Miguel Calmon du Pin
e Almeida (1879/1935), o sobrinho, nasceu na Bahia e pertenceu a uma
família aristocrática de latifundiários e políticos ligados ao Império e à
Primeira República. Herdou o nome do tio, o Marquês de Abrantes, figura de
expressão na vida nacional da época. Outros membros da família ostentaram,
mais tarde, idêntico nome, dizendo-se que existiram vários deles. Sempre
me intrigou a razão pela qual a Vila de Calmon, então pertencente ao
município de Porto União e hoje comuna independente recebeu esse nome e
onde estaria a ligação daquele homem público com nosso Estado,
justificando o batismo de uma estação, hoje cidade, à margem da Estrada de
Ferro São Paulo-Rio Grande, no Vale do Rio do Peixe, com seu nome. Minhas
leituras a respeito pouco ou nada esclareceram e, agora, lendo um robusto
livro a respeito, anoto aqui as conclusões a que cheguei.
Em 1936, cerca de um
ano após o falecimento de Miguel Calmon, sua viúva, Alice da Porciúncula,
doava ao Museu Histórico Nacional (MHN), do Rio de Janeiro, considerável
quantidade de objetos que pertenceram à família e ornavam o palacete onde
vivia o casal, no bairro de Botafogo. As intermediações para a entrega
foram feitas pelo historiador Pedro Calmon, sobrinho do falecido e seu
biógrafo, mais tarde o magnífico reitor da Universidade do Brasil. O
historiador Gustavo Barroso, primeiro diretor do MHN, recebeu com
entusiasmo a doação e aceitou de pronto as condições estabelecidas pela
viúva. A Coleção consistia em móveis, objetos de casa, jóias, prataria,
souvenirs de viagens, fotografias, tapetes e quadros, livros,
documentos, obras do próprio marido etc. Pela qualidade e quantidade,
recebeu o nome de Coleção Miguel Calmon e foi acomodada em sala própria,
onde permaneceu durante trinta anos até que a direção do MHN mudou de
orientação e desmontou a Coleção, espalhando-a no acervo e recolhendo em
parte à reserva técnica da Casa. Partindo dessa doação, fato pouco comum
entre nós e que completou 60 anos em 1996, a antropóloga social Regina
Abreu publicou o livro “A Fabricação do Imortal” (Lapa/Rocco – Rio –
1996), onde estuda a memória, a história e as estratégias da consagração
no Brasil. Analisando as condições da doação e o conteúdo da Coleção,
escolhido com rigor e critério pela doadora, a autora mostra a preocupação
em mostrar o lado público da vida de Miguel Calmon, aquela faceta a ser
exibida e preservada, sem permitir intromissões e olhares indiscretos na
vida privada do casal. Seria, em síntese, uma forma de “fabricar a
imortalidade”, construindo a imagem do homem público circunspeto e
dedicado ao País, perpetuando assim a sua memória. Sem herdeiros diretos,
Alice da Porciúncula pôde realizar a doação sem problemas, merecendo por
essa atitude elogios e reconhecimento, inclusive da autora do livro.
Ainda que não seja
uma biografia e nem essa foi a intenção de Regina Abreu, o livro fornece
inúmeras e importantes informações a respeito desse personagem ligado para
sempre ao nosso Estado. Nascido em berço rico, Calmon mereceu esmerada
educação. Freqüentou o tradicional Colégio 7 de Setembro, ninho da elite
baiana, e depois se diplomou em engenharia civil pela celebrada Escola
Politécnica do Rio de Janeiro. Embora afirme a autora que ele sempre
“manteve viva a solidariedade com os colegas”, pouco informa sobre essa
fase universitária de sua vida. Nesse ponto, aliás, a obra comete curiosa
omissão, uma vez que não faz qualquer referência ao escritor carioca Lima
Barreto ou a suas obras. Como se sabe, ele foi colega de Calmon na Escola
Politécnica e tinha por ele profunda aversão. Dizia ter sido menosprezado
pelo baiano rico, a quem considerava um protegido da sorte e apadrinhado
dos poderosos, enquanto ele amargava a mais vil pobreza, à margem da
miséria. Seu panfleto “O Ideal de Bel Ami”, comparando Calmon ao personagem
de Maupassant, é uma terrível crítica ao colega. Quando embriagado, Lima
Barreto afirmava que “compraria uma espada para matar o Bel Ami.” Em sua
biografia do escritor, Francisco de Assis Barbosa detalha as manifestações
de Lima Barreto contra Calmon, inclusive com base em depoimentos de
contemporâneos. Seja como for, parece que Calmon nunca levou em conta as
investidas do colega ou fez por ignorá-las. Nada existe indicando que
tenha se incomodado com isso.
Tudo indica que
Calmon deixou os bancos da Politécnica bem preparado, tendo feito um curso
esmerado. Formando-se muito jovem, retornou à Bahia para exibir aos
conterrâneos seus talentos de engenheiro e tecnocrata competente. Nessa
fase histórica os engenheiros, inclusive militares, desfrutavam de grande
prestígio e acreditavam que a eles cabia a criação do Brasil moderno,
alinhado com as recentes conquistas da ciência e da técnica. Calmon aliava
essa busca da modernidade com a tradição de sua família de homens públicos
destacados. Não tardou a conquistar uma cadeira na Politécnica local e
iniciar importantes obras de engenharia. Nomeado Secretário de Estado da
Agricultura, Viação e Obras Públicas, “seu programa de trabalho consiste
em fazer progredir a terra natal.” Correligionário e admirador de Rui
Barbosa, contando com a simpatia dele e o apoio poderoso do próprio pai, é
eleito Deputado Federal pela Bahia. Mais tarde seria eleito Senador, mas
perde o mandato com a Revolução de 30, afastando-se em definitivo da vida
pública. Como Gilberto Amado, também Senador, encontrava-se na Europa por
ocasião da vitória de Vargas e já retornou à pátria sem mandato,
tornado-se um “carcomido” ou um “decaído”, como diziam os revolucionários
vitoriosos dos políticos da República Velha.
