15/12/2007
Ano 11 - Número 559


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


 

VIAGENS LITERÁRIAS

 

Minhas viagens, quase sempre, são sugeridas por leituras, daí porque as chamo de viagens literárias. Uma das últimas, por exemplo, nasceu da leitura de um livrão de Darcy Ribeiro, desses que ninguém parece ler, e que comprei numa banca, já um tanto encardido pelo tempo em que ficou exposto. Mas valeu porque me ensinou mais um pouco do Brasil e me proporcionou momentos inesquecíveis.

Depois de várias horas de vôo, com as sempre complicadas conexões em São Paulo e Brasília, lá estava eu em Belém do Pará, vivendo por alguns dias naquele mundo regido pelas águas e enfrentando, para quebrar a monotonia, violenta tempestade tropical que ameaçou tudo destruir, mas deu forte e passou logo.

Dias depois, singrando águas profundas e barrentas, eu iniciava a subida do rio Gurupi, e aí começava a viagem propriamente dita, com sabor de descoberta e aventura sem igual para olhos sulinos.

Dividindo o Maranhão do Pará e percorrendo cerca de 800 quilômetros até desaguar no Atlântico, o Gurupi é largo, tão largo que a selva das margens parece um paredão verde meio indefinido. Mas não é profundo, pelo menos não tanto como os rios amazônicos em geral. Sofre forte influência das marés, tanto que as vazantes e enchentes provocam variações que vão a nove e até doze metros. Em alguns trechos, na vazante, as águas se escoam com rapidez, deixando à mostra enormes extensões do leito, com exceção da calha ou canal do rio. Numa dessas, nosso barco encalhou e não tivemos outro recurso a não ser esperar a volta das águas salvadoras, com a subida da maré. Descemos e caminhamos pelo fundo seco do rio. Em compensação, quando a maré começou a encher, o rio parecia correr ao contrário, da foz para a cabeceira, impelindo o barco com força e adiantando a viagem. As corredeiras, tormento dos navegadores na vazante, desapareceram submersas e passamos por elas quase sem perceber. Só o espetáculo desses dias já compensou a viagem.

Foi aí que entendi direito o que são igarapés, igapós e furos. Igarapés são estreitos riachos que cortam a mata, trilhas de canoas (lá dizem cascos), dotados de vida própria, isto é, têm nascentes que os alimentam. Os maiores têm nome, como o Igarapé da Verônica, onde estive. Pela manhã, na vazante, entrei nele com água pelas canelas; à tarde, na cheia, a água me atingia o pescoço. Suas águas são negras, embora limpas, em virtude da substância que sai das raízes de certas árvores.

Os furos são canais naturais de ligação entre os rios ou entre estes e lagos. Não têm vida própria, enchendo ou esvaziando conforme a maré. Atuam como uma espécie de ladrões, evitando transbordamentos mais graves. Tanto eles como os igarapés se sujeitam à implacável ditadura das águas de que fala o escritor Dalcídio Jurandir, em célebre romance. O mar represa a baía, esta represa os grandes rios, estes represam os menores que, por sua vez, represam igarapés e enchem furos. E assim vai a vida, nesse sobe-e-desce sem fim, com o velho Atlântico exibindo todo seu poder a distâncias que vão até trezentos quilômetros.

Os igapós são uma espécie de banhados da floresta, em locais cercados pelas águas.Muitos são tão profundos, formados por tal camada de húmus, que é quase impossível aterrá-los. Por mais que sejam atulhados, ficam sempre tremeliques, inseguros para grandes construções. Ao natural, funcionam como criatórios e refúgios de seres aquáticos.

Em alguns pontos do rio, em locais de barrancas elevadas, ocorre o fenômeno da terra caída. O incansável embate das águas solapa o barranco por baixo, provocando tremendos desmoronamentos em que toneladas de terra vão para dentro do rio. Parte vai assorear o leito, parte vai para o mar e uma porção menor cruza o oceano e se aloja nas costas da África, levada pelas correntes marítimas, tudo indicando que no correr dos séculos nossos rios amazônicos desfalcarão o território americano em benefício do africano, alterando a geografia de ambos os continentes. Segundo os depoimentos dos moradores, a terra caída provoca um barulho semelhante ao de forte trovão. Tive ocasião de ver o efeito do fenômeno, embora em outro local, na chamada Praia do Sol, situada na Ilha do Mosqueiro. Fiquei impressionado com a quantidade de terra arrancada pelo rio.

Os sesteios e pernoites eram feitos nas margens do rio e aí estava o deslumbramento maior – a mata. É incrível a variedade da vegetação, com suas mil tonalidades de verde, desde o claro e brilhante até o escuro e quase negro. Árvores de troncos tão grossos como nunca imaginei e que, às vezes, atingem alturas superiores a trinta metros, verdadeiros monumentos vegetais. Árvores folhudas, lisas, grossas e finas; palmeiras, espinheiras, arbustos, touceiras, cipós, flores, frutos e vagens, miúdos e graúdos, capins e ervas, tudo aquilo enlaçado, aglomerado, fechado. O guaraná e o açaí, ambos integrantes da dieta local e em vias de extinção, aqui ainda abundam. Tampando até a luz do sol e dando a impressão do lusco-fusco do anoitecer em pleno dia. E o chão atapetado de folhas, abafando ruídos, protegendo o solo da erosão. A todo momento, a recomendação: “Não toque nas plantas! A maioria da vegetação amazônica ainda não foi estudada e não se conhece seu efeito sobre o homem.”

A sensação de vazio é falsa. A mata é povoada por bichos, aves, répteis e insetos sem conta. Embora quase não se mostrem, seus ruídos estão em toda parte. E nas clareiras se formam aldeias onde moram índios puros ou aculturados, mulatos descendentes dos quilombolas, caboclos e até estrangeiros adaptados. Sem falar nos seres imaginários, espíritos da floresta, personagens de riquíssimo folclore. A mata é repleta de vida.

No retorno, à medida que nos aproximamos da “civilização”, surgem barcos e mais barcos. Grandes e pequenos, altos e baixos, velozes e vagarosos, barulhentos e silenciosos, novos e velhos, de passageiros, cargueiros e mistos. Cada um busca seu destino naquela rede emaranhada de baías, rios, lagos, igarapés e furos. Uma perdida ali é fatal.

Em Belém, tisnado pelo sol, ardido e picado de muriçocas, visito a Ilha do Outeiro e Icoaracy, a cidade do artesanato tapajó. Depois, caminho dentro do túnel formado pelas mangueiras centenárias que sombreiam as ruas de Belém, carregadas de frutas ainda verdes. Sinto saudades antecipadas desta metrópole amazônica, esta terra que é “a mais nova do mundo” e cujo “destino se confunde com o do próprio Brasil”, como enfatizou Euclides da Cunha.



(15 de dezembro/2007)
CooJornal no 559


Enéas Athanázio,
escritor e Promotor da Justiça catarinense (aposentado)
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC