Graças à gentileza da
amiga Adelaide Petters Lessa, professora, poeta e ensaísta paulistana,
pude ler e avaliar o livro “Contos Amazônicos”, de Inglês de Souza
(Martins Fontes – S. Paulo – 2004), precedido de excelente
ensaio-apresentação de autoria de Sylvia Perlingeiro Paixão, também
organizadora da obra, bibliografia e glossário. O volume reúne nove
contos, longos em sua maioria, publicados pela primeira vez em 1893 e
ambientados em plena selva amazônica, região de que o autor era originário
e conhecia como poucos. Como escreve a apresentadora, “os contos são como
capítulos seriados de um romance que situa e constrói a região amazônica
aos olhos do leitor e em que o exótico é aos poucos transfigurado,
transformando-se na coisa como ela é.” O ambiente, o clima, a linguagem,
os usos e costumes regionais, os valores morais, a solidão, as distâncias
e, como background, a imensidão de florestas e rios que caracteriza
aquele mundo regido pela ditadura das águas, onde o silêncio palpita de
vida, humana e animal, não faltando os entes imaginários que o povoam.
Região onde a pequenez humana se acentua em todas as situações. Mundo
nunca assaz conhecido e desvendado em que o contista mergulha por inteiro
na tentativa de colocá-lo nas letras que sabe manejar com o raro talento
de um de nossos grandes contistas do passado.
Nascido em Óbidos,
Estado do Pará, Herculano Marcos Inglês de Souza (1853/1918) teve uma
existência repleta das mais variadas experiências, notabilizando-se desde
cedo como ficcionista invulgar. Estudou no Pará, no Maranhão e no Rio de
Janeiro, bacharelando-se em Direito pelas “Arcadas”, em São Paulo (1876).
Exerce a advocacia e o jornalismo na Paulicéia, período em que publica os
romances “O Cacaulista” e “História de um pescador”, iniciando-se na
ficção pela forma mais longa - a romanesca. Depois de ter sido governador
de Sergipe e do Espírito Santo, fixou-se no Rio de Janeiro, onde foi um
dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, da qual foi o primeiro
tesoureiro. Lecionando na área jurídica e advogando, foi banqueiro e
deputado federal. Publica nesse período “O Coronel Sangrado” e “O
Missionário”, ambos romances, considerando-se este último “um dos mais
típicos do naturalismo brasileiro”, além de sua melhor obra ficcional. Em
1893 vêm a lume estes “Contos Amazônicos”, trabalhos jurídicos e escritos
inéditos, revelando um incansável batalhador das letras. Seu
regionalismo naturalista é saudado pela boa crítica da época, dele
dizendo a referida Sylvia Perlingeiro Paixão, com justeza, que “revela um
grande espírito de observação, amor à natureza e uma especial fidelidade
às cenas regionais” (p. X). Faleceu em 6 de setembro de 1918, aos 65 anos,
ingressando em longo período de esquecimento – o chamado “limbo literário”
– até o aparecimento desta nova edição de seus contos, devolvendo-o às
livrarias e às mãos dos leitores. Humberto de Campos, em crônica ambígua,
misto de elogio e crítica, acaba por proclamar que “seria injustiça, no
entanto, negar-lhe a vocação literária, o mérito do trabalho, embora
irregular e dispersivo, o destaque, enfim, que lhe cabe entre os melhores
escritores da geração” (1). Lúcia Miguel Pereira, em texto mais analítico,
dedica-lhe palavras consagradoras, como, a meu ver, merece (2). Outros
críticos de nomeada avaliaram sua obra, como Agripino Grieco, um dos mais
rigorosos exegetas de nossas letras, Olívio Montenegro, grande intérprete
de Lima Barreto (3), Josué Montello e José Veríssimo, para mencionar
apenas alguns. Sobreleva em sua obra o romance “O Missionário”, o mais
importante, onde o naturalismo brasileiro se revela em plenitude,
tornando-o um dos mais típicos exemplos. Isso, porém, em nada diminui
“Contos Amazônicos”, conjunto de histórias primorosas e que retratam a
misteriosa região com incrível realismo, sem os exageros e fantasias que
costumam reinar em tantas obras nela ambientadas.
