28/10/2006
Ano 10 - Número 500
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
MORO ONDE NÃO MORA NINGUÉM |
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Eu trocava pernas pela extensa avenida semideserta de Piçarras. A noite,
ainda jovem, estava agradável e uma leve aragem soprava do mar. Céu claro
e que principiava a ficar pontilhado de estrelas. Foi então que se
aproximou um homem baixote, um tanto gordo, empurrando um carrinho, desses
com rodas de bicicletas, e estacou pouco adiante. Tratava-se de um catador
de papéis e plásticos, dos tantos que não cessam de proliferar nestes
tempos bicudos de desemprego. Arquejante, num jeito cansado, ele se
encostou ao veículo para um descanso, enquanto eu me aproximava.
“Como foi o seu dia?” – indaguei, puxando conversa.
“Mal, muito mal – respondeu ele, levantando pequenos sacos que estavam no
carrinho, coisa leve. – Isso não vai dar nada, nem para comer” – concluiu
em voz baixa.
“É sempre assim?” – perguntei.
“É cada vez pior – respondeu. – Todo dia surgem novos catadores. Logo não
vai dar mais para ninguém.”
Encostou-se outra vez, revelando grande cansaço. Passava as fraldas da
camisa na testa suada, tirava e punha o chapéu furado, pondo à mostra
fiapos de cabelos grisalhos.
“Você mora para aqueles lados?” – apontei para o norte, rumo que ele
seguia antes de parar.
“Não, não tenho morada, não moro em lugar nenhum – afirmou. – Durmo na rua
mesmo, em algum canto. Tenho uns papelões no carrinho, estendo-me neles e
me cubro com um acolchoadinho velho que ganhei...” – E ele me mostrou a
ensebada coberta, um desses acolchoados conhecidos como “pulgueiros.”
“E quando chove?” – continuei inquirindo.
“Aí vou para o cemitério de carros e tento dormir em alguma cabine. Quando
o vigia não permite – tem um que é duro – o jeito é dormir num vão de
porta ou debaixo de alguma marquise. Não tem outro jeito.”
Tristeza enorme me invadia.
“No mês passado – contou – roubaram os pneus do carrinho enquanto eu
dormia. Passei dias com fome porque não podia trabalhar.”
Mundo cão é pouco! – pensei comigo.
“Você não tem família, mulher, filhos? Ninguém?” – inquiri.
“Tenho dois filhos, mas ficaram “grandes”, são doutores, nem sei onde
andam. Nunca se incomodaram comigo.” – Dizia isso sem rancor, em tom
conformista. Que poderia fazer?
“E o Serviço Social não ajuda? Não tem um abrigo provisório ou coisa
assim?”
Ele fez um ar de riso.
“Nada, nada. Só dá passagem de ônibus para ir embora e leva até a
rodoviária.”
“Como agüenta essa vida? – ainda perguntei. – Tem saúde?”
Levantou a camisa fiapenta e mostrou a barriga. Largas cicatrizes marcavam
a pele escura, para baixo e os lados.
“Já fui operado de hérnia, vesícula e apendicite. Agora ando com dores no
peito e tenho sentido falta de ar. Parece que a força começa a faltar” –
arrematou numa fala entrecortada.
Tirei algum dinheiro do bolso e lhe dei uma “mesada”. Pelo menos não
dormiria com fome. Levantou com esforço o carrinho e retomou o caminho
pelo calçamento irregular. Logo adiante entreparou, voltou-se e perguntou:
“O senhor não tem um cantinho para eu dormir?”
Com desolação fiz um gesto negativo. Ele me contemplou por instantes e
seguiu devagar até sumir na escuridão.
(28 de outubro/2006)
CooJornal no 500
Enéas Athanázio,
escritor e