Enéas Athanázio
PASSARELAS AMAZÔNICAS
|
|
Diário de uma
expedição à floresta (Jandira e Enéas – Maio de 2001)
Dia 11, 6a f.
Acordamos pelas 4h para chegar a tempo no aeroporto. O
carro da agência “Multinvest” nos esperava. Partimos de Navegantes pelas 6h30
com destino a Porto Velho (RO), fazendo as complicadas conexões em São Paulo e
Brasília, esta bastante demorada, e uma escala em Cuiabá. Chegamos à capital
de Rondônia pelas 15h, totalizando cinco horas e meia de voo, cruzando
parte de SC, o Paraná, São Paulo, parte de Minas Gerais, o Distrito Federal,
Goiás e Mato Grosso. Viajamos em aviões “Focker 100” e “Airbuss”, todos da
TAM. Desembarcamos no Aeroporto de Belmont, bonitinho e acolhedor. Viajou
conosco, a partir de Brasília, o senador Pedro Simon, tendo se hospedado no
mesmo hotel. Agia sempre de modo tranquilo, o que indica que a gesticulação
usada na tribuna é mesmo teatro. Entre Cuiabá e Porto Velho conversei muito
com um Daniel Machado, proprietário de empresa de ônibus, e “ele já queria me
levar para compadre” (observação de Janda). Ficamos amigos, trocamos
endereços, ele nos ofereceu a casa em Manaus, onde reside. Aprendi com ele
algumas coisas sobre a região. Sobrevoamos longos trechos de selva, onde só se
via o verde do matagal e uma rede de rios. Vez por outra uma estrada de terra
vermelha que parece uma cicatriz no chão. Se não erro nas contas, percorremos
4.400 km! Uff!
Ficamos hospedados no “Hotel Vila Rica” (Apt. 620), na
principal avenida de Porto Velho. É excelente, inclusive o restaurante; o
tratamento é perfeito. Centraliza as atividades sociais e culturais da cidade.
Havia festas, reuniões e uma exposição de artes plásticas bastante visitada.
Bonito, decorado com motivos e artesanatos locais, as garçonetes trajadas à
moda amazônica (batemos fotos com elas). Comidas típicas, peixes de água doce
e sucos de frutas regionais. Enfim, um ambiente agradável.
À noite,
após o jantar, andamos pelo centro da cidade. Ela é feia, baixa, com avenidas
longas e retas, mas limpa. Para uma cidade amazônica, tem pouquíssimas
árvores. Os “cortadores de árvores” que eram degredados de Portugal devem ter
feito estágio por lá. Tem cerca de 700.000 habitantes, muito mais que qualquer
das nossas. Fomos ao único “shopping”, muito modesto, bem na frente do hotel.
Tem universidade, seis estações de televisão e quatro bons jornais: “Alto
Madeira” (já publicou coisas minhas), “Estadão do Norte”, “Folha de Rondônia”
e “Diário da Amazônia.” Comprei todos e os examinei no hotel. Foi um dia
repleto.
------------------------------------------------ Dia 12,
Sábado.
Pela manhã, andanças a pé pela cidade. Percorremos o centro e
visitamos bairros. Tem um comércio ativo mas sem luxo. Vendem cabras,
galinhas, pássaros, cachorros e gatos na rua. Muitos tipos de peixes e camarão
à venda, frutas e produtos locais. Existem diversas feirinhas que oferecem
badulaques. Fazemos algumas compras e visitamos bancas de jornais, muito mal
instaladas. O sol é de rachar catedrais, como dizia Nelson Rodrigues. E o
calor é reforçado pela ausência de árvores.
Almoçamos no hotel, onde
serviram uma tremenda feijoada completa, com certeza “muito adequada” ao
calor. Como é tradicional na cidade, o povo acorre em massa. O clima do
restaurante era de festa.
À tarde, novas andanças, agora de carro. O
motorista, Marcelo, fala pelos cotovelos. Visitamos restaurantes e bares da
margem do imenso rio Madeira, os “points” da capital, bem arborizados e com
belíssimas vistas. Fomos à morada dos índios “guajará” (e outras sub-tribos),
conversamos bastante com eles, fizemos algumas compras de artesanato, como
brincos, colares, cocares. Pedi que falassem a língua nativa: é ininteligível
aos nossos ouvidos, toda consonantal, sem vogais. Janda, por brincadeira, se
propôs a comprar uma indiazinha de três meses, que estava completamente nua,
mas uma menina correu logo para pegá-la e a mãe exclamou de pronto: “Faça
uma!” Não tardou e os meninos começaram a tocar nossos braços, pernas,
cabeças, e lembrei que Darcy Ribeiro escreveu que índio não sabe conversar sem
tocar no interlocutor, gosta de tocar nos outros. O cacique nem se dignou a
nos cumprimentar, continuou refestelado na sua rede. Havia vários cachorros,
animais de que gostam. Antes que resolvessem tocar em partes pouco indicadas,
tratamos de partir.
