18/11/2006
Ano 10 - Número 503
ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio
GILBERTO AMADO, AINDA
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Meus artigos a respeito de Gilberto Amado (1887/1969) provocaram muitas
manifestações, em sua quase totalidade positivas, revelando que o
sergipano ainda tem leitores e admiradores. Algumas, no entanto, revelaram
vívida antipatia contra o memorialista de “História de Minha Infância.”
Dentre estas, a carta curta e seca de um leitor de Brasília, também
escritor, diz o seguinte: “Tudo bem, ele merece todos os elogios etc. Só
faltou você mencionar que o diplomata, escritor, deputado e senador, era
também um criminoso, já que ele assassinou um cidadão em seu Estado, lapso
imperdoável para um promotor público.”
Ora, ora, pois, pois. O puxão de orelha revela que o missivista não
conhece os fatos; ouviu o galo cantar mas não sabe onde. Não haveria razão
para relembrar evento tão amargo numa série de artigos sobre a obra e as
realizações culturais do escritor. Seja como for, não desconheço o trágico
capítulo e li tudo que encontrei a respeito, além de ter conversado com
pessoas que o conheciam em detalhes. Para escrever sobre o fato, vou me
valer de autor que não foi biógrafo de Gilberto Amado e que, a rigor, não
existe, e nem publicou ensaios sobre ele, presumindo, portanto, seja
insuspeito. Como advertiu o crítico Wilson Martins, certos biógrafos
tendem à hagiografia.
Gilberto Amado não costumava abdicar de suas posições ou de dizer o que
pensava, mesmo que isso desagradasse a muitos. Como crítico, ousou fazer
restrições à literatura de Coelho Neto e atacou Rui Barbosa por pretensões
políticas que considerou injustificáveis, atitudes inconcebíveis na época,
um quase delito de lesa-pátria. Escrevia em “O País”, de João Lage, como
sucessor de Cármen Dolores, jornal de grande circulação e prestígio, e
contava com a franca simpatia de Pinheiro Machado. Muito jovem, é natural
que despertasse invejas e ressentimentos. Para muita gente, é difícil
tolerar o sucesso alheio.
Tempos antes havia criticado obras de Elóí Pontes, romancista, e Lindolfo
Collor, poeta, autores que julgava sofríveis e que, no entanto, recebiam
“um chorrilho de elogios.” Irritado, Gilberto escreveu o artigo “É
demais!”, denunciando a falsidade dos que aclamavam como gênios “simples
espíritos medíocres, incapazes de um esforço para além da mediania.”
Palavras que o tempo só fez ratificar, uma vez que ambos os criticados não
sobreviveram na literatura. Na tarde do mesmo dia, quando caminhava pela
Rua do Ouvidor em companhia de João do Rio, Gilberto foi surpreendido pela
chegada de Collor que contra ele investiu de bengala em punho, ameaçando
espancá-lo. Em seguida surge Elói Pontes, por acaso ou em combinação com o
outro, e também investe contra o articulista. Diante da agressão iminente,
Gilberto sacou do revólver e disparou um tiro que a ninguém atingiu e logo
em seguida outro, este para o ar. Formou-se grande aglomeração de
populares e os atacantes, esbaforidos, trataram de se safar. O fato teve
intensa repercussão, inclusive na imprensa, mas deixou claro que o
sergipano, embora pequeno e magrinho, não era de matar com a unha.
Formaram-se, a partir dali, duas correntes: uma pró e outra contra
Gilberto. Nesta última alistou-se como voluntário o poeta mato-grossense
Aníbal Teófilo, inimigo gratuito do escritor e que passou a exercitar
contra ele uma série de ofensas, provocações e ameaças em todas as
ocasiões. “A mesma intolerância em relação ao novo deputado por Sergipe
manifestava o mato-grossense Aníbal Teófilo, compadre e comensal de Coelho
Neto, muito grato a este, a quem devia o emprego de secretário do Teatro
Municipal. Autor de escassa obra literária, tornara-se famoso por alguns
sonetos, principalmente “A Cegonha”, que rapidamente se popularizara.
Verdadeiro atleta, de porte gigantesco, era um tipo truculento e
desafiador. Habituado a intimidar adversários, estava disposto a humilhar
o desafeto pequeno e fraco, onde quer que o encontrasse.” São palavras de
R. Magalhães Júnior, pesquisador sério e respeitado, fundadas em elementos
criteriosos e em peças do próprio inquérito policial (“A Vida Vertiginosa
de João do Rio”, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, pág. 237).
Eis o adversário temeroso que o destino colocou no caminho ascendente do
jovem escritor, jornalista e deputado federal por Sergipe. Assombrado com
o impasse, Gilberto tratou de evitar certos lugares e suas memórias
registram a angústia que a situação provocava. Noites sem dormir,
ausências à Câmara, nervosismo, fugas dos amigos. Pediu a intervenção de
conhecidos comuns mas de nada adiantou, as ameaças prosseguiam na rua, nos
bondes, nas redações – e ele via “as risadinhas em cada rosto.”
Apavorava-o a hipótese de ser puxado pelas orelhas, de receber um
puxavante em público, à frente de todos. Dias angustiantes se escoam
devagar.
O mundo girava, indiferente ao drama do sergipano. Era o período da
“epidemia” das conferências literárias, iniciadas por inspiração de
Medeiros e Albuquerque em seu retorno da França, e que se encerraria
exatamente no dia fatal. Faziam-se palestras sobre tudo: A Palavra,
Beijos, Os Mortos, A Água, O Riso, O Diabo, A Beleza, A Graça, O Dinheiro,
O Fogo, A Esperança, O Silêncio é de Ouro, A Dor, Os Poetas do Sertão,
Casar é Bom, Mas não casar é Melhor e por aí além. Agripino Grieco em uma
de suas entrevistas relembra essa fase da vida carioca em que o público
acorria para ouvir seus palestrantes mediante entrada paga.
