16/08/2024
Ano 27
Número 1.379





ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio




O SENTENCIADO LOURENÇO

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Empenhada na elaboração de uma tese universitária, a Profa. Darcy Piva Denissoni pede-me subsídios sobre Godofredo Rangel (1884/1951), escritor que muito estudei e do qual continuo sendo o único biógrafo. Rebuscando nas coisas que juntei sobre ele e sua obra, deparei com o romance “Vida Ociosa”, seu livro de estreia, publicado em 1920. Embora autor e livro estejam esquecidos, como tantos outros, comecei a reler o romance e só consegui parar depois de vencida a última página. Mesmo sendo uma obra já lida e relida, não a larguei antes do fim.

A primeira observação dessa releitura é sobre a qualidade da linguagem. Rangel escrevia bem, em estilo agradável, embora existam vocábulos caídos em desuso, fato natural num livro escrito há quase um século. Em seguida o leitor sente a sua capacidade de descrever com precisão e leveza, de forma que aquela paisagem esmarrida de coxilhas e campos sem fim, pontilhada de capões de matos e cortada pelo rio vai se desenhando na imaginação, tornando-o um companheiro de andanças do autor. Os retratos que traça dos personagens, - o fazendeiro Próspero, sua esposa siá Marciana, o filho Américo e seu aluno único, o Zé Correto, entre outros, - acabam se tornando figuras íntimas, como se fossem conhecidos de carne e osso. Mesmo sendo um romance da vida monótona da roça, a leitura é sempre agradável, tal o engenho do autor na pintura das cenas. Tinha razão Monteiro Lobato quando afirmava que “Vida Ociosa” é romance até a raiz dos cabelos.

Creio, porém, que o momento mais alto e tocante do livro está no capítulo “O Sentenciado Lourenço”. Apaixonado pela Frederica, mulata faceira e sensual, Lourenço perdeu a cabeça e matou um homem que se insinuava à sua amada. Foi condenado a trinta anos de cadeia e cumpriu a pena na cidade, contando os dias, os meses e os anos para retornar à procura da moça que o levara àquele desatino. Com o carcereiro, já transformado em amigo, conferia e conferia o tempo de prisão, descobrindo muitas vezes, desolado, que havia errado nas contas. Mas um dia, afinal, pagou sua dívida à sociedade dos homens e ganhou a liberdade. Com os cabelos grisalhos, um tanto balofo pela imobilidade tão longa, reumático e puxando duma perna, apanhou a trouxa dos teres poucos que restaram, muniu-se de um bastão e saiu pelo mundo. Rebocando a perna doente, andou e andou, reencontrando seus campos de origem, vencendo com infinita paciência as curvinhas da estrada poeirenta, debaixo do sol inclemente.

Indagando daqui e dali, localizou a casa da Frederica, construção modesta à margem do caminho. Com o coração pulando dentro do peito, chamou do portão: “Ô de casa!” Não tardou a aparecer uma mulher retaca, gorda, judiada pela vida. Mas, observando bem aqueles traços, ele identificou sua antiga amada. “Você é a Frederica? – perguntou. – Eu sou o Lourenço!” Ela não revelou emoção e respondeu: “Ah! Você é o Lourenço... Entre! Entre!” Ele entrou, ela lhe ofereceu café, trocaram palavras. No pátio, risos de crianças e sons de brincadeiras infantis. “Você mora com homem?” – indagou ele, adivinhando a reposta. “Com o Martinho – assentiu a mulher. – Tenho onze “famílias” com ele.” A vida lhe sabia amarga, tudo se explicava. Sem saber porque, ainda perguntou: “O Martinho é bom sujeito?” E ela: “Bebe às vezes. Do mais não tenho queixa.”

Enfim, a vida é a vida. A custo deslocou a perna enferma, buscando a porta. Sondou a estrada, assuntando, lonjuras infinitas, sol escaldante, o impreciso além... Guardou o cachimbo, retomou a trouxa e o bordão, e afastou-se, trôpego, paciente, rebocando a custo a perna enferma, como um casco desarvorado, sem rumo, toando ao léu.

Nem uma queixa, nem uma reclamação, nem um protesto.


(Revista Rio Total nº 537, CooJornal, 14/07/2007)


Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email e.atha@terra.com.br  



Enéas Athanázio,
escritor e Promotor de Justiça catarinense (aposentado), cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC



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