Saindo dali, fomos ter à sede da “Estrada de Ferro
Madeira-Mamoré”, hoje extinta. Existem lá duas locomotivas, marias-fumaças,
uma de modelo americano, parecida com as usadas por aqui, e uma mais possante,
de modelo germânico. Também existe uma litorina fechada, com mecânica Ford e
frente que lembra um modelo antigo dessa marca, além de vagonetes e trilhos.
Tudo está abandonado debaixo daquilo que foi, em tempos melhores, imenso
barracão. Furtam as telhas, as peças das máquinas, os vidros, os trilhos, as
cercas. O local se transformou em antro de drogados e, à noite, nem a polícia
tem coragem de entrar. Calamidade! Uma estrada que custou fortunas, centenas
de vidas, suor e sofrimento, largada ao deus-dará. Até alguns anos uma das
locomotivas fazia passeios curtos por ali, mas um desmoronamento na linha não
permitiu mais a viagem. Outras locomotivas e vagões estão largados em estações
abandonadas do percurso. Fim melancólico da lendária “ferrovia do diabo.”
Visitamos, em seguida, o porto de onde partem os barcos de passeio.
Estivemos num deles, muito grande, feito de boa madeira. Não fizemos o
percurso porque não havia passageiros suficientes. O barco era agradável e
limpo. Saindo de lá, percorremos a feira que fica rente ao cais, local de
reunião de gente mais simples, com barraquinhas que vendem bebidas e comidas.
Tomamos água de coco, bem mais doce que a vendida aqui; a fruta é aberta de
outro jeito. Na barranca do rio a erosão é visível, formando sulcos profundos
nos locais onde tiraram o mato. A terra é arenosa.
Visitamos depois a
catedral, prédio monumental e antigo, de linhas clássicas. O bispo anterior,
já falecido, era catarinense, da família Costa, parece que nascido em Lages.
Lá conhecemos um corcunda falador que trabalha no local há cinqüenta anos – é
o “corcunda da catedral.” Mas não é feio como Quasímodo. Saindo dali, fomos
conhecer o Parque das Seringueiras, muito amplo, arborizado exclusivamente com
essas árvores, bem cuidado, cercado e limpo. Visitamos o porto das balsas para
Humaitá, “última cidade do Amazonas” (como dizem), onde foi prefeito o
escritor Sérgio Olindense, muito amigo de Lima Barreto e tio de meu amigo
Castello Branco. Em meu livro “O Mulato de Todos os Santos” transcrevi uma
crônica dele, em apêndice. Visitamos outros prédios ilustres da cidade,
igarapés onde os peixes pulam sem parar, um trecho preservado da floresta e a
outra parte da capital rondonense.
O condicionador do táxi, muito
forte, gripou a Jandira. As fungações se juntaram às lágrimas provocadas pela
tele-mensagem das filhas pelo dia das mães.
À noite, recebemos no hotel
a visita de Selmo Vasconcellos, carioca lá radicado há 18 anos, jornalista e
poeta, editor da página literária do jornal “Alto Madeira.” Jantou conosco e
batemos longo papo. Tiramos fotos. Ele foi sobrinho de José Mauro de
Vasconcellos, mas não tinha o tio em boa conta, antes pelo contrário. Publicou
coisas minhas. Excelente pessoa. Achei-o muito estressado, precisado de umas
férias. Concluindo: a cidade tem um ar rural e pioneiro, embora seja a
capital.
---------------------------------------------------- Dia
13, Domingo.
Despedidas de Porto Velho. Pelas 7h rumamos para
Guajará-Mirim, no extremo oeste do Brasil, fronteira com a Bolívia. Viajamos
em excelente ônibus da “Eucatur”, pertencente ao grupo paranaense “União
Cascavel.” A estrada é péssima, uma buraqueira infernal, o retrato acabado da
“já era FHC”. Passamos por Jaci-Paraná e Vila Nova, lugarejos perdidos no
ermo, embora municípios. O desmatamento na região foi violento. As matas foram
queimadas sem dó e nem piedade, com as árvores em pé, do que resultou a
presença lúgubre de troncos calcinados, com os galhos abertos, como braços
implorantes. Um espetáculo feio, revelador de absoluta ausência de consciência
ecológica e total insensibilidade. E o pior é que o resultado parece ter sido
pífio, pois as fazendas são pobres, mal instaladas e despovoadas de gado. Tudo
indica, a julgar pelos nomes que ouvi, que os queimadores de mato são os
mesmos, ou descendentes, dos que devastaram o Rio Grande do Sul, o nosso
oeste, o norte do Paraná, o Mato Grosso e agora andam por lá na mesma faina
destruidora em conivência, é claro, com autoridades e funcionários corruptos.
Comenta-se que o valor da propina corresponde ao tamanho da devastação. Não
vimos queimadas, não era época. Cruzamos rios e igarapés, algumas vezes sobre
pontes que foram da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, “a ferrovia do diabo.” Em
Guajará, a 320 km de distância, começa a selva verdadeira. Chegamos pelas
11h30 e Paulo Saldanha, dono do hotel onde fomos, nos esperava na rodoviária.
Simpático e conversador, é advogado e bancário aposentado. O prefeito da
cidade é catarinense (Celso Pilon).
Pelas 13h, depois de percorrer
22 km de estrada de chão, carroçável, numa caminhonete de tração dupla,
chegamos ao “Pakaas Palafitas Lodge” (Cabana Açaí 1), um hotel em plena selva
amazônica, construído no encontro dos rios Pacaás (águas negras) e Mamoré
(águas acastanhadas), que correm por longo trecho sem se misturarem. Erguido
sobre palafitas de concreto, muito altas, o hotel é coberto de palha nativa e
as cabanas (apartamentos) são interligadas por passarelas elevadas do chão em
até três metros, na altura das copas das árvores, cortando a floresta virgem
que algumas vezes cobre a passagem como um túnel vegetal. Existem, prontos,
vários quilômetros de passarelas, umas mais largas, outras mais estreitas,
estendendo-se em diversas direções. As cabanas têm nomes de frutas, árvores e
pássaros amazônicos (bico-de-fogo, açaí, ipê-rosa, trapiá, jenipapo, patoá,
gameleira, ingá, pupunha, buriti etc). Estão prontas 28 cabanas das 50
projetadas. Elas guardam fidelidade às cabanas tradicionais da região,
mantendo a mesma aparência, têm as paredes externas revestidas de uma espécie
de bambu, com coberta e forro de palha, decoradas com artesanatos e objetos
locais. Muitas delas, como a nossa, têm um terraço sobre o rio, de onde se
descortina uma vista maravilhosa e se pode observar os peixes pulando e os
pássaros aquáticos. As cabanas têm todo o conforto dos melhores hotéis, o
restaurante é internacional, embora enfatizando as comidas e bebidas regionais
(peixes como o pirarucu, comidas como a tapioca e o mingau de milho, sucos
como o de cupuaçu etc). O tratamento é esmerado.
Depois do almoço,
percorremos as passarelas em todos os sentidos. Uma vai dar no porto, outra
conduz ao heliporto, uma terceira cruza parte da baía, levantada sobre águas
escuras e passando por matas tão fechadas que são inexpugnáveis, outra
percorre uma floresta de xaxins gigantes, mas todas são cercadas de mato
denso. São feitas de massaranduba, madeira de lei que dura trinta anos exposta
à intempérie, segundo dizem.
Faz um pouco de frio, o vento canta nos
oitões. É estranho, mas temos que nos agasalhar. Informam que a temperatura
baixa a sete graus quando derretem as geleiras andinas e o vento sopra do
oeste. Cai um chuvisco leve, que mal chega a molhar. O silêncio é enorme, só
se ouve o marulhar das águas do rio. Jantamos e depois assistimos a um vídeo
sobre a Amazônia (Rondônia e Roraima), mostrando búfalos selvagens, animais
sem conta, árvores e flores. Muito interessante.
Exaustos de andar e
ver, dormimos ouvindo o cricrilar dos grilos, os gritos da passarada noturna e
o ruído dos peixes que saltam. Às vezes, ao longe, o matraquear de um motor –
é um pescador solitário desafiando a escuridão compacta. Somos os únicos
hóspedes; o povaréu que veio para o dia das mães foi embora, uns de barco pelo
grande rio, outros pela estradinha. O”Pakaas” é nosso, como foi o petróleo!
