22/03/2008
Ano 11 - Número 573
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
CONVERSAS COM CASCUDO
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Revi numa noite destas o documentário “Conversas com Cascudo” que a SESCTV
reprisou. É trabalho bem feito, mostrando o mestre na intimidade de seu
casarão da Avenida Junqueira Aires e na pujança da sabedoria. Conservou
até o fim o cacoete do professor que foi a vida toda, prelecionando, quase
declamando lições. Fechou o documentário com a frase, dirigida ao Brasil,
que correu mundo, publicada e repetida tantas vezes: “Enxergando pouco e
meio surdo, dei de mim o que pude, mas, se for chamado, aqui serei
encontrado, pronto a servir como puder ao meu povo e à minha pátria.”
Palavras pronunciadas à janela do casarão onde viveu e trabalhou esse
“provinciano incurável”, como o apelidou Afrânio Peixoto, com a silhueta
inconfundível desenhada contra a claridade, sugando o inseparável charuto.
Como Érico Veríssimo em Porto Alegre e Gilberto Freyre no Recife, Luís da
Câmara Cascudo (1898/1986) se recusou a deixar a província natal,
contribuindo para desmentir o mito de que elevada cultura só é possível
nos grandes centros. Todos alcançaram reconhecimento nacional e até
internacional, fomentando núcleos culturais importantes ao redor deles em
suas regiões.
Decorridos quase vinte anos de sua morte, Cascudo é lembrado como poucos
intelectuais brasileiros. Trabalhos de todos os gêneros surgem a respeito
de sua obra, embora seja forçoso reconhecer que ainda não teve o biógrafo
que merece. As abordagens biográficas existentes são fracionárias e
incompletas, deixando de lado aspectos importantes, como as viagens
etnográficas que realizou pela África e Portugal, além de outras fases de
sua laboriosa vida. Suas Obras Completas vão sendo reeditadas pela Global
Editora e ensaios importantes têm sido publicados, merecendo destaque o
recente “À mesa com Cascudo”, de Pedro Vicente (*), abordando aspectos
muito curiosos. “A cultura popular é o complexo – afirmou o mestre. –
Representa a totalidade das atividades normais do povo, do artesanato ao
mito, da alimentação ao gesto. Ora, a mim interessa tudo o que é do povo,
até o que ele faz no banheiro ou no mato.” Para ele, cultura popular é
mais ampla que folclore, como repetiu no documentário referido.
Sendo assim, foi ele buscar os segredos de nossa comida, tema abordado no
ensaio de Pedro Vicente. Foi estudar o padrão alimentar da África negra, a
transferência da culinária portuguesa para o Brasil, o cardápio indígena e
suas influências na alimentação brasileira, sem esquecer as adaptações
determinadas pelas condições locais. Considera menores as influências
culinárias de outras nacionalidades. O resultado dessas buscas
incessantes, cujas notas encheram suas gavetas por longos anos, foi um
livro monumental, em dois alentados volumes: “História da Alimentação no
Brasil”, clássico da história nacional. Como diz o ensaísta, as
investigações de Cascudo iam da água, do pasto, da horta e do pomar à
cozinha como fábrica de sonhos.
Tive a inesquecível experiência de passar uma tarde com ele na cidade de
Natal, em 1983, três anos antes de seu falecimento. Estava alegre e
disposto e muito conversamos. No Memorial Câmara Cascudo, onde se encontra
a biblioteca que foi dele, encontrei vários livros meus, todos anotados,
sinal de que ele os leu. Chegou mesmo a escrever sobre os contos de “O
Azul da Montanha.”
Como disse Drummond, Cascudo deixou de ser uma pessoa, passando a ser nome
de dicionário; “o” Cascudo, está “no” Cascudo, consulte “o” Cascudo.
Refere-se, é claro, ao “Dicionário Brasileiro de Folclore.”
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(*) Revista da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras,
Número 34, Vol. 46, Julho de 2005, Págs. 11/20.
(22 de março/2008)
CooJornal no 573
Enéas Athanázio,
jurista e escritor
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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