Enéas Athanázio
LIMA BARRETO
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Discriminado e humilhado, Afonso Henriques de LIMA BARRETO (1881/1922) viveu e
morreu sem ter alcançado o reconhecimento de seus contemporâneos. Volvidos os
tempos, no entanto, tornou-se uma das presenças mais fortes do panorama
literário brasileiro. Livros, ensaios, teses, reportagens e artigos sobre sua
vida e sua obra são constantes. Suas tramas ganharam os palcos, a televisão e
o cinema, como o filme “Policarpo Quaresma”, marco da cinematografia nacional,
revivendo o célebre personagem patriótico e quixotesco que acaba morrendo por
amor a este Brasil. As grandes editoras, sucessoras daquelas que lhe deram as
costas e se recusaram a publicar seus livros, lançam hoje, em edições
luxuosas, sucessivas edições das obras de sua autoria, e o fazem sem o menor
pudor. Conhecendo suas raivosas reações diante da injustiça, fico a imaginar o
que diria ao encontrar nas livrarias seus livros revestidos de tanto luxo.
Entre os múltiplos ensaios que têm surgido nestes últimos tempos, merece
referência “Lima Barreto e os romances de crítica social”, de José Ramos
Tinhorão, com o qual este autor abre o livro “A música popular no romance
brasileiro” (Editora 34 – S. Paulo – 2000). Especialista em música popular, o
ensaísta parte de um enfoque diferente, embora se revelando um minucioso
conhecedor da obra de Lima Barreto e de sua personalidade.
Mesmo
entregue ao alcoolismo, em especial nos últimos anos de vida, e carregando a
péssima fama de boêmio e frequentador de tascas imundas, na verdade Lima
Barreto era muito mais um doente, dependente do álcool, que um boêmio. Manteve
intacto até o fim o seu código de ética e morreu preocupado com ínfima dívida
para com um amigo. Jamais perdeu a capacidade de julgar os fatos e se manteve
fiel aos princípios que sempre defendeu. Era, na verdade, aquilo que se
poderia chamar de moralista e até mesmo de puritano. Não se tem notícia de que
tivesse participado de farras desbragadas, onde quer que fosse, muito menos em
locais “pouco recomendáveis.” Conservou grande respeito pelas mulheres, pelos
humildes e pelas instituições. Poderia ser considerado um legalista, tantas
são as vezes em que cita a Constituição e as leis em defesa de seus pontos de
vista. Mas caiu nos braços do álcool e ele o dominou sem remédio.
Todos
esses aspectos são bem apanhados por Tinhorão. Relata ele que Lima Barreto
tinha birra de certa música carnavalesca que celebrava a mulata (“Vem cá
mulata!”) porque sua mãe era mulata e via na letra maliciosa um insulto às
mulatas em geral, entre as quais a própria mãe. Coerente com a moral dominante
na época, Lima não nutria grande simpatia por seresteiros, compositores de
modinhas e tocadores de violão. Seu personagem Cassi Jones, do romance “Clara
dos Anjos”, era um amoral, sedutor de moças pobres e recheado de defeitos.
Ricardo Coração dos Outros, o professor de violão do Major Quaresma, que teria
sido inspirado em Catulo da Paixão Cearense, não era flor que se cheirasse,
ainda que não se saiba se isso aconteceu por mera coincidência ou se Lima
tomou como modelo o célebre Catulo porque, segundo Tinhorão, também não foi lá
um modelo de virtudes. Seja como for, na obra de Lima os tocadores de violão,
os modinheiros e os carnavalescos em geral são, pelo menos, suspeitos.
Diz o ensaísta que Lima tinha “ojeriza pessoal pelos cantores de modinhas
sentimentais, especialistas, a seu ver, em simulações amorosas...” Mesmo
pobre, mestiço, discriminado e doente, “Lima Barreto deixava perceber seu
inegável sentido elitista na avaliação do ofício artístico.” Todas essas
ideias, opiniões e manias seriam registradas também por meu xará Enéas Ferraz,
no livro “História de João Crispim”, espécie de biografia romanceada de Lima
Barreto, hoje uma raridade bibliográfica. Conclui-se, pois, que o falso boêmio
Lima Barreto foi mesmo um conservador, o que não impediu que fosse crucificado
pela boemia que não exerceu. Mas nada disso sequer diminui sua obra que o
tornou o maior e o mais brasileiro dos romancistas, segundo o juízo do severo
crítico Agripino Grieco.
O livro de Tinhorão contém outros ensaios
modelares, entre eles os dedicados a Érico Veríssimo e Afonso Schmidt, boas
referências aos esquecidos Galeão Coutinho e Patrícia Galvão, a Pagu, e o
perfil de Catulo da Paixão Cearense, sempre tão louvado mas tão pouco
conhecido. Especialista em música popular, José Ramos Tinhorão se revela um
excelente crítico literário.
(RT, 16 de dezembro/2006) CooJornal nº 507
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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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