Estes contos, todos
eles, têm desfecho trágico, embora a tragédia esteja mais nos fatos que
nas palavras. O contista não carrega nas tintas, como o pintor que lança
mão de tons suaves para mostrar a crueza da cena. O efeito alcançado por
essa técnica é eficaz e entrega ao leitor toda a realidade tal como de
fato acontece. Não cai na tentação de “cantar as belezas naturais que eram
motivo e tema literários, usadas de forma abusiva no sentido de criar uma
paisagem exótica cheia de promessas quanto a um futuro idealizado” – como
escreve a prefaciadora (p. XII). É, enfim, um estilo de construção de
histórias muito pessoal e marcante, distintivo da pena do escritor do
Pará.
O primeiro conto,
abrindo as portas para o universo amazônico, é “Voluntário.” Relata os
padecimento do rapagão Pedro, nos seus dezenove anos, arrimo único da
velha mãe Rosa, tapuia que já não podia cuidar da ínfima roça de
subsistência. Pescador hábil, o rapaz conseguia os peixes que vendia no
porto de Alenquer e assim remediava a situação. Mas vai que um dia, ainda
que sendo arrimo de família, surge a notícia de que Pedro seria recrutado
para combater nas hostes da Guerra do Paraguai. Urdia nos bastidores a
eterna politicalha e a despeito do hábeas corpus impetrado pelo
narrador-advogado, o rapaz foi retirado às escondidas da jurisdição do
juiz e conduzido para longe, onde foi embarcado no vapor que o levou à
Capital. Revelou-se a Justiça, como em tantas ocasiões, mera ficção. O
conto me trouxe à recordação casos que ouvi nos Campos Gerais de minha
terra a respeito do “reculutamento a laço de voluntários”, fatos que
aterrorizavam os pobres moços de então. Também Monteiro Lobato, ao
retratar o Jeca Tatu, anota o temor que ele votava ao “reculutamento.” O
conto faz interessantes observações sobre a vida ribeirinha e o
temperamento conformista dos sertanejos.
Em “A Feiticeira”,
logo a seguir, surge o caso do delegado Antônio de Sousa, que não
acreditava nessas toleimas e resolveu tirar a limpo as histórias que
corriam a respeito de temida feiticeira. Perguntando-lhe se tinha pacto
com o diabo, “a tapuia não respondeu, mas pôs-se a olhar para ele com
aqueles olhos sem luz, que intimidam aos mais corajosos pescadores da
beira do rio” (p. 30). Apesar de sua valentia, o rapaz não se deu bem e
teve que fugir, espavorido, bradando por socorro, mostrando que as
crendices populares nem sempre são tão incríveis assim. Neste conto o
autor aborda a vastíssima rede de histórias do gênero que circulam na
região, transmitindo-se de boca em boca, estimuladas pela vastidão da
selva e o domínio das águas, caminhos naturais que permitem a comunhão
vagarosa entre as vilas, os povoados e as pessoas.
Segue-se o caso da
belíssima Maria, a mais gentil rapariga de Vila Bela, e seu terrível
desengano amoroso. “Era uma donzela de dezenove anos, alta e robusta, de
tez morena, de olhos negros, negros, meu Deus!, de cabelos azulados como a
asa de anum!” (p. 41). Vila Bela, antes povoação do que vila, compunha-se
de três ruas semidesertas que se estendiam sinuosas e tristes à beira do
rio. Não obstante, lá se inoculou a política, infernizando viventes que
dispunham do paraíso de paz e silêncio. “A maldita política dividiu a
população, azedou os ânimos, avivou a intriga e tornou insuportável a vida
nos lugarejos da beira rio” (p. 43). Lá, como cá, o partidarismo cego tudo
envenenava, como, aliás, em lugares onde vivi, atestando, mais uma vez,
que o Brasil é o mesmo, aqui ou além. Induzida pelas crendices, ministra
ao amado uma meizinha que lhe despertaria o amor e, no entanto,
provoca-lhe estertorosa morte: o venenoso taiá. A formosa e infeliz
Mariquinha desapareceu da vila. “Hoje, dos seus infaustos amores, só resta
como lembrança em Vila Bela o nome de Amor de Maria dado pelo povo
ao terrível taiá que matou o filho do capitão Amâncio” (p. 57). Mais um
exemplo de como nomes generalizados pela boca do povo encontram tantas
vezes seus fundamentos em histórias ou lendas.
“Acauã”, por sua vez,
retrata a desgraça provocada pela agourenta ave e seu lúgubre grito
anunciador de trágicos malefícios. Malefícios que se manifestam nas
terríveis convulsões sofridas pela infeliz Aninha que “se retorcia como se
fora de borracha” (p 70). Cerrando os olhos, contorcendo-se em doloroso
rictus, a moça exclamava: “Acauã! Acauã!” Por cima do telhado, uma voz
respondeu à de Aninha: Acauã! Acauã! Um silêncio tumular reinou entre os
assistentes. Todos compreendiam a horrível desgraça. Era o Acauã!” (p.
71). A maldição da ave agourenta, assim batizada pela vox populi,
se exercia mais uma vez de forma inexorável, justificando o temor dos
ribeirinhos à sua presença e ao seu diabólico grito.
Em “O Donativo do
Capitão Silvestre” retrata-se a reação nativa contra o mandonismo inglês
na região diante da atitude prepotente e arrogante de Christie,
“despertando o pundonor nacional” (p. 73). Intrincadas questões
diplomáticas acirram o nativismo caboclo e os nacionais se preparam para a
luta. “Vocês hão de ver que os ingleses não chegam por cá. Só os
capoeiras de minha terra dão cabo deles” – gabava-se um morador (p.
79). Entre fortificações, preparativos, subvenções, contribuições e brios
feridos, explode a surpreendente atitude do capitão Silvestre, com
indignação concentrada: “Cem bacamartes de ouro...e quinhentos cartuchos
embalados para guerrear esse governo que barateia os brios da nação!” (p.
88). Creio que é dos raros contos onde se vislumbra alguma dose de humor.
“O Gado do Valha-me
Deus” ingressa no terreno surreal tão propício àqueles ínvios eivados de
mistérios. Para além da grande serra do Valha-me Deus muito gado reiúno
povoava imensos campos, indócil e insubmisso à domesticação,
furtando-se à humana aproximação. Depois de marchas intermináveis,
andanças estafantes, buscas e campeiragens sem fim, é, afinal, morta a
vaca preta, mãe do rebanho. E o que se segue é o choro convulso de um
bezerro que metia dó. “Aquilo estava bem claro que a vaca preta era a mãe
do rebanho, e, como nós a tínhamos assassinado, havíamos de agüentar toda
aquela choradeira” (p. 98). Rebanho de gado misterioso, desafiador e
inacessível, provocando risos de pássaros pelo vexame dos vaqueiros, lá na
língua deles. “Nada de vermos coisa que parecesse com boi nem vaca, e só
campo e céu, céu e campo, e de vez em quando bandos e bandos de marrecas,
colheireiras, nambus, mangaris, garças, tuiuiús, guarás, carões, gaivotas,
maçaricos e arapapás que levantavam o vôo debaixo das patas dos cavalos,
soltando gritos agudos, verdadeiras gargalhadas por se estarem rindo de
nosso vexame lá na língua deles” (p. 100). Moídos, sedentos e famintos,
retornam à fazenda, concluindo cabisbaixos e vencidos, que “nunca
encontrei gado que me desse tanta canseira” – como desabafou um peão (p.
101). Mais um mistério dos tantos que rondam a selvática Amazônia, aliás,
nem apenas composta de selva, mas também de campos e campinas, como
advertia o conhecedor do assunto, Prof. Sílvio Meira.
O “Baile do Judeu”,
expressa o sentimento anti-semita então dominante, não sufragado pelo
contista, mas decorrente da onda nativista que varria o sertão amazônico.