------------------------------------------------- Dia 14, 2a f.
Logo pela manhã começamos a andar pelas passarelas. É o contato direto com a
selva. Percorremos todas, observando, ouvindo, comentando, fotografando.
Matas, águas, sons, cantos, gritos. Estranhamos não ouvir o bentevi, presente
em todos o lugares por onde temos andado. Árvores, arbustos, cipós,
trepadeiras, espinhos, parasitas, flores, folhas, ninhos – um emaranhado
intransponível. Alguém a pé, perdido ali, estaria morto.
Almoço no
hotel (bobó de pirarucu com camarão de água doce, tapioca, queijo caseiro,
torta de coco e suco de cupuaçu). Reforçados, tratamos de aproveitar o tempo.
“Seu” João, primo do proprietário (toda a equipe é da família), nos leva a
Guajará-Mirim. Fazemos a travessia do Mamoré num barco de bico chato e com
coberta e sanefas para o caso de chuva ou vento – são as “chatas”. Têm
capacidade para 15 passageiros. A travessia é feita em sentido enviesado,
evitando enfrentar a parte mais larga do rio. Nunca dizem “atravessar”, mas
“fazer a travessia.” Os barcos estacionam e partem na ordem de chegada, como
os táxis, e só levam passageiros, retornando vazios. Forma de conciliar os
interesses. A viagem leva uns dez minutos. Em Guayramerin, na Bolívia,
somos cercados por taxistas, motoqueiros, vendedores e guias na estação das
barcas. Escolhemos o Alexander, piloto de uma das muitas motos com charretes
para duas pessoas e tolda, fabricadas no Peru. Percorremos a cidade, visitando
praças, avenidas, lojas, feiras, locais de interesse. Quase não existem
carros, imperam as motos de todos os tipos e esses “riquixás” motorizados.
Compramos cartões, jornais, alguns objetos e tecidos. Tiramos fotos diante da
prefeitura, tendo acima das cabeças o pavilhão tricolor boliviano tremulando
ao vento. Alexander fala bem o português e sabe tudo do Brasil, em especial do
nosso futebol, que conhece melhor que eu. As feiras, ruas, lojas e mercados
são limpos e o povo é muito amável no trato. O dono de uma lojinha, que se
dizia “quechua”, fala um pouco na língua nativa: ininteligível. A cidade mais
próxima é Riberalta, a uns 80 km de distância, que pode ser visitada em ônibus
de linha da “Eucatur”, partindo de Porto Velho. A cidade tem ruas largas, é
bem arborizada e a ausência de carros lhe dá um ar de tranquilidade. A
presença de brasileiros é constante, não constitui novidade. A cidade vive
muito mais em função do Brasil que do Altiplano, onde estão La Paz e os
centros mais importantes.
Voltando a Guajará-Mirim, visitamos a Praça
do Porto, local bonito, onde estão hasteadas as bandeiras do Brasil e da
Bolívia. Nela estão duas locomotivas da extinta Estrada de Ferro
Madeira-Mamoré, de números 17 e 20. Ambas estão ao relento, cercadas de capim
e enferrujando. Êta Brasil! Visitamos depois o Museu Histórico, instalado na
antiga estação da ferrovia, e que possui um belo acervo. Lá existem um jacaré
e um boto empalhados, em tamanho natural, e uma sucuri (anaconda) com 12
metros de comprimento. Existem relógios, sinos, seletivo, lanternas e outros
petrechos que foram da ferrovia, além de um sem número de coisas
interessantes. É bem visitado, a julgar pelas pessoas que haviam estado lá
naquele dia e assinaram o livro de presenças.
Já no carro, percorremos
boa parte da cidade. É baixa, com ruas largas e longas, bem traçada, mas mal
cuidada. Tem mato nas sarjetas, lotes baldios, material de construção nas
calçadas. O prefeito catarinense assumiu há pouco e a população lhe dá um
crédito de confiança. Espero que não esteja enganada.
À noite, no
hotel, realizamos algo impressionante: a observação dos jacarés. Acompanhados
de dois “práticos”, munidos de boas lanternas, percorremos as passarelas que
ficam sobre a baía na tentativa de ver os sáurios em seu “habitat.” Caminhamos
e caminhamos, para cima e para baixo, atentos ao menor ruído, mas a sorte não
nos ajudou e nada vimos. Jandira sentiu muito medo mas, como boa Ribas, nos
acompanhou na aventura até o fim. De fato, andar pelas passarelas à noite,
naquela escuridão de breu, compacta e impenetrável, é assustador. Com aquele
friozinho – dizem os entendidos – os jacarés se retraem. Azar nosso!