Miguel Calmon foi
duas vezes Ministro de Estado. Na primeira foi titular da pasta da Viação
e Obras Públicas no governo de Afonso Pena, considerado “o presidente das
ferrovias”, entre 1906 e 1909. Na segunda ocupou a pasta da Agricultura
entre 1922 e 1926. O exercício de tantas e tão variadas funções, aliado à
observação e ao estudo, lhe conferiu vasta visão do país e de seus
problemas, como deixaria registrado em seus escritos. Com efeito, entendia
dos temas mais díspares e sobre eles opinava com seguro conhecimento. Sua
bibliografia contém ensaios sobre aplicações do álcool, problemas do
açúcar, valorização do café, produção e comércio da borracha, o algodão no
mundo, a instrução pública, fastos econômicos, pedagogia moderna,
problemas do cacau, o homem público e a história, cooperativas de crédito,
tendências nacionais e influências estrangeiras, além de conferências
sobre temas históricos e discursos. Celebrizou-se como o mais jovem
ministro brasileiro, tendo assumido o cargo com apenas 27 anos de idade.
Afonso Pena também deu nome a uma das estações ferroviárias no mesmo
trecho – Presidente Pena.
Entre suas
realizações como ministro alinham-se importantes obras, muitas delas
referidas pela autora e outras omitidas. Avultam a Exposição Nacional,
realizada na Urca, em 1908, em local amplo e com repercussão
internacional; o apoio e a realização da Missão Rondon, com os objetivos
de mapear o país, instalar linhas telegráficas e conhecer os indígenas,
cuja homogeneização com o povo nacional era perseguida; a implantação de
colônias agrícolas e missionárias no hinterland, buscando amansar e
educar os indígenas bravios; a implantação do abastecimento de água de
Paquetá; a melhoria do abastecimento de água do Rio de Janeiro; o
povoamento do solo e o incentivo à entrada de colonos estrangeiros; a
construção da estrada de ferro de Alcobaça (BA); a construção da estrada
de ferro de Goiás; a construção da estrada de ferro de Mato Grosso; a
instalação do telégrafo nas estações ferroviárias, ligando as populações
ao sistema nacional de comunicações; realização de obras nos portos;
saneamento de regiões insalubres; abertura e melhoramentos de rodovias
etc. Como se vê, a ferrovia foi uma constante em suas preocupações, a
idéia do trem cortando as matas parecia-lhe “a utilização da ciência em
prol da domesticação da natureza” (p. 80). “Os trens – pensava ele,
segundo a autora – significavam o poder do maquinismo, o domínio do homem
sobre as forças da natureza. Sinalizavam, também, a integração das
populações dispersas no território nacional.” Como dizia Machado de Assis,
“o Brasil é uma criança que engatinha e só começará a andar quando estiver
cortado de estradas de ferro” (p. 103). As ferrovias integravam a
permanente busca da modernidade que presidia sempre sua ação como homem
público. Esse pensamento, infelizmente, foi esquecido por alguns
iluminados do Século XX que optaram pelo estradismo, entregando as
ferrovias ao abandono e à sucata em que se transformaram. Investimentos
caríssimos e demorados estão hoje entregues à intempérie e ao vandalismo.
É curioso observar
que a Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, no trecho entre Porto União
(SC) e Marcelino Ramos (RS), cortando todo o Vale do Rio do Peixe (depois
RVPSC e RFF S/A), nem sequer é mencionada. É verdade que Calmon deixou o
ministério em 1909 e essa ferrovia só foi concluída em 1910, mas foi
justamente nela que mereceu a grande homenagem de nominar uma cidade. Terá
ele considerado aquele trecho uma obra menor? Terá ele visitado, em suas
andanças ministeriais, aquela região? Terá conhecido o local da cidade que
hoje tem seu nome? São perguntas de difícil ou impossível resposta.
Além dessas
realizações materiais, assinale-se que foi escritor bastante ativo, tendo
deixado ensaios, conferências, discursos, teses e relatórios que bem
revelam um erudito muito informado e ligado às coisas de seu tempo. A
biblioteca pessoal, integrante da Coleção, indica que muito lia e lia bem.
Concluindo, pode-se
dizer que se Miguel Calmon não alcançou a “imortalidade fabricada” através
da Coleção doada ao MHN e à postura do homem público e se muitas de suas
realizações, em especial as ferrovias, desapareceram ou estão
desaparecendo, ele alcançou a imortalidade por outro caminho: o batismo da
cidade de Calmon com o seu nome. É uma homenagem imperecível que os
calmonenses preservam com ardor e que perpassará os tempos, salvo que
algum outro iluminado, algum dia, decida mudar o nome da cidade. Embora
seja improvável, isso é possível, pois, como dizia Monteiro Lobato, os
brasileiros se impressionam muito com as sonoridades e imaginam que
trocando os nomes as coisas se modificam.
Vamos esperar,
porém, que nunca aconteça.
(31 de maio/2008)
CooJornal no 583