Nesse baile, o judeu “atreveu-se a convidar a gente da terra, a modo de
escárnio pela verdadeira religião de Deus Crucificado” (p. 103).
Imaginava-se que ninguém compareceria à festa do “homem que havia pregado
as bentas mãos e os pés de Jesus Cristo” (idem), mas ao cair da noite a
casa ribeirinha regurgitava. Lá estavam, “em plena judiaria”, as figuras
gradas do lugar, e a orquestra em plena ação. Muito se dançou, comeu e
bebeu, o contentamento era geral. “Nunca se vira baile igual!” –
proclamavam. Pelas onze horas, adentra o salão um baixote desconhecido, de
casacão preto e chapéu desabado, tirando Mariquinha para dançar. O homem,
para geral surpresa, dançava sem parar, ensaiando passos e posições
incríveis, deixando sem fôlego a companheira. Uma dança desenfreada,
frenética, que a todos espantava, às vezes artística, lasciva ou
engraçada. Seguiu-se uma valsa vertiginosa, verdadeiro turbilhão de passos
cadenciados, mal se distinguindo os vultos que rodopiavam sem trégua, como
se flutuassem no ar em êxtase amoroso. Foi então que o audaz dançarino
derrubou o chapéu e se notou que tinha a cabeça furada. Concluiu-se que
não fosse homem, mas um boto, um imenso boto, ou o demônio por ele, “que
afetava, como por maior escárnio, uma vaga semelhança com o Lulu Valente”
(p. 110). Ainda rodando no valsar aloprado, sai pela porta, rodopiando
como redemoinho ao vento, e “chegando à ribanceira do rio, atirou-se lá de
cima com a moça imprudente, e com ela se atufou nas águas. Desde essa vez
ninguém mais quis voltar aos bailes do judeu” (idem). O contista, com
extrema habilidade, ficcionalizou uma das tantas histórias que cercam o
boto e suas ações, irresistível sedutor das donzelas cujos filhos não têm
pais conhecidos. Belíssimo conto.
“A Quadrilha de Jacó
Patacho”, um assassino “que a miúdo cometia casos estupendos (que) se
contavam de um horror indizível: incêndios de casas, depois de pregadas as
portas e janelas para que não escapassem à morte os moradores” (p. 112).
Vítimas preferenciais eram os portugueses, objeto maior do ódio nativista
recalcado contra os que consideravam exploradores do povo humilde. No
caso, a morada do bom português se transformou em escombros, assediada
pelos urubus e com sinistro aspecto de carnificina recente. O chão, orlado
de cadáveres insepultos, revelava a violência da agressão e do saque. As
mulheres, levadas como troféus, se viram destinadas aos homens da
quadrilha e uma delas, já idosa, lavadeira em Santarém, “contava,
estremecendo de horror, os cruéis tormentos que sofrera em sua atribulada
existência” (p. 127). Episódio de tempos brabos, violência e impiedade,
atingindo tantas vezes os inocentes. Páginas duras que pontilham a
dolorosa formação dos povos.
O derradeiro conto,
mais tendente a uma novela, é “O Rebelde” (cerca de setenta páginas,
divididas em tópicos) é expressivo retrato da presença temida da
“cabanagem”, movimento rebelde que se infiltrou na Amazônia, provindo de
Pernambuco, organizado em verdadeiros piquetes de revoltosos que, em certa
fase, virtualmente dominaram a região. Paulo da Rocha, pernambucano
precocemente envelhecido, mostrava-se amigo de todos, não obstante
cultivasse ideais cabanos absorvidos em longo passado de lutas. A fértil
imaginação amazonense “fizera dele um personagem revolucionário,
misterioso, sinistro e perigoso, de cuja alma já estaria de posse o
Inimigo, ainda em vida do corpo” (p. 130). Não obstante, após marchas e
contra-marchas, ele se revela um defensor corajoso dos brasileiros
e maçons perseguidos sem trégua pelos cabanos que então
dominavam ambas as margens do Amazonas. Em ingentes esforços e hábil luta
diplomática, às vezes desafia a própria morte na defesa do marinheiro,
pai do narrador. Entre fugas pelos ínvios, camuflagens sem fim, tropeços e
perigos embrenham-se pelo sertão em busca da salvação. Como resultado de
tanta luta, acabou encarcerado e envelhecido antes do tempo. Depois de um
ano de esforços inauditos, o narrador-personagem consegue livrá-lo da
masmorra, provando que fôra decidido defensor dos moradores. O velho
retomou as funções de sineiro da igrejinha, hospedado em casa do narrador,
mas não viveu tantos anos, expirando nos seus braços. Contrariando seus
arraigados ideais cabanos, lutou com bravura pela amizade dedicada aos
outros, e por isso pagou caro. Personagem dividido entre o que julgava
justo para os seus, explorados e excluídos, mas que ouviu a doce voz do
coração.As difíceis encruzilhadas que a vida põe diante de tantos
viventes.