Voltando à cabana, ficamos um tempão sentados no terraço sobre o rio. A
escuridão é de “black-out”, nada se vê. O rio calmo corre em silêncio, chegam
até nós os sons indistintos da mata, caem na água as frutinhas das árvores e
os peixes saltam para pegá-las. Muito longe, o motor de algum pescador que não
teme a noite.
Durante o dia barcos de vários tipos, grandes e pequenos,
sobem e descem pelo rio. É a estrada líquida dos moradores.
-------------------------------------------------- Dia 15, 3a f.
Pela manhã andamos pelas passarelas. Desta vez tivemos mais sorte porque
observamos um cardume de botos brancos (existem os rosas, mais raros) se
exibindo nas proximidades. Enormes, nadavam à flor da água, com os dorsos
lisos brilhando ao sol. O boto é respeitado por todos, ninguém o maltrata. Faz
parte do folclore amazônico. Segundo a lenda, ele se transforma em galante
rapaz, seduz e engravida as moças. Quando o filho não tem pai conhecido, é
chamado de “filho do boto”. Excelente explicação para alguma escorregadela.
Depois de muito andar, tomei um longo banho solitário de piscina (fiquei
mais de uma hora dentro da água). Mergulhei, nadei, bracejei. A piscina é
linda, à beira do rio, embora em nível mais elevado, e a vista é maravilhosa.
Levei uma “torrada” como poucas, o sol tropical é de lascar! Janda, enquanto
isso, se refestelava numa espreguiçadeira, bebericando sucos típicos.
No almoço, feito a capricho pelo mestre-cuca Geraldo, baiano bom de papo,
saboreamos um bom pirarucu e cocada branca. Delícia.
Pelas 15h
iniciamos um passeio emocionante: a subida do rio Pacaás Novos numa
“voadeira”, como eles chamam as lanchas. Dotada de possante motor de popa,
desenvolve 70 km por hora e singra as águas “voando.” Pilotada por um
“prático”, subimos pelo rio de águas negras, embora límpidas, no qual não se
vê viv’alma ou vestígio humano. Ao contrário dos nossos, nele não boiam latas,
plásticos ou papéis. É profundo e suas águas espelhadas refletem a vegetação,
criando efeitos curiosos. Aves aquáticas voam por ali. Apenas a natureza em
estado puro. Vão conosco o Geraldo, cozinheiro, e o piloto.
Depois de
muito navegar, ancoramos na morada de um sitiante ribeirinho, “seu” Chico
Maturana. Hospitaleiro, ele nos recebe com alegria e oferece café (“comprado”
– faz questão de informar). Tinha outras visitas, “seu” Raimundo, a esposa
Nilza e um filho, que moram quatro horas rio acima e voltavam de Guajará.
Pessoas amáveis. “Seu” Chico diz que é índio, mas esqueceu a língua nativa,
criou-se com uns padres. Em compensação, sabe palavras de latim! Está com a
mulher doente e luta sozinho pela sobrevivência.
Tem duas casas,
próxima uma da outra, no estilo das cabanas tradicionais, cobertas de palha,
sem divisões internas e apenas com as paredes indispensáveis à defesa das
chuvas e dos ventos. Uma é a cozinha, onde prepara os alimentos, guarda os
petrechos e passa parte do tempo; na outra ficam o quarto de dormir e uma
espécie de área externa. Mais para baixo fica a “casa da farinha”, um telheiro
onde estão o forno e a prensa destinados à fabricação da farinha, o “pão do
indígena”. Lembrei outra vez de Darcy Ribeiro explicando esses detalhes em
suas obras.
Através de uma picada fechada entramos fundo na mata em
direção às roças do sitiante. Nela quase não penetra o sol. Cruzamos
plantações de mandioca viçosa, bananeiras, milho, feijão e hortaliças. No
pátio da casa há um pomar com cajueiros, goiabeiras e árvores frutíferas da
região. Como a erosão lava o húmus, ele é obrigado a adubar, espalhando o
adubo à mão, depois de revolver a terra com a enxada. Um trabalho árduo, que
me deixou penalizado da sorte daquele brasileiro. Deixei com o hoteleiro um
dinheirinho para ele. Galinhas e cachorros não faltam. Tiramos fotos (pediram
que enviasse cópias, o que farei amanhã) e nos despedimos daqueles irmãos
perdidos num recanto da floresta sem fim. Reiniciando a subida do rio, “seu”
Raimundo abanava para nós.
