Enéas Athanázio
DONA MADALENA
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Duas vezes estive com Dona
Madalena. A primeira, muito rápida, numa viagem ao Nordeste, ocasião em
que passei dois dias no Recife. Encontrei-a no Solar de Apipucos, às
voltas com visitantes, e pouco pudemos conversar, embora ela me tratasse
com simpatia, alegre como sempre e revelando excelente memória.
Na segunda vez, acompanhado de minha mulher, passamos parte de uma tarde
juntos. Nessa época ela morava numa casa ao lado do Solar, uma vez que
este já se transformara na sede da Fundação Gilberto Freyre. Bem humorada,
ela a designava como “senzala”, diferenciando-a da “casa-grande”, no caso
o próprio Solar. É claro que se tratava de pura brincadeira, pois ela foi
sempre entusiasta da idéia de criar a Fundação, guardiã dos pertences e da
obra de Gilberto Freyre (1900/1987). Além disso, a casa nada tinha de
senzala e dispunha de todos os requisitos, inclusive uma área muito
agradável, na parte dianteira, em meio ao bosque de frondosas árvores
verdejantes onde se situa o célebre Solar.
Em companhia dela, percorremos mais uma vez o Solar, tanto no térreo como
na parte superior, observando a biblioteca, o acervo das obras
gilbertianas, as condecorações, prêmios e dignidades que recebeu, os
objetos pessoais e a famosa poltrona de couro onde ele escrevia, colocando
uma das pernas sobre o braço, e na qual dei uma sentadinha, só para
experimentar. Nessa ocasião ela nos ofereceu o último livro de Gilberto,
“Ferro e Civilização no Brasil”, com a seguinte dedicatória: “Aos amigos
Jandira e Enéas Athanázio, uma lembrança do Gilberto (último livro escrito
por ele) e da visita à Vivenda de Santo Antônio de Apipucos. (a) Madalena
Freyre, 13 de junho de 1996.”
Recebidos na “senzala”, lá conversamos muito, provamos o célebre conhaque
gilbertiano, bolachas e doces caseiros, típicos da culinária nordestina.
Foi então que ela nos mostrou uma curiosidade: tratava-se de um grosso
álbum de capa preta em cuja face se lia em grandes letras: “WC”. Nele ela
colava recortes de jornais com juízos desfavoráveis a Gilberto e sua obra,
ou que assim lhe parecessem, e com um detalhe bem significativo – todos de
cabeça para baixo! Manuseando o volume, encontrei artigos de figuras bem
conhecidas e que, com certeza, jamais imaginariam tivessem seus escritos
tão melancólico destino. Enfim, um risco de quem se abalança a opinar na
imprensa. Perambulamos, em seguida, pela chácara, da qual ela tudo
conhecia em detalhes, desde as árvores preferidas do marido ou plantadas
por ele, flores e frutos, locais que apreciava ou marcavam algum evento,
caminhos e tudo mais. Numa lojinha da entrada adquirimos lembranças do
local. Foram horas inesquecíveis passadas no reduto do autor de
“Casa-Grande & Senzala”, guiados por tão ilustre e simpática cicerone.
Dona Madalena de Mello Freyre, desportista na juventude, nunca imaginou
ser cortejada por Gilberto Freyre, já então o mais festejado intelectual
do Nordeste e um dos maiores intelectuais brasileiros. Mas soube retribuir
àquele amor e foi uma companheira dedicada, zelosa do renome do marido e
de sua obra científica e literária. Repousa ao lado dele, em silencioso
recanto da chácara, tendo deixado muitas lembranças e saudades. Partiu de
repente, quando planejávamos fazer-lhe nova visita.
(06 de outubro/2007)
CooJornal no 549