São resumos toscos,
mesmo para não prejudicar eventuais leitores. Falta-lhes a indescritível
exuberância dos emaranhados tons de vedes, os estranhos sons que ousam
violentar o silêncio, a movimentação dos cascos que singram as
águas, a variegada vida de animais, peixes e vegetais que se cruzam e
entrecruzam, o panorama, enfim, que o contista soube imprimir aos relatos.
Falta-lhes o infindável rol de nomes nativos: plantas, animais, peixes,
aves, répteis, insetos. Para nós. os de hoje, restaria a visão do alto,
contemplando lá embaixo o inextrincável mundo verde onde mata e rio se
confundem e interpenetram.
Perpassam todo o
livro, ora mais próximos, ora mais remotos, os ecos da cabanagem.
Pela fala de um personagem é possível avaliar o ódio alimentador desse
movimento, retratado na “miséria originária das populações inferiores, na
escravidão dos índios, na crueldade dos brancos, nos inqualificáveis
abusos que esmagam o pobre tapuio, a longa paciência destes...” (p.
XVI). Como adverte a apresentadora, tantas vezes citada, o autor
“privilegia mais as lutas que afligem o homem moralmente: a opressão do
mais forte sobre o mais fraco...” (p. XIV). Bem analisadas as coisas,
foram as mesmas causas do nosso “Contestado”; lá e cá, as eternas
repetições. Não é por acaso que Paulo Pinheiro Machado, expert
neste assunto, acentua que se tratava de uma sublevação dos pobres contra
os ricos, “associada por amplas camadas da população pobre do país a uma
defesa paternal dos pobres contra os poderosos” (4). Iniciando-se em
Pernambuco e Alagoas, a Guerra dos Cabanos, foi um movimento social que
reuniu agregados, libertos e pequenos sitiantes numa luta de guerrilhas
que depois evoluiu para o Maranhão, o Pará e o Amazonas, agitando por
cerca de quatro anos a vida nos sertões. (Existem certas diferenças entre
cabanagem e cabanada, conforme as regiões conflagradas, mas
foram fenômenos idênticos) (5).
Ainda no que respeita
à fortuna crítica do contista, lembre-se que Manuel Bandeira o
contempla ao tratar da ficção realista, incluindo-o entre os
sertanistas, como Coelho Neto, Afrânio Peixoto, João Simões Lopes
Neto, Waldomiro Silveira, Godofredo Rangel e Monteiro Lobato e tantos
outros, autores de obras totalmente diferentes, incidindo, assim, num
exagerado simplismo. Entre Rangel e Inglês, por exemplo, vai um mundo.
Quanto a Lobato, ele comete pequena injustiça ao afirmar que o contista
jamais superou “Urupês”, seu livro de estréia, sendo hoje pacífico que sua
obra-prima é “Cidades Mortas” (6).
Embora algo
fracionária, creio que a melhor abordagem, dentre as modernas, é a de
Wilson Martins. “Inglês de Souza – escreve o crítico, – escritor do Norte,
contribuía para a ficção realista com “O Cacaulista”...Ora, é precisamente
o coeficiente social, no sentido próprio do adjetivo, que Inglês de Souza
introduz no romance brasileiro. Também em 1876, com “O Cacaulista.” (...)
