Enéas Athanázio
CRIADOR E CRIATURA
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Os leitores de Georges Simenon (1903/1989), já cansados de passar
e repassar os livros publicados em português, podem agora saborear mais uma de
suas obras, em tradução de Paulo Neves. Trata-se de “Memórias de Maigret”
(Nova Fronteira/L&PM Pocket – 2006), uma das mais originais e instigantes
produções do criador do célebre Comissário Jules Maigret, da Polícia
Judiciária Francesa, e personagem central de nada menos que 75 romances e 28
contos e que compõe, com Sherlock Holmes e Hercule Poirot, o maior e mais
célebre trio de investigadores policiais do mundo e cujo autor André Gide
considerava “um grande romancista, o maior e o mais verdadeiro da literatura
francesa contemporânea.” Segundo julgamento unânime, Maigret é o mais humano e
compreensivo dos detetives de ficção, não se limitando apenas a desvendar o
crime e apontar seu autor à Justiça, mas tentando compreender os tortuosos
motivos que levaram um ser humano àquele ato. É verdade que muitas vezes fica
a impressão de que ele adivinha, tão diminutos são os elementos com que conta
na investigação. Mas essa é outra história.
Neste romance tudo é
surpreendente. Embora intitulado como memórias, na verdade é pura ficção, uma
vez que nele a única figura real é o autor. Depois de longos anos de atividade
policial que lhe valeram fama universal, Maigret – o personagem fictício –
decide escrever suas memórias, relembrando os grandes casos em que atuou e sua
vida de policial, desde o início, incluindo-se aí seu contato com Simenon – o
autor – e a profunda amizade que entre eles se firmou. Na história, portanto,
o autor se transforma em personagem de sua própria criatura e, o que é mais
interessante, Simenon é descrito como sendo mais jovem que Maigret, o que
implicaria em imaginar que a criatura nasceu antes do criador. Para completar,
o texto vai fazendo menção a fatos verídicos da vida de Simenon, coincidentes
mais ou menos com as datas reais, o que provoca surpresas muito curiosas. Como
exemplo, basta lembrar que Louise, a mulher de Maigret, pede que ele comunique
a Simenon que ela está tricotando sapatinhos para Jean, primeiro filho de
Simenon e Denyse Ouimet, nascido em 1949.
Outro aspecto curioso é a
análise retrospectiva que Maigret faz de sua própria vida conforme ela é
narrada nas obras de Simenon. É um personagem de ficção analisando a obra de
ficção na qual ele é o personagem. Nesses relances sobre o passado, ele
relembra como o destino o levou à carreira policial, mais ou menos por obra do
acaso e graças a um vizinho que o ajudou nos primeiros passos. E conclui que
estava no lugar certo, no seu lugar, sem ambicionar um destino além de sua
capacidade. A pessoa fora de seu lugar, conclui ele, vai se debatendo pela
vida a fora porque na vida real é raro encontrar um consertador de destinos,
como ocorre na ficção. Por isso, na sua vida modesta, ao lado da discreta
Louise, Jules Maigret sente-se feliz e realizado.
(08 de
setembro/2007) RT, CooJornal no 545
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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