01/03/2008
Ano 11 - Número 570
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
A Cortina Invisível
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Nem os
amigos mais chegados poderiam suspeitar. Era assunto situado numa região
em que as confidências não chegavam e que ele defendia apenas para si. Na
verdade, o próprio Janary Messias encarava aquilo com surpresa e sua alma
de campeiro ficava um pouco escandalizada com o inusitado da situação. No
seu íntimo se misturavam o receio do sacrílego e o prazer daquela sensação
estranha.
Aquilo começou há muito tempo e fora evoluindo devagar sem que ele
percebesse. Desde mocinho o advogado cultivava com fervor aquela devoção e
não foram poucas as situações difíceis em que apelou à Santa. Eram apelos
silenciosos e secretos, na paz da igreja vazia (só assim a frequentava),
no movimento da rua, nas lutas dos tribunais. E tinha a convicção de que
nem uma vez ficara ao desamparo.
A Santinha era um ente familiar e com ela conversava sem rodeios ou
formalidades, até mesmo reclamando quando tardava algum atendimento.
Conhecia-lhe a vida e as virtudes, embora não fosse muita coisa, pois era
pouco venerada na sua região. Conhecia as poucas imagens existentes por
ali e não se cansava de admirar uma delas, de faces cândidas, e cujos
olhos muito vivos pareciam brilhar de alegria quando ele se aproximava.
Nas poucas visitas que fazia à mãe, na Fazenda do Umbu, a velha ficava
admirada com o seu interesse por aquela Santa, quando conseguia arrastá-lo
até a capela. Tinha o filho doutor como ateu incurável e Janary temia que
ela desconfiasse de alguma coisa inconfessável.
"Ora, mamãe! - replicava. - É curiosidade." Explicava todo atrapalhado.
Mas era na cidade, longe do olhar atento da coronela do Umbu, que ficava à
vontade. Postava-se diante da estátua por longos minutos, como que
decorando detalhes. Admirava a nobreza da testa, o brilho do olhar, a
suavidade do queixo, as covinhas do rosto. "Que pessoa maravilhosa!
- pensava. - Por que morrer tão jovem?" E dali, humilde e devoto,
atirava-lhe pedidos e orações.
As visitas espaçadas foram ficando mais seguidas e acabaram quase diárias.
A um amigo e companheiro de viagens que notou aquilo, justificou com a
arte da imagem, os dotes do escultor. O outro, caboclão sestroso para quem
essas histórias de arte eram coisa de maricas, fez cara de gozo e
largou uma gaitada.
"Ué, gente! Ué, gente!"
Mas Janary sentia que a coisa se agravava.
Examinando processo ou estudando algum tratado, a imagem santificada se
intrometia no vão das páginas e aquele rosto suave parecia colocar-se
diante dele. Via com nitidez os olhos
brilhantes e as covinhas das faces se movendo num sorriso que em outra
pessoa, em outra mulher, ele diria... matreiro! Mas aquela idéia era um
absurdo, uma barbaridade! Persignava-se, pedia perdão, caminhava
horrorizado pelo escritório, esforçava-se para mudar de pensamentos.
Às vezes acordava durante a noite. Ficava silencioso no quarto escuro,
estirado na cama de solteirão. Não tardava e a Santinha assaltava sua
imaginação. Imaginava-a vestida em roupas modernas, com os cabelos soltos,
alguma pintura no
rosto pálido. Como ficaria linda! Via-a sorrindo - pela primeira vez - com
a dentadura alva e perfeita iluminando as faces. Era tão forte aquela
fantasia que esticava os braços para fora das cobertas como se quisesse
tocá-la. Mas o ar gelado da noite agredia-lhe as mãos e Janary recaía na
realidade solitária. Levantava-se, caminhava pela casa, rezava. Tinha a
sensação aguda de que fazia alguma coisa errada, apesar do lirismo e da
pureza daquele sentimento que o abismava.
Procurava distrair-se. Corria de carro a cidade e os
arrabaldes, metia-se nas rodas do Café, permanecia muito tempo nos grupos
do Fórum. Tentava interessar-se pelas coisas da política, sua velha
cachaça.
Tudo inútil.
Mal sentava à mesa do escritório e a silhueta esguia
começava a esboçar-se. A figura feminina ia se desenhando nos menores
detalhes e ele via, ao alcance da mão, a mulher mais linda que poderia
imaginar, beleza viva, colorida, brilhante, como se dela se desprendesse
uma aura. E ela sorria com suavidade, os olhos cheios de ternura.
A qualquer tentativa de aproximação, o quadro mudava, ia se desvanecendo,
ia se apagando como se uma cortina invisível se colocasse entre os dois.
Janary procurava conversar mas suas palavras ecoavam sem resposta no
escritório. O sorriso dela, no entanto, acentuava as covinhas e o brilho
sem igual daqueles olhos.
Vinha-lhe o impulso irresistível de ir à igreja e se postar diante da
imagem. Tinha ímpetos de ir ao Umbu e aconselhar-se com a mãe; de procurar
o padre Pedro. Mas
recuava. Eles iriam imaginar que não estava bom de cabeça. E nunca
estivera tão lúcido!
O advogado procurava pensar, analisar as coisas com frieza, esquadrinhar
tudo com a lógica que aplicava aos seus casos. Esquentava a cabeça e a
nenhuma conclusão chegava.. ou chegava sempre à única conclusão - estava
apaixonado pela Santa! Uma paixão frenética e desesperada como a do colegial
pela primeira namorada, uma paixão avassaladora que
absorvia o corpo e a mente, que roubava o sono e perturbava a paz.
Sabia que era um amor irrealizável e um sentimento sacrílego que precisava
combater. Mas seu esforço era vão. Quanto mais lutava mais se sentia
dominado.
Perplexo, impotente, desconcertado, resolveu deixar
que o Tempo corresse.
Tempo é remédio.
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E o Tempo passou.
Passaram os dias, passaram os meses, passou o ano. Janary Messias estava
feliz, vivia alegre e satisfeito.
Incapaz de vencer aquele amor, a ele se entregou. Varreu da consciência os
medos e os preconceitos, convencido de que a correspondência da Santa era
prova de que não havia mal.
Porque ela, a cada dia, chegava mais perto, sorridente e bela. Ainda havia
a cortina invisível, separando, mas no futuro ela teria que desaparecer.
Essa certeza enchia-lhe o coração.
(01 de março/2008)
CooJornal no 570
Enéas Athanázio,
jurista e escritor
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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