Até que, em 19 de junho de 1915, um sábado à tarde, terminava mais uma
dessas conferências no salão nobre do “Jornal do Commercio” e os ouvintes
se retiravam. Entre eles estava o deputado sergipano, discreto e
silencioso, com certeza ressabiado de encontros indesejáveis. Trazia pelo
braço a jovem esposa, grávida de seis meses, e estava acompanhado da
cunhada, do irmão Gildo, ainda colegial, e de Paulo Hasslocher, seu sócio
na banca de advocacia. Míope como era e na penumbra do local, pareceu-lhe
que alguém o saudava e respondeu sem identificar o outro. Seguem-se
minutos decisivos da tragédia que R. Magalhães Júnior assim resumiu: “E
foi então que ouviu isto: - ‘Foi à sua mulher que eu cumprimentei! Não a
você, seu...! A você, quando muito, eu puxo as orelhas!’ Disse-o marchando
de dedo em riste, quase tocando o rosto de Gilberto, que não tinha ânimo
para nada, tolhido e desarvorado (...) Fingira, em desespero de causa, não
ter ouvido a nova e injuriosa provocação, e se dirigira ao elevador, mas
Paulo Hasslocher procurou retê-lo, dizendo: - ‘Seu Gilberto, um homem não
suporta isso! Meta a bengala nesse bandido!’ Gilberto se desculpou: -
‘Paulo, eu estou acompanhado de minha família. Que posso fazer? De resto,
não brigarei nunca com esse homem. Devo desprezá-lo sempre. Faça você de
mim o juízo que quiser...’ Foi então que Hasslocher, gaúcho de
temperamento exaltado, dirigiu-se indignadamente a Aníbal: - ‘Você não
pode desfeitear o meu amigo!’ Aníbal bradou-lhe: - ‘Tanto posso que o
desfeiteei! E desfeitearei a você também!’ Atracaram-se. Ao ver o início
de uma luta desigual, Gilberto sacou a arma e atirou em Aníbal. Teve morte
imediata o atleta provocador” (Op. cit., págs. 238 e 239).
O ambiente ferveu e Gilberto foi preso em flagrante. Recolhido ao quartel
da cavalaria da Polícia Militar, lá permaneceu preso até o julgamento. Foi
denunciado por homicídio sem agravantes (simples) e Hasslocher como
cúmplice (co-autor). Submetido a dois júris, foi absolvido em ambos,
isentado, portanto, de qualquer responsabilidade criminal. Não é preciso
ser criminalista para perceber que agiu em estrita legítima defesa de
terceiro e com moderação. Apesar das distorções dos assistentes de
acusação e da pressão de parte da imprensa, o júri popular reconheceu sua
inocência.
Enquanto as ofensas foram contra ele, Gilberto tudo engoliu, procurando
evitar o pior, ainda que mortificado pela injustiça das injúrias. Mas
quando viu seu colega e amigo prestes a apanhar em público e sair
desmoralizado por sua causa, não suportou. Como não tinha experiência no
manejo de armas e mal sabia atirar, a circunstância de acertar a vítima de
forma letal foi fruto de pura casualidade. Como diz a sabedoria popular,
quem não sabe atirar acerta. Anos antes, fôra excluído da linha-de-tiro,
em Pernambuco, porque nunca lograva acertar o alvo. Foi defendido pelo
grande Evaristo de Morais e outros advogados.
Muito conversei sobre o assunto com os amigos Luiz Luna e Joaquim Inojosa.
Ambos conheceram Gilberto Amado de perto, com ele convivendo na atividade
jornalística, e o segundo chegou a ser seu sócio num escritório de
advocacia, conforme relato que me fez. Confirmaram na íntegra a versão que
procurei resumir. Luna ainda afirmou que o sergipano não sabia atirar,
além de ser míope, atribuindo o desfecho à fatalidade. Note-se que ele não
nutria grande simpatia pelo escritor.
Cotejando o relato com outros, constatei não haver discrepância. Assim
aconteceu com o que consta de “Perfil Parlamentar de Gilberto Amado”,
ainda que muito simplificado (Publicação da Câmara dos Deputados –
Brasília – 1979) e com as palavras do próprio Gilberto (“Presença na
Política”, Rio de Janeiro, José Olympio, 1958, capítulo “Terrível Prova”,
págs. 328 a 346).
Conclui-se, pois, que ele não foi um criminoso vulgar mas agiu como homem
naquelas lamentáveis circunstâncias. Não deu início à agressão e tudo fez
por evitar o sangrento desenlace. Mas, convenhamos, não poderia apanhar em
público e dali se retirar com o rabo entre as pernas.
O fato provocou um longo hiato em sua carreira, afastando-o por bom tempo
das atividades mais visíveis. A tragédia deixou fundas cicatrizes em sua
alma. Conta-se que, já bem idoso (faleceu aos 82 anos), ele não a esquecia
e costumava repetir: “Aquele homem roubou a minha solidão!”
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Outras fontes:
Wilson Martins, “História da Inteligência Brasileira”, S. Paulo, Cultrix/USP,
Vol. VI, 1978.
Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa, “Enciclopédia de Literatura
Brasileira”, Rio de Janeiro, MEC, 1990, Vol. I, págs. 202/203.
Raimundo de Menezes, “Dicionário Literário Brasileiro”, Rio de Janeiro,
Editora LTC, 1978, págs. 34/35.
(18 de novembro/2006)
CooJornal no 503
Enéas Athanázio,
escritor e Promotor da Justiça catarinense (aposentado)
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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