Enéas Athanázio
NO CERRADO E
NO VALE
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Percorro o travessão entre
Montes Claros e Pirapora, norte de Minas Gerais, no rumo do Rio São
Francisco, o Velho Chico de tanta história e beleza. Dia lindo, de céu
azul e límpido, temperatura amena e horizontes abertos. É um chão de terra
vermelha, parecendo a argila de nossos campos, coberto de vegetação
rasteira e poucas árvores retorcidas – o cerrado. Aqui e ali, extensas
plantações de eucaliptos, únicos que vingam – diz o pachorrento motorista.
Paira no ar uma secura que enxuga as narinas e os olhos ardem na claridade
vibrante. Não há rios ou córregos nos primeiros trechos; eles só irão se
mostrar no descambar para o vale, avultando o Rio das Velhas, cujas águas
servem para irrigações que semelham nossas plantações de arroz. Com a
descida, o calor aumenta.
Aqui me encontro no chão literário de Guimarães Rosa e Mário Palmério.
Soltando a imaginação, avisto Riobaldo Tatarana, jagunço-filósofo,
cavalgando um lubuno nestes ínvios vastos e solitários, rememorando
passadas peleias e o inexplicável amor que nutre por Diadorim. Seu perfil,
nítido, se desenha contra o azul do horizonte. E mal ele passa, outra
figura surge pelo carreiro próximo, humilde, atarracada, curvada ao peso
da mala de badulaques que leva nas costas. É Xixi Piriá, o mascate,
vendendo de rancho em rancho, de porta em porta, indiferente ao sol
calcinante e ao vento que requeima. Parece-me que avisto ao longe o Padre
Sommer, valente caçador de onças, a descer impávido pelo coxilhão, em
passo decidido, vermelhaço e suarento. Mas devo estar enganado; ele
desaparece num capão redondo e fechado. As imagens, mesmo fugidias,
mostram a força das letras que criam figuras tão vivas.
Descendo, o Velho Chico se anuncia, o rio da unidade nacional, com seus
2800 quilômetros, banhando vários Estados e servindo a 15 milhões de
viventes. Domina soberano o vale em que está Pirapora, outrora o porto
maior da navegação dos “gaiolas” que levavam gentes, mercadorias e
histórias. Terra das carrancas que a tradição plantava nas proas para
espantar malefícios e maus olhados. A avenida portuária, sombreada de
gameleiras folhudas, é agradável e ampla. No porto, balançando de leve,
grande navio de três andares está ancorado e nele penetramos, convidados
pelo simpático patrão. A visita me conduz, outra vez, às letras. Num
deles, enquanto dormia, Rotílio Manduca foi assassinado a facadas, essa
figura de jagunço “justiceiro” que dominou a região. Bom no tiro e na
faca, atribuíam-lhe duzentas mortes. Mas despia o gibão e envergava ternos
de linho brilhante, exibindo-se em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro,
onde cultivava poderosas amizades Jagunço que venerava os intelectuais,
lia os clássicos e fazia versos. E que morreu para renascer como o temível
Zé Bebelo, seu modelo, nas páginas de “Grande Sertão”.
Mas a voz do motorista pachorrento corta meu enlevo. “Vamos enfrentar um
surubim assado?” – convida ele, indicando o restaurante amplo e aberto,
debruçado sobre o Velho Chico e sombreado por árvores centenárias,
testemunhas verdes de lutas e vidas. Quem poderia resistir?
(27 de outubro/2007)
CooJornal no 552