01/10/2023
Ano 26
Número 1.337





ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


LIMA E LOBATO

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal


Ainda não entendi, apesar de tantos anos, o que fascina mais o leitor: a obra ou o autor. É claro que, em princípio, deveria ser a obra, pelas suas qualidades ou pela forma como toca o sentimento do leitor. Nesse caso, os autores mais lidos seriam sempre os melhores, embora essa não seja a regra. Autores de obras que não figuram na primeira linha e que merecem reservas da crítica muitas vezes são os preferidos. Muitos exemplos poderiam ser lembrados. Quando a obra tem qualidade, fala à alma do leitor e, ainda por cima, é de um autor cuja personalidade fascina, juntam-se as condições para a chamada consagração literária.

Dois casos assim são evidentes na literatura brasileira: Lima Barreto e Monteiro Lobato. Ambos são autores de grandes obras e suas personalidades, ainda que muito diferentes, provocam uma permanente curiosidade de leitores e estudiosos, mantendo seus livros sob constante análise e discussão. É tanto o que se escreve a respeito deles que se tornou impossível, mesmo para quem tem os olhos voltados para eles, acompanhar tudo. É ótimo que seja assim nos dias de hoje porque durante os anos autoritários reinava triste silêncio sobre a genial dupla.

Em duas revistas recentes, ambas mineiras, por coincidência, acabam de ser publicados excelentes ensaios, um dedicado a Lima e outro a Lobato, abordando sempre aspectos novos e até aqui não observados pelos demais ensaístas. É curioso observar que sempre se repete que o gênero literário ensaio não tem leitores entre nós e, no entanto, nunca cessam de ser produzidos e publicados. Sinal de que, ao contrário do que se afirma, os ensaios têm público, caso contrário teriam desaparecido de nossas publicações.

A “Revista da Academia Mineira de Letras”, em seu número mais recente (março/maio/2004), publica excelente trabalho de Taílze Melo Ferreira sob o título de “O avesso da fachada: o espaço urbano nas crônicas de Lima Barreto.” Ela se volta para um dos gêneros a que se dedicou o escritor carioca - a crônica, - que também foi romancista, articulista, novelista, crítico, autor teatral e repórter. A ensaísta flagra Lima como flâneur, isto é, andarilho, acometido como foi pela mania deambulatória. Parecia ubíquo, visto em todos os cantos da cidade, andando e andando, sempre com os olhos críticos abertos para a sociedade, depois abordada nas crônicas em que comentava a moda, a corrupção, o formalismo, a linguagem aristocrática e as mudanças sofridas pela cidade com o “bota abaixo” do prefeito Pereira Passos, desalojando os pobres dos cortiços e levando-os a formar as primeiras favelas. Na sua literatura militante, mostrava a fratura exposta da sociedade que habitava a ex-capital federal e, assim, mais uma vez, estava adiante de seu tempo na compreensão dos fatos sociais que resultariam no Brasil problemático de nossos dias.

“Ces Revista”, de 2003, publicação do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (MG), publica excelente ensaio de Maria José de Andrade Barino com o título de “Memórias de menipéia: um corpo cheiroso de saia velha”, em que analisa o livro infanto-juvenil “Memórias da Emília”, de Monteiro Lobato. Ela mostra como pensar na obra do taubateano é pensar em marginalização e em arte carnavalizada, de forma que existem “múltiplas visões do mundo e ideologias presentes no texto lobatiano.” Mostra a profundidade de uma obra às vezes simples na aparência, na qual a crítica atilada descobre nuances e ensinamentos nem sempre percebidos pelo leitor comum. E aí reside a importância da crítica, abrindo os olhos do leitor e ensinando-o a ver.

Ambos são ensaios de qualidade, dos quais dei aqui pálida notícia, mostrando os desafios à argúcia dos intérpretes existentes nas grandes obras da literatura.



(09 de dezembro/2006)
RT, CooJornal no 506



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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC



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