Enéas Athanázio
O ROMANCISTA DE MISÉRIA
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Com o mesmo prazer de sempre, acabo de reler o romance “Clara
dos Anjos”, obra póstuma de Lima Barreto (1881/1922), um dos maiores
ficcionistas brasileiros. Só publicada em 1948, essa obra guarda a rara
curiosidade de ter versões como conto, novela e, por fim, romance, todas
integrando as Obras Completas do escritor. Foi, portanto, um texto trabalhado
com esmero e nele não se notam aqueles defeitos mais comuns que os críticos
costumam apontar em suas obras. Memorialista em muitos trechos, neles o
escritor como que se retrata, anotando com minúcias de observação a vida dos
subúrbios cariocas, onde vivia a gente humilde, na periferia da então capital
da República. É visível a intenção de denúncia contida no enredo, apontando a
situação em que vivia toda uma população entregue ao mais completo abandono.
Trata-se de um livro militante, ainda que sem intenção ideológica.
Considerado por muitos “o Machado de Assis dos pobres”, mulato, pobre e
entregue ao álcool, em especial no fim da vida, Lima Barreto morou sempre no
subúrbio, convivendo com a pobreza dos habitantes das “casas, casinhas,
casebres, barracões e choças” afastados do centro, onde imperavam a violência,
a ausência dos serviços públicos elementares e a pobreza generalizada. Sem
acesso à educação, à saúde e aos bens da vida, o sofrimento estava sempre
presente naquelas existências opacas e sem brilho. Desse cenário taciturno
Lima Barreto se tornou o grande cronista e através de suas obras é possível
reconstituir com precisão aquele período histórico de nossa ex-capital. Suas
obras são documentos históricos e, acima de tudo, sociológicos, envoltos em
excelente ficção.
Vítima ele próprio do preconceito de cor, sofrendo
humilhações de toda ordem, Lima Barreto tornou-se, no fundo, um revoltado
contra a discriminação. Muito humilde e tímido para gritar, protestar e
brigar, colocou esse sentimento que lhe pesava na alma nos romances que
escreveu. Em “Clara dos Anjos” a vítima é uma moça pobre, mulata, bonitinha e
prendada, seduzida de forma calculada por um mau-caráter que depois a abandona
à própria sorte: Cassi Jones. Branco, pertencente a uma classe um pouco
superior, o personagem é o retrato do malandro consumado. Vadio, incapaz de
ocupação honesta, perambulava pelas ruas envolvido com modinhas e tocatas de
violão, galos de briga e atividades congêneres, além de especialista na
sedução de jovens desavisadas. Vestido no rigor da moda suburbana,conseguia se
safar da cadeia graças à proteção da mãe e de outras pessoas, embora fosse
renegado pelo pai e as irmãs. Forma ele ao lado dos personagens desajustados
que povoam a obra do romancista, entre os quais o célebre “desmanchador” de
comícios, Lucrécio Barba-de-Bode. Diante dessa situação de inferioridade e
abandono que Lima Barreto denuncia, o sedutor foge com tranqüilidade, deixando
a pobre Clara no maior desespero. Abraçando fortemente a mãe, a moça exclama
“com um grande acento de desespero: - Mamãe! Mamãe! Nós não somos nada nesta
vida!”
Denunciando o preconceito vigente, a condição inferior da mulher
no seu tempo e o abandono em que vivia o subúrbio em geral, Lima Barreto
deixou muito nítida a indicação do futuro carioca. Havia em suas obras uma
como que premonição do que viria a ser o Rio de Janeiro de hoje. Como dizia
Gilberto Freyre, nas grandes obras o tempo é tríbio: revive o passado,
descreve o presente e projeta o futuro.
(23 de
dezembro/2006) CooJornal no 508
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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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