Ao entardecer, com o sol se pondo, iniciei
uma caminhada solitária pela passarela do xaxim, a mais próxima do chão e
também a mais escura. Jandira não queria ir, mas também não queria ficar;
acabou ficando. Foi impressionante! Bichos grandes corriam por baixo da
passarela (antas, pacas, cotias, tatus, tatetos, tamanduás?), pássaros
levantavam voos pesados, assustados com minha presença, rugidos fortes se
ouviam mais longe (bugios, guarás, jaguatiricas?), guinchos, uivos e roncos
estranhos, pios, estalidos, sons inexplicáveis. Fiquei arrepiado. A floresta é
um mundo repleto de vida invisível!
Soube que o pai do hoteleiro, Paulo
Saldanha Sobrinho, foi historiador. O filho me ofereceu um livro de autoria do
pai: “Fatos, Histórias e Lendas do Guaporé.” Deve ser interessante e vou ler
com atenção. Como se sabe, Rondônia foi o Território Federal do Guaporé.
Cansados, nos recolhemos para afivelar as malas e descansar. Creio que
agora posso dizer que conhecemos um pouco mais do Brasil, desta vez vimos a
Amazônia por dentro. E Jandira foi, como sempre, uma companheira sem igual.
Amanhã começamos a voltar.
---------------------------------------------- Dia 16, 4a f.
Pelas
6h30 servem-nos lauto café na cabana. O próprio Saldanha nos leva a Guajará.
Embarcamos num ônibus da “Viação Rondônia”, bem inferior ao primeiro, e
chegamos em Porto Velho pelas 13h. O motorista da agência nos leva
diretamente ao Aeroporto de Belmont, onde fazemos lanche e comprinhas,
enviamos alguns cartões postais. Em Brasília ficamos no “Hotel Aracoara” (Apt.
805), hotel de aparência boa, mas muito fraco. Aqui houve o único senão da
viagem: a agência não nos esperou e nem levou de volta ao aeroporto. Jantamos
no restaurante do hotel e depois fomos ao “Brasil Shopping”, recém-inaugurado,
mas com poucas opções.
------------------------------------------------
Dia 17, 5a f.
Pela madrugada caiu um violento temporal, com raios,
relâmpagos, trovões e chuva torrencial. Na hora da partida, porém, o tempo
estava bom e a Capital parecia lavada, embora fosse necessário lavar a sujeira
dos políticos. Nem à noite e nem pela manhã havia gente nas ruas; parecia uma
cidade fantasma. Leio na “Folha” artigo sobre Monteiro Lobato e a segurança
pública e fiquei pensando como se escreve bobagem sobre ele. Pobre Lobato!
Em Guarulhos a espera é longa. O mau tempo no Sul atrasa os voos. Na
livraria do aeroporto compro os jornais e um romance de Mário Prata, de quem
nunca li nada em livros, apenas esparsos. Janda escolhe presentinhos para os
netos. Encontro o advogado João Luiz Bernardes, de Blumenau, e batemos bom
papo.
Chegamos em Navegantes pelas 16h. A agência nos esperava. Em
casa tudo bem. Agora toca a desfazer as malas, arrumar as coisas e enfrentar o
monte de correspondência que me espera. Uff!
Pelos meus cálculos,
fizemos 8.800 quilômetros pelo ar (11 horas de voo), 640 quilômetros de
ônibus, 88 quilômetros de caminhonete, cerca de 140 quilômetros de “voadeira”,
sem contar o que andamos nos “transfers”, de táxis, barcos e “riquixás”
bolivianos. Foi uma jornada e tanto!
Deixei por lá alguns livros meus.
Vamos ver se aumenta o meu intercâmbio literário com a região. E fixo aqui,
mais uma vez, o meu agradecimento à “negra” Jandira, sempre ao meu lado nessas
aventuras de andarilho, tudo suportando com serena paciência.
(Revista Rio Total nº 513, CooJornal, 27 de janeiro/2007)
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
Enéas Athanázio,
escritor e Promotor de Justiça catarinense (aposentado), cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
Direitos Reservados É proibida a reprodução deste artigo em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do
autor.
|