Escrever sobre AFONSO
HENRIQUES DE LIMA BARRETO (1881-1922), por duas razões fundamentais, é
ambiciosa empreitada. Uma, porque sobre ele já se manifestaram, em
alentados ensaios, os mais representativos nomes da crítica brasileira;
outra, pela dificuldade na escolha do âmbito a abordar tão complexa figura
humana e literária: ficcionista, cronista, crítico, pensador, simples
cidadão. Não sejam esses, porém, os entraves, já que é necessário e justo
estudá-lo sempre e sempre.
O escritor carioca teve
vida breve e marcada pela infelicidade. Perdeu a mãe na meninice, o pai
ensandeceu para sempre, não obteve o pergaminho da Escola Politécnica e
acabou seus dias entregue ao mais desbragado alcoolismo. O que não o
impediu, no entanto, de erguer uma obra monumental.
Duas verdades se
evidenciam em relação a ele. O erro de julgamento de seus contemporâneos,
que nele viam o mulato talentoso mas destabocado, ébrio e sujo, constante
freqüentador das tascas mais imundas, a exibir os seus andrajos para
escândalo dos elegantes da Rua do Ouvidor e em cuja boca punham as mais
pornográficas anedotas e maledicências. A segunda, que ressalta de seus
livros, especialmente do “Diário Íntimo”, é a imagem do intelectual
preocupado com a arte literária, o destino da literatura, a produção de
algo autêntico e novo nas letras brasileiras. O cidadão com os olhos
abertos para a nossa realidade, o jurado independente, o homem de profunda
honestidade, a ponto de, já nos últimos dias de vida, escrever angustiado
a um amigo para que lhe saldasse dívida insignificante.
Lima Barreto teve
enorme dificuldade para editar-se. Os raros editores existentes só
lançavam medalhões, o que impedia o aparecimento de novos. “Recordações do
Escrivão Isaías Caminha” foi impresso em Portugal, para onde fôra levado
pelo grande amigo Antônio Noronha Santos, jornalista fluminense. Suas
“Obras Completas”, hoje compostas de dezessete volumes, tiveram vários
deles publicados em edições póstumas, graças ao paciente trabalho de seu
biógrafo Francisco de Assis Barbosa, autor do extraordinário livro “A Vida
de Lima Barreto.”
O romance limano causou
estardalhaço nos meios intelectuais da época. Quando líamos os franceses,
comíamos pelo menu parisiense, vestíamos pelos figurinos da França,
copiávamos os seus autores e absorvíamos a influência gaulesa a ponto de
considerarmos a França como segunda pátria, surge um mulato
suburbano, escrevendo de um modo desleixado e personalíssimo sobre coisas,
fatos e gentes nacionais. Pior: retratando de modo semicaricatural pessoas
gradas de um famoso jornal, reconhecíveis com facilidade, mesmo sob a capa
de personagens. A reação se manifestou pelo ataque virulento ou pelo
silêncio significativo e cauteloso.
Classificaram-se as
suas obras como romans à clef, destinados apenas à promoção de
sensações imediatistas. Os tempos mostraram, entretanto, que, mesmo com o
desaparecimento dos modelos, as personagens continuam vivas, como acontece
nas verdadeiras obras literárias. E a crítica demonstrou que tais romances
só não constituem pura ficção para quem lhes conhece os modelos.
O contista e o
romancista Lima Barreto já têm sido bem estudados. O seu enquadramento
como um dos mais expressivos pré-modernistas é indiscutível.
Precisa ser lembrado, agora, como crítico literário e de costumes. A
análise que fez, de centenas de livros, é um manancial infinito para quem
deseja desvendar nossa evolução nas letras. A maneira lúcida com que
descreveu os nossos costumes – notadamente no reino da política – é
excelente, não apenas pela verossimilhança, mas também pelo agudo senso de
observação.
Decorridos mais de
oitenta anos de sua morte, Lima Barreto está vivo. Quando acicatado pelo
seu modo de vida, tinha razão ao desabafar: “Que me importa o presente? No
futuro é que está a existência dos verdadeiros homens!” Ele sentia, no
início do século passado, que a crítica o sagraria como o maior e o mais
brasileiro dos nossos romancistas.
____________________________________
Lima Barreto não se
considerava um feminista. Mantinha até uma posição de aparente
anti-feminismo, fato que seu grande biógrafo Francisco de Assis Barbosa
acentuava como uma das sérias contradições do escritor carioca (1). Não
poupava ele as líderes do movimento, dividido em várias facções,
especialmente Deolinda Daltro e Adalberta (Berta) Lutz, a quem criticou em
inúmeros artigos publicados na imprensa. A primeira delas, como lembra
Assis Barbosa, “aparece em ‘Numa e a Ninfa’, no papel de Dona Florinda
Seixas, promovendo passeatas com os seus índios” (2). O tratamento
dispensado à idealista senhora é dos mais irônicos e há momentos em que
ela e os seus índios chegam às raias do ridículo, em especial nas cenas da
aula pública de guarani e nos préstitos fúnebres “votivos e comemorativos”
por ela organizados.
