21/04/2007
Ano 10 - Número 525
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
PASSEIO PELA POESIA DE GABRIEL NASCENTE
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Desde que o recebi, não consigo desgarrar de “Inventário Poético” (Editora
Alternativa – Goiânia – 2005), de Gabriel Nascente, onde o poeta reuniu
uma criteriosa seleção dos poemas que produziu ao longo de quarenta anos.
Embora não seja livro para ler de uma assentada, mesmo porque contém 500
páginas, em tamanho grande, estou com ele sempre à mão, lendo um poema
aqui, outro acolá, voltando para saborear mais uma vez este trecho,
apreender melhor aquele outro e assim por diante, num passeio fascinante
que não sei onde terminará. O livro é dividido em cadernos que reúnem
poemas representativos de uma época, um tema ou uma fase de vida do
escritor. Lançando os olhos à sua súmula biográfica, é fácil perceber que
muitos poemas nasceram de eventos ou circunstâncias da existência e que,
filtrados pela sensibilidade e pela criatividade do autor, acabaram
vertidos em belas poesias. Assim, v. g., os cantos em homenagem à terra
natal, as visitas ao Recife e a Buenos Aires, para recordar uns poucos
casos. Também as impressões de leituras, em especial dos poetas
prediletos, se refletem em sua poética, marcando de forma indelével os
grandes momentos da vida intelectual (Baudelaire, Neruda, Pessoa,
Drummond, Bandeira...). É uma poesia que brota da própria vida - a mestra
maior - de maneira espontânea, e que as apuradas antenas do poeta captam
de pronto. Não é mera construção engendrada em gabinete, embora o poeta
seja senhor da arte e seus recursos, manuseando-os com inteira segurança.
Ele próprio o declara: “Não faço poesia de costas para a vida./ Faço-a de
carne, tumulto, execrações!... Não faço poesias só com palavras” (p. 373).
Essas características – penso eu – justificam o geral agrado de sua obra
entre os leitores e os críticos, como demonstra a rica fortuna crítica do
autor.
Ainda que se enleve com as coisas simples da vida, o poeta se angustia
diante da situação dos desafortunados e exclama: “Existe/ gosto de fome/
na boca/ dos que pedem pão” (p. 45). E um pouco adiante: “E a voz da
criança/ se perdeu na rua:/ pelo pão,/ pelo leite.” (p. 49). Ainda outro,
em suas “indagações doídas”: “Pai, o quanto vale viver?/ - Viver, meu
filho,/ tem sabor de azar/ quando no tempo/ a boca não come.”
(p. 65). O
gari, humilde e desprezado, no afã inútil de limpar o mundo (p. 115), a
fome dos pedreiros (p. 155), o carroceiro
(p. 273), os trapos feiosos
arrastados da sujeira da favela (p. 45), a lavadeira que se suicidou
(p.
70), o marceneiro (p. 114), a multidão sem alma dos anônimos... (p. 73).
Outros tantos, espalhados pelo livro, poderiam ser lembrados.
Seu sentimento de mundo, porém, se inquieta também com temas recorrentes
nos dias de hoje, como a paz e a liberdade. “Me acode, Zé, me acode!/ O
mundo ficou doido./ A vida é muito cítrica./ Ninguém na terra quer vestir/
uma farda de paz. Ninguém.” (Mal do Século - p. 70). Mais adiante, em
Toada do Desespero, um poema tocante, a constatação terrível mas
verdadeira: “O homem está só,/ o medo cresce.” (p. 81). Num desabafo, como
quem brada em plena rua: “Amigos, se me permitem,/ eu quero a paz e a
palavra... Meu coração é uma praça:/ liberdade para todos.” (p. 88).
Registrando a lúgubre constatação, escreve: “A paz, meu nobre amigo,/ é
uma palavra inócua.” (p. 90).
