01/09/2007
Ano 11 - Número 544
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
ESTRANHOS NO SÓTÃO
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Num de seus numerosos
romances, Georges Simenon (1903/1989) relata o caso do velho advogado
Hector Loursat que, depois de abandonado pela esposa, entregue à bebida e
sem sucesso com as mulheres, se recolhe ao sótão do casarão onde vivia e
ali passa o tempo lendo seus velhos alfarrábios, comendo coisas indigestas
e ingerindo maciças doses de álcool. Barbado, sebento e quase maltrapilho,
rompe com o mundo. Mas na velha casa de inúmeros cômodos desabitados
ocorre um crime inexplicável, suspeitando-se do envolvimento de sua
própria filha, embora ele nada tivesse percebido. Nessas circunstâncias o
sentimento paterno revive, o sangue volta a ferver como nos bons tempos e
o velho leão forense ruge com força na defesa da filha, pondo à mostra uma
trama complicada e nem sempre muito convincente. O escritor, porém, tinha
grande habilidade, experiência e talento, levando “Estranhos em casa” até
o final, embora não se trate de suas melhores criações.
Essa história me vem à lembrança sempre que passo por uma casa próxima.
Trata-se de construção quadrada, com dois pavimentos, pintada de cor
escura e sem brilho. Situada em grande terreno de esquina, meio escondida
num bosque de velhas árvores, arbustos e trepadeiras, transmite a
impressão de construção sólida e pesada, erigida nos tempos em que não se
fazia muita economia de material. Cercada por muros elevados, nela nunca
se vê luzes acesas ou pessoas em movimento, entrando ou saindo. Passa seus
dias e noites imersa em completo silêncio, embora se saiba que é habitada,
e recebe os costumeiros cuidados de manutenção. Minha imaginação – ou
intuição - se põe a funcionar e figuro que naquele sótão pode estar
recluso o velho Loursat, lendo suas páginas amareladas e se encharcando de
“grogues” e “calvados” (bebidas prediletas do romancista, pelo menos em
suas obras), não fosse o mero detalhe de que ele era parisiense e simples
personagem de ficção, gerado pela prodigiosa criatividade de Simenon.
Não obstante, pensar não paga imposto – como dizem os italianos, - e nada
impede que analise os fatos sem a preocupação de uma lógica cruel. Afinal,
às vezes é preciso exercitar a suspensão momentânea da incredulidade. Não
resta dúvida, concluo depois de muito pensar no assunto, que naquele sótão
obscuro e quieto algo de anormal acontece e nele, como no romance,
estranhos se movimentam. Essa conclusão não brotou do acaso mas de
pequenos fatos encadeados. Vejamos.
Voltando a pé do centro, numa noite escura, ao me deparar com a mancha
familiar do casarão, avistei uma luz baça se filtrando por um vão da
janela do sótão. Estaquei onde estava e me pus a observar o inusitado
fato. Fixando a atenção, confirmei que ele estava iluminado e havia
movimento de pessoas, duas ou três, andando para lá e para cá, cortando o
foco de luz quando suas cabeças passavam diante da lâmpada que devia
pender do teto. Vez por outra, sombras se refletiam numa parte da parede
que se enxergava pelo vão. Por mais que ruminasse meus pensamentos, não
consegui entender o que poderiam fazer naquela sucessão de movimentos
esquisitos e silenciosos. Procurei me aproximar para melhorar a visão e
foi então que senti dois olhos agudos me fuzilando lá de cima. Nesse exato
momento a luz se apagou de repente, recolocando o sótão na costumeira
escuridão.
Prosseguindo no meu caminho, passei rente ao casarão, em passos vagarosos,
aguçando os ouvidos. O silêncio, porém, era tão compacto como a escuridão.
À medida que me afastava, concluí de mim para mim que aquele sótão
guardava impenetrável mistério e que nele estranhos se movimentavam em
inquietante silêncio.
(01 de setembro/2007)
CooJornal no 544
Enéas Athanázio,
escritor e Promotor da Justiça catarinense (aposentado)
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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