interessantes fotografias e vários anexos que o
atualizam e trazem novas informações sobre fatos posteriores, além de
colocar um ponto final em algumas dúvidas existentes. Ainda que o autor
não veja com simpatia nosso País, antes pelo contrário, é incrível que um
livro dessa importância para nossa história só agora seja acessível ao
pesquisador nacional.
Visão e coragem
Percival Farquhar foi um
empreendedor de acurada visão futura e invulgar coragem. Depois de
realizações em Cuba e na Guatemala, voltou-se para a América do Sul e o
Brasil, ponto de partida para o império que sonhou edificar, conhecido
como Sindicato Farquhar. Seus negócios incluíam portos, como os de Belém e
de Rio Grande, exploração de minérios e madeira, frigoríficos, gado,
colonização, terras, energia elétrica, carvão e outros, avultando seu
interesse pelas ferrovias, planejando implantar uma rede transcontinental
de trilhos que cobririam o Brasil, o Paraguai, a Bolívia, o Uruguai, a
Argentina e o Chile. Sem dúvida, um empreendimento para mais de uma vida,
ainda que ele tivesse vivido até os 89 anos. Encarado por muitos
brasileiros como um aventureiro, Farquhar encontrou renhidos adversários,
em especial entre os nacionalistas, como Monteiro Lobato, que o denunciou
em carta ao então presidente Getúlio Vargas. É curioso notar que mais
tarde o criador do Sítio do Picapau Amarelo deu início a uma biografia de
Farquhar, com o consentimento deste, projeto que não se concretizou em
virtude da proibição da censura.
Trilhos e serrarias
Entre as realizações de
Farquhar no ramo dos transportes, avultam a Estrada de Ferro
Madeira-Mamoré, a lendária “ferrovia do diabo”, ligando Porto Velho a
Guajará-Mirim (RO), visando desviar as violentas corredeiras daquele rio e
ligando por terra a Bolívia ao Atlântico. A outra foi a construção da
Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, interligando todo o sul do Brasil e
cortando o Vale do Rio do Peixe, entre Porto União, em Santa Catarina, e
Marcelino Ramos (RS). Sobre o rio Iguaçu, em Porto União, foi construída
uma ponte com 427m de extensão, a maior do País, na época, ainda hoje
existente. Também construiu o ramal de São Francisco do Sul e adquiriu a
Estrada de Ferro Teresa Cristina, ambas em nosso território. Com o término
do trecho Porto União-Marcelino, deu início à serragem de madeiras
(araucárias e madeiras de lei) na serraria construída em Calmon através da
afiliada “Southern Brazil Lumber & Colonization Corporation”, de sua
propriedade. A derrubada das matas, inclusive das erveiras (erva-mate), e
a expulsão dos posseiros contribuíram para fomentar a violenta Guerra do
Contestado (1912/1916), fatos que são reconhecidos pelo biógrafo. Não
parece, porém, que Farquhar tenha dado maior importância a esses
acontecimentos e tudo indica que jamais esteve em Calmon, embora se
referisse “à minha Lumber.” Existe aí, parece-me, pequeno engano do autor
ao dizer que Calmon era a antiga São Roque, quando, na verdade, esta
localidade fica mais ao norte e Calmon se chamava antes Osman Medeiros. O
empreendedor investiu grandes capitais sacados em bancos europeus,
americanos e canadenses, razão pela qual – acredito – seu sindicato era às
vezes designado como “polvo canadense.” Era a “dança dos milhões da Brazil
Railway, que faziam de Farquhar a figura econômica mais poderosa do
Brasil” – afirma o autor. Tanto a serraria como a estação de Calmon seriam
queimadas mais tarde pelos revoltosos. Em território catarinense o
empreendedor criou várias colônias, à margem da ferrovia, entre elas Legru,
Rio das Antas e Nova Galícia. Esta última chegou a receber a visita do
ex-presidente Theodore Roosevelt, em 1913. A grande serraria do grupo, no
entanto, estava em Três Barras, com instalações modernas e maquinário
poderoso que dela fizeram a maior indústria do gênero em toda a América do
Sul.
A Lumber foi fundada em
1908/1909, com base no Decreto 7426, de 3 de junho deste ano, mais tarde
alterado. No ano seguinte se concluiria a primeira serraria, em Calmon, e
os trilhos da ferrovia chegariam ao rio Uruguai, divisa com o Rio Grande
do Sul, em cuja margem oposta fica Marcelino Ramos. Neste ano Miguel
Calmon du Pin e Almeida, que deu nome à estação, já havia deixado o
Ministério da Viação, de forma que por ocasião da conclusão da estrada não
era mais ministro de Afonso Pena.
O
grande desafio
Farquhar considerava a
construção do trecho catarinense da ferrovia um grande desafio. Em direção
ao porto de São Francisco havia a Serra do Mar a vencer. O Vale do Rio do
Peixe, por sua vez, é irregular, com serras íngremes, exigindo técnicas
especiais de construção, uma vez que seriam usadas locomotivas leves. Suas
inúmeras curvas, túneis e obras de arte levaram alguns críticos a
considerar a ferrovia inviável desde a inauguração, demorando e
encarecendo o transporte das mercadorias. Por outro lado, o fato de usar
lenha como combustível contribuiu para o rápido desmatamento nativo da
região. Mas, para compensar, o clima da região era de boa qualidade, as
terras férteis e quase desabitadas. O empreendedor, porém, não contava com
a decidida oposição dos posseiros.
Os entraves
O autor do livro, às
vezes afinado com o biografado, não poupa o País. O atraso, a politicalha,
a corrupção, a burocracia, o preconceito contra os negros e os
estrangeiros – tudo encarecia sobremaneira qualquer realização.
Exasperava-se ao verificar que os imigrantes se amoldavam aos usos locais,
absorvendo os hábitos que considerava maus, “acaboclando-se.” Mas ele
vislumbrava para Santa Catarina e o Paraná um futuro brilhante na
federação, ainda que a corrupção também funcionasse em Florianópolis e
Curitiba. “Custou caro aos cofres da Brazil Railway subornar tantos
brasileiros para que agissem em benefício do Brasil” – escreveu Olivo
Gomes, entusiasta das iniciativas do norte-americano. Nem mesmo Miguel
Calmon e Paulo de Frontin ficaram isentos das suspeitas de suborno. “Mas
os amigos de Farquhar sentiram que os dois políticos (acima referidos)
estavam mais interessados em propina do que em beneficiar o Brasil” –
afirmou Gauld. Segundo ele, o austero presidente Afonso Pena sofreu um
trauma moral que o levou à morte precoce, aos 60 anos, quando descobriu o
lodaçal que havia no Ministério da Viação.
O
império ruiu
O império de Percival
Farquhar ruiu. Depois de serrarem milhões de árvores, suas serrarias,
afiliadas e sucessoras desapareceram sem deixar vestígio e a riqueza
produzida escoou pelos vãos dos dedos para outras regiões. Entregue ao
descaso e à corrupção, o trecho da ferrovia entre Porto União e Marcelino
Ramos acabou desativado e hoje se transformou em sucata. A região ficou
empobrecida e jamais se refez por completo. Os ramais remanescentes
funcionam em condições precárias, mal conservados e carecendo de
investimentos urgentes para que não tenham idêntico destino. Em suma: nada
ou bem pouco restou dos “milhões de Farquhar” em terras catarinenses.
São algumas observações
a respeito de um livro às vezes amargo mas que precisa ser conhecido pelos
catarinenses em geral. Querendo ou não, Percival Farquhar é personagem de
nossa história.
(21 de junho/2008)
CooJornal no 586