Na verdade, porém,
investindo contra o movimento, Lima Barreto pretendia tomar a defesa da
mulher. “Paradoxalmente, – escreveu Assis Barbosa - Lima Barreto tomaria a
defesa da mulher nessa campanha contra o feminismo” (3). E essa conclusão
se justifica, uma vez que os propósitos do feminismo nacional, com suas
várias correntes, eram tão pequenos que não representavam de fato uma ação
válida em favor da mulher. Ela, afirmava Barreto, merecia muito mais.
As questões feministas
e a situação de inferioridade da mulher brasileira preocuparam, em
inúmeras ocasiões, o espírito de Lima Barreto. Seus artigos sobre tais
temas são muitos e estão incluídos nos volumes “Bagatelas”, “Impressões de
Leitura”, “Vida Urbana” e “Coisas do Reino de Jambon”, sendo este último o
que reúne o maior número deles. Examinando-as, procuremos estabelecer a
real posição do escritor e os aspectos por ele versados.
Lima Barreto, na
agudeza de suas observações, considerava o nosso feminismo da época
absolutamente falso. Era, como dizia, “um feminismo burocrático.” O que
deseja não é “a dignificação da mulher, não é a sua elevação; o que ele
quer são lugares de amanuenses com cujos créditos possa comprar vestidos e
adereços, aliviando nessa parte os orçamentos dos pais, dos maridos e dos
irmãos” (4). Sente o leitor que Lima Barreto parecia nutrir maior simpatia
pelas mulheres estrangeiras, em especial as européias, capazes de lutar
por conquistas realmente significativas na época e marcar com mais nitidez
a sua presença na vida intelectual. A crônica “A Mulher Brasileira” parece
ratificar tal impressão (5). Mas essa posição, no entanto, deveria ser
fruto das irritações momentâneas em face “dos berreiros de Dona Berta e
dos escândalos de Dona Daltro”, que ele julgava incapazes de distinguirem
as autênticas bandeiras do feminismo.
Essas bandeiras, para
ele, haviam sido esquecidas, razão pela qual não perdia oportunidade de
apontar as reivindicações capazes de levar à verdadeira emancipação da
mulher.
Quando se discutia a
admissão das mulheres em certos serviços públicos, anotava Lima Barreto
que frente às leis de então “a mulher é mais ou menos equivalente ao
louco, ao menor, ao interdito. Está sempre debaixo de tutela e proteção de
quem ela carece irremediavelmente. Quando se promulgou a Constituição de
24 de fevereiro, foi com esse espírito que se disse que os cargos públicos
eram acessíveis a todos os cidadãos brasileiros: mas ‘brasileiros’ aí são
homens, conforme o espírito da época.” A ninguém ocorrerá julgar a justeza
dessas palavras, retrato fiel de uma situação que só há pouco tempo
começou a mudar. Concluindo pela inexistência de lei que autorizasse o
acesso de mulheres a esses cargos, proclamava o romancista: “Não me move
nenhum ódio às mulheres, mesmo porque não tenho fome de carne branca; mas
o que quero é que essa coisa de emancipação da mulher se faça claramente,
após um debate livre, e não clandestinamente” (6).
Todas as situações que
punham a mulher em posição inferior, humilhante ou injusta, encontraram
pronta repulsa na obra limana. A prostituição, por exemplo. “A
prostituição da mulher – escreveu – é a expressão de sua maior desgraça, e
a desgraça só merece compaixão quando é total, quando é fatal e nua. Não
gosto dos disfarces, das intrujices, das falsificações e, sobretudo, do
aproveitamento dessa sagrada marca do destino, para ludibriar os outros. A
prostituta só é digna de piedade e respeito dos homens de coração, quando
ela o é em toda a força de seu deplorável estado, quando ela sabe com
resignação e sofrimento arcar declaradamente com a sua tristíssima
condição” (7). É o escritor apiedando-se das pobres, aquelas que o são por
conjunturas sociais e econômicas.
O perdão votado pela
sociedade aos maridos matadores de esposas adúlteras mereceu sempre a
análise arguta e a condenação frontal. Diversos artigos, alguns deles
autênticos ensaios, alinham os argumentos com que atacava semelhante
concepção. “Contra um ignóbil e iníquo estado de espírito dessa ordem, que
tende a se perpetuar entre nós, aviltando a mulher, rebaixando-a ao estado
social da barbaria medieval, da quase escrava, sem vontade, sem direito
aos seus sentimentos profundos, e tão profundos são que ela joga, no
satisfazê-los, a vida; degradando-a à condição de cousa, de animal
doméstico, de propriedade nas mãos dos maridos, com direito de vida e
morte sobre ela; não lhe respeitando a consciência e a liberdade de amar a
quem lhe parecer melhor, quando e onde quiser; - contra tão desgraçada
situação da nossa mulher casada, edificada com a estupidez burguesa e a
superstição religiosa, não se insurgem as borrabotas feministas que há por
aí...” (8).