Diante das exclusões e preconceitos em tantos lugares, impedindo a livre
movimentação das pessoas, o poeta reflete sobre esse paradoxo: “A terra
não é negra/ nem azul./ A terra é da cor de todos... A terra é submissa:/
leito para todos./ Quem morre/ não precisa passaporte,/ - a terra aceita”
(p. 102).
A condição humana nestes dias massificados também o aflige: “Sei que
traumatizo/ a confissão,/ mas o homem do meu tempo/ é uma besta de robô,/
inventa cartórios,/ armas decentes, gravatas,/ leis, calcinhas,
duplicatas... É de verdade um símio/ computadorizado.” (p. 106). E a
melancólica constatação: “A máquina destruiu/o coração dos homens.” (p.
70).
Mas apesar da “poesia ter sido metralhada” (p. 163), nem tudo está
perdido, a esperança crepita na alma do poeta: “Resiste um povo/ uma
tropa...” (p. 106), explode a greve dos pedreiros, eles estão na rua, são
taciturnos “e a nação é um estopim/ de guerra” (p. 155). E, se não
bastasse, restaria a sedição do poeta, de todos os poetas, tão temida
pelos autoritários de todos os tempos e quadrantes. “Minha voz explodiu/
nas praças./ A sedição nasceu comigo/ nesta flor de pólvoras.../ - grito
que arma esperança!” (p. 299).
Brotam as inquietações pessoais, lembranças, sonhos, amores, miragens,
desejos, ilusões. No recado a Bandeira está uma delas: “Sabe, meu velho
Bandeira,/ eu também já ando desacorçoado desta vida/ e queria tanto morar
contigo aí nas brisas do Nordeste,/ conhecer Pasárgada, ir embora daqui/
que esse mundo não dá sossego não.” (p. 89). É o desejo deambulatório de
todo poeta, a ilusão benéfica de que lá será diferente. O rio que habita o
passado de cada menino e onde “meus olhos viajam/ na flor das águas.”
(p.
142), ainda que “Já sem fôlego/ o rio é pranto./ Já sem peixe/ o rio é
morte.” (p. 174). A doçura das viagens de trem: “A locomotiva/ gritava
palavras/gritando/ - uí, uíí, uííí.../ e no fundo/ do meu cérebro/ uma
viagem/ onírica...” (p. 220). As ternas lembranças da mãe viúva e sua
herança de austera coragem (pp. 294/295); o amor quente que rói o coração
(p. 321); o sonho que jamais poderá ser perdido porque “seria aviltante”
(p. 469); as árvores “que eram minhas santas companheiras” e agora não
passam de caveiras (p. 499); a cidade natal antes e depois do pesadelo do
acidente radioativo (pp. 204/207); o desejo latente do retorno à juventude
(p. 292), os dias na fazenda, o circo, o palhaço, os amigos, os avós, o
Natal... Um mundo de evocações, idéias, sugestões.
Não obstante, apesar de tudo, palpita o amor à Pátria. “Gosto de dizer o
teu nome, Pátria/ mesmo sabendo que tu vives atraiçoada... Mesmo sabendo
que roubaram nosso prato de comida... Gosto de ti, ó Pátria/ mesmo sabendo
que os ratos de gravata armam ciladas... Ó Pátria, sensual e bêbada, quero
morrer/ no cheiro de tuas florestas” (p. 182).
Observador arguto, fino analista, homem sensível, Gabriel Nascente é um
filósofo sem compêndios ou tratados. Ele se exprime em versos que
instigam, afligem, enternecem, estimulam o pensamento. Tem “a marca de uma
personalidade poética intensamente mergulhada no drama do mundo
contemporâneo” – para repetir as justas palavras de Drummond.
Vão longas estas notas, meras impressões preliminares de leitura sem
intenções críticas ou analíticas. Encerro por aqui, ainda que pesaroso por
deixar este exercício tão agradável quanto despretensioso. (2006).
(21 de abril/2007)
CooJornal no 525
Enéas Athanázio,
escritor e Promotor da Justiça catarinense (aposentado)
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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