Nascem as cidades de
variadas circunstâncias. Algumas surgem por acaso, outras por necessidade
e umas poucas são até planejadas. Poucas, porém, nascem da fé de uma única
pessoa, como aconteceu com Bom Jesus da Lapa, à margem do rio São
Francisco, cuja gênese foi descrita de forma ficcionalizada pelo escritor
piauiense William Palha Dias. Depois de muitas buscas e pesquisas, ele
publicou a novela de fundo histórico “Inusitado Peregrino” (Edição do
Autor – Teresina – 2006), em que procurou reconstituir em detalhes o
curioso nascimento dessa importante cidade. Embora os elementos
informativos fossem poucos, além de muito distanciados no tempo, impedindo
uma consulta às fontes primárias, o livro ganhou forma e conteúdo,
transformando-se numa obra de leitura agradável e importante documento de
um episódio pouco versado nas letras e que se relaciona com uma cidade
querida pelos incontáveis romeiros que a visitam em busca de ajuda
espiritual ou por mero ato de fé. Como diz, o autor, o relato se
fundamenta “em fragmentos históricos e laivos de oralidade popular
existentes no vale do rio São Francisco. Não foi tarefa fácil – prossegue
ele - engendrar em narrativa, mesmo curta, acontecimentos tão distantes,
guardados apenas em comentários orais ou sob a condição cordelista...”
(pág. 9). Essas fontes são a voz do povo e, segundo o velho brocardo,
vox populi, vox Dei, de forma que está o autor em boa companhia e, com
certeza, seu relato é bem próximo da verdade histórica, pelo menos nas
linhas básicas, em que pese o acréscimo de alguns detalhes talvez
inverossímeis inventados pela mística popular. Mas são esses detalhes, em
tantas obras, que lhes dão vivacidade e sabor humano, distanciando-as dos
relatos frios da história convencional.
Tudo teve início quando
o penitente Francisco Mendonça Mar, convertido às práticas religiosas da
irmandade, em São Salvador, na Bahia, estimulado por visões que lhe surgem
em sonhos, decide partir por “um mundo sem fronteiras”, orientado apenas
pela fé e indiferente ao que pudesse acontecer. Queria se afastar de um
ambiente de ambição e ganância que feria sua pureza de crente e o
desagradava de forma visceral. Com o alforge às costas e imenso crucifixo
sobre os ombros, parte em busca do local onde plantaria em definitivo a
cruz que transportava com sacrifício e a própria morada. Iria em busca da
gruta que lhe aparecia em sonhos, a “grande furna onde pretendia pôr em
evidência as tendências de anacoreta que o embalavam” (pág. 16).
Enfrentando todos os obstáculos naturais, afundou no sertão, vencendo
morros e descidas, rios e vales, planícies desertas e mataria fechada,
buscando desviar-se dos índios, dos estradistas e plantadores de currais,
sem falar nos animais selvagens que povoavam a inóspita região. Por volta
dos oitenta dias de andanças consegue com habilidade obter a tolerância
dos índios que o viam como invasor e a amizade de um felino que passa a
acompanhá-lo e defendê-lo. Depois de jornadas e aventuras sem fim,
superando o medo, o cansaço, a fome e a sede, alcança o local de seus
sonhos – a Lapa. Ali inicia suas pregações, não tardando o ajuntamento de
crentes que vão formando, aos poucos, o núcleo da futura cidade. Nas
proximidades começam a surgir jazidas auríferas. Ao contrário do que
costuma acontecer em casos semelhantes, a igreja oficial o reconhece como
apto a exercer as funções de cura e, em curto espaço de tempo, é ordenado.
Torna-se o vigário do templo da Lapa, padre Francisco da Soledade, vivendo
no local pelo resto da existência, entregue à sua fé e ao serviço de Deus.
Cercado de crentes e santificado pela fé popular, ali foram depositados
seus restos mortais. As romarias crescem, a cidade ganha em importância e
as histórias relacionadas à sua fundação e ao seu cura são variadas e
ricas em elementos da imaginativa do povo. Por tudo isso e muito mais, a
novela de Palha Dias merece leitura. Prende o leitor até o fim, revelando
um dentre tantos episódios curiosos em que é pródiga a vida brasileira.
(19 de abril/2008)
CooJornal no 577