Muitas concepções do
passado – dizia ele – muito têm a ser aproveitado e contribuíram para a
nossa formação. Mas devem ser encaradas com precaução à luz do pensamento
e das idéias atuais, sob pena de provocarem efeitos ilógicos e absurdos,
inaceitáveis. “A honra, - aponta ele como exemplo, – como todas as
concepções que têm guiado as sociedades passadas, inspira atualmente
muitos crimes ou os desculpa. Essas concepções não devem ser totalmente
varridas de nossa mentalidade... Elas devem perder alguma cousa, em face
de nossas idéias contemporâneas, sobre o mundo e o homem.”Se assim não
for, servirá a honra para justificar o assassinato reiterado das mulheres
pelos maridos. Ora, pergunta ele, “pode alguém hoje, desculpar ou perdoar
o infame o hediondo crime que acabo de narrar, em nome da honra? Uma das
sobrevivências nefastas dessa idéia medieval, aplicada nas relações
sexuais entre o marido e a mulher, é a tácita autorização que a sociedade
dá ao marido de assassinar a esposa, quando adúltera. No Brasil, então, é
fatal sua absolvição, no júri” (9).
Não é possível,
sustenta, “lavar a honra matando.”É um preconceito absurdo, de certa forma
imposto pela sociedade ao marido traído, um meio de fugir à maledicência e
reabilitar-se no meio social. O ser humano é, por natureza, mutável; está
em constante alteração. Não se pode, pois, impedir que a mulher deixe de
amar o marido e passe a amar outro. É um direito. “Então, - indaga Lima, -
quando tudo muda, tudo varia, ela não pode nem deve variar, mudar,
transformar-se, uma vez que parece ser a essência da natureza inteira de
que nós também fazemos parte, a mudança?” (10).
É imperioso reconhecer
o direito de amar e de deixar de amar; de casar, separar e divorciar; com
facilidade, sem formalismos. Já no começo do século passado ele admitia o
divórcio, numa época em que o assunto era tabu, propugnando por sua
adoção, às claras, como era próprio de seu temperamento, numa solução que
lhe parecia a mais indicada para os graves problemas conjugais. “Para
resolvê-los, - escreveu seu inigualável biógrafo Assis Barbosa, - propunha
a adoção do divórcio completo e sumário, podendo ser requerido por um dos
cônjuges e sempre decretado, mesmo que o motivo alegado fosse o amor de um
deles por um terceiro ou terceira” (11).
Nessas posições,
inusitadas para o seu tempo, e que tanto impacto causavam, contribuindo
para sua reputação de irreverente e destabocado, havia, no fundo, o
arraigado sentimento de justiça, sentimento agudo e sincero que
exteriorizava em quaisquer circunstâncias. Esse mesmo sentimento que o
colocava na defesa feminina e o levou tantas vezes à condenação dos
uxoricidas, mesmo contrariando o sentimento popular vigorante naqueles
dias. “Eu não me cansarei nunca de protestar e de acusar esses vagabundos
matadores de mulheres!” – exclamava ele, concluindo: - “A mulher não é
propriedade nossa!” (12).
__________________________________
Notas:
(1)
“A Vida
de Lima Barreto”, José Olympio, Rio, 1952, págs.
279/282.
(2)
Op. cit., pág. 279, nota 29.
(3)
Op. cit., pág. 280.
(4)
“Coisas do Reino de Jambon”, Brasiliense, S. Paulo, 2a.
ed., 1961, págs. 187 e 55; “Bagatelas”, Brasiliense, S. Paulo, 2a.
ed., 1961, págs. 173 e 29.
(5)
“Vida Urbana”, Brasiliense, S. Paulo, 2a. ed., 1961,
pág. 49.
(6)
“Vida Urbana”, cit., pág. 280. Ele se refere à Constituição
republicana de 1891.
(7)
“Impressões de Leitura”, Brasiliense, S. Paulo, 2a. ed.,
1961, pág. 135.
(8)
“Bagatelas”, cit., pág. 173.
(9)
“Bagatelas”, cit., pág. 168.
(10)
“Bagatelas”, cit., pág. 172.
(11)
“A Vida de Lima Barreto”, cit., pág. 280.
(12)
“Vida Urbana”, cit., pág. 139.
(29 de dezembro/2007)
CooJornal no 561