Enéas Athanázio
O SENTENCIADO LOURENÇO
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Empenhada na elaboração de uma tese universitária, a Profa. Darcy Piva
Denissoni pede-me subsídios sobre Godofredo Rangel (1884/1951), escritor que
muito estudei e do qual continuo sendo o único biógrafo. Rebuscando nas coisas
que juntei sobre ele e sua obra, deparei com o romance “Vida Ociosa”, seu
livro de estreia, publicado em 1920. Embora autor e livro estejam esquecidos,
como tantos outros, comecei a reler o romance e só consegui parar depois de
vencida a última página. Mesmo sendo uma obra já lida e relida, não a larguei
antes do fim.
A primeira observação dessa releitura é sobre a qualidade
da linguagem. Rangel escrevia bem, em estilo agradável, embora existam
vocábulos caídos em desuso, fato natural num livro escrito há quase um século.
Em seguida o leitor sente a sua capacidade de descrever com precisão e leveza,
de forma que aquela paisagem esmarrida de coxilhas e campos sem fim,
pontilhada de capões de matos e cortada pelo rio vai se desenhando na
imaginação, tornando-o um companheiro de andanças do autor. Os retratos que
traça dos personagens, - o fazendeiro Próspero, sua esposa siá Marciana, o
filho Américo e seu aluno único, o Zé Correto, entre outros, - acabam se
tornando figuras íntimas, como se fossem conhecidos de carne e osso. Mesmo
sendo um romance da vida monótona da roça, a leitura é sempre agradável, tal o
engenho do autor na pintura das cenas. Tinha razão Monteiro Lobato quando
afirmava que “Vida Ociosa” é romance até a raiz dos cabelos.
Creio,
porém, que o momento mais alto e tocante do livro está no capítulo “O
Sentenciado Lourenço”. Apaixonado pela Frederica, mulata faceira e sensual,
Lourenço perdeu a cabeça e matou um homem que se insinuava à sua amada. Foi
condenado a trinta anos de cadeia e cumpriu a pena na cidade, contando os
dias, os meses e os anos para retornar à procura da moça que o levara àquele
desatino. Com o carcereiro, já transformado em amigo, conferia e conferia o
tempo de prisão, descobrindo muitas vezes, desolado, que havia errado nas
contas. Mas um dia, afinal, pagou sua dívida à sociedade dos homens e ganhou a
liberdade. Com os cabelos grisalhos, um tanto balofo pela imobilidade tão
longa, reumático e puxando duma perna, apanhou a trouxa dos teres poucos que
restaram, muniu-se de um bastão e saiu pelo mundo. Rebocando a perna doente,
andou e andou, reencontrando seus campos de origem, vencendo com infinita
paciência as curvinhas da estrada poeirenta, debaixo do sol inclemente.
Indagando daqui e dali, localizou a casa da Frederica, construção modesta
à margem do caminho. Com o coração pulando dentro do peito, chamou do portão:
“Ô de casa!” Não tardou a aparecer uma mulher retaca, gorda, judiada pela
vida. Mas, observando bem aqueles traços, ele identificou sua antiga amada.
“Você é a Frederica? – perguntou. – Eu sou o Lourenço!” Ela não revelou emoção
e respondeu: “Ah! Você é o Lourenço... Entre! Entre!” Ele entrou, ela lhe
ofereceu café, trocaram palavras. No pátio, risos de crianças e sons de
brincadeiras infantis. “Você mora com homem?” – indagou ele, adivinhando a
reposta. “Com o Martinho – assentiu a mulher. – Tenho onze “famílias” com
ele.” A vida lhe sabia amarga, tudo se explicava. Sem saber porque, ainda
perguntou: “O Martinho é bom sujeito?” E ela: “Bebe às vezes. Do mais não
tenho queixa.”
Enfim, a vida é a vida. A custo deslocou a perna
enferma, buscando a porta. Sondou a estrada, assuntando, lonjuras infinitas,
sol escaldante, o impreciso além... Guardou o cachimbo, retomou a trouxa e o
bordão, e afastou-se, trôpego, paciente, rebocando a custo a perna enferma,
como um casco desarvorado, sem rumo, toando ao léu.
Nem uma queixa, nem
uma reclamação, nem um protesto.
(Revista Rio Total nº
537, CooJornal, 14/07/2007)
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
Enéas Athanázio,
escritor e Promotor de Justiça catarinense (aposentado), cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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