Se ele não é o primeiro “realista” ou “naturalista” de nossa literatura, é
certo que, com “O Cacaulista”, o romance brasileiro deu o salto
qualitativo do herói individual e do “caso” psicológico para o personagem
social e a caracterização de uma sociedade; além disso, a “tese” transpõe
os limites abstratos dos princípios para o exemplo tirado da vida (...) “O
Cacaulista” já é o primeiro volume do “ciclo do cacau”, já se passa “nas
terras do sem fim” por excelência da planície amazônica; e isso é muito
(...) “O Cacaulista” já é o romance econômico, social e político da
conquista sobre a terra do cacau...”(7). Diante disso, resta evidente que
Inglês de Souza foi um inovador e um pioneiro, glórias que
pode, com justiça, ostentar.
Não quero encerrar
sem breves observações sobre a linguagem regional. Embora dono e senhor
dela, o contista usa com moderação as expressões locais, evitando
transformar o texto em inextrincável cipoal. Algumas palavras, dentre
tantas, guardam semelhança com as de meus Campos Gerais; outras diferem
por completo. Assim, v. g., carapetão tem idêntico sentido
(mentira), cavaco (aqui é conversa, lá é irritação, aborrecimento), embira
(tem o mesmo sentido de cipó), esgadelhado (descabelado, tanto lá como
cá), cuiambuca (aqui é cumbuca ou cambuca), mezinha ou meizinha, moquém,
sezão, terçado, tucum e brasido têm o mesmo significado. Já aningal, caba,
chimpar, madeiro (no sentido de chifre), maqueira, pacoval (no sentido de
bananal), sairé, tananá, vagado (no sentido de desmaio) e ventrecha (posta
de peixe) são desconhecidas aqui no Sul. Mais uma mostra da incrível
riqueza de nossa língua e da imensa criatividade com que o povo vai
elaborando novos vocábulos no correr dos tempos.
Registro, por fim, o
lançamento de nova edição do romance “Belém do Grão Pará”, de Dalcídio
Jurandir, o quarto do chamado “ciclo extremo norte”, e que andava ausente
das livrarias. Não me furto a uma rápida comparação com Inglês de Souza:
ambos têm visível preocupação social, embora neste último ela não assuma
características ideológicas. Concluo, lembrando recente ensaio de autoria
do jornalista Washington Novaes denominado “A Amazônia de espasmo em
espasmo”, um chamado à consciência dos brasileiros sobre o que lá acontece
– e que vi em pessoa nas várias viagens pela região, – onde se sucedem
estragos e destruição sem limites e sem que as respostas venham na mesma
intensidade. O temor pelo futuro da região aflige a todos os brasileiros
de verdade. (8).
_________
Notas:
(1):-
Inglês de Souza, in “Carvalhos e Roseiras”, Obras Completas de
Humberto de Campos, Rio/S.Paulo/P.Alegre, W. M. Jackson Inc., 1941, pp.
184/190
2) –
“Prosa de Ficção”, Lúcia Miguel Pereira, Rio, José Olympio, 1950, p. 77.
(3) –
Veja-se o excelente prefácio ao livro “Coisas do Reino de Jambon”, Obras
Completas de Lima Barreto, S. Paulo, Brasiliense, 4a. ed.,
1961, pp. 9/19.
(4) -
“Lideranças do Contestado”, Paulo Pinheiro Machado, Campinas, Editora da
UNICAMP, 2004, p. 213.
(5) –
“Enciclopédia Brasileira Globo”, P. Alegre, 1971, 12a. ed.,
Vol. III.
(6) –
“Noções de História das Literaturas”, Manuel Bandeira, S. Paulo. Cia.
Editora Nacional, 1954, Vol. II, pp. 114/116.
(7) –
“História da Inteligência Brasileira”, Wilson Martins, S.Paulo,
Cultrix/EDUSP, 1977, Vol. III, pp. 504/510 .
(8) – “O
Liberal”, Belém, 10/04/2005, p. 4; “O Estado de S. Paulo”, S. Paulo,
04/04/2005, p. 2.
(03 de fevereiro/2007)
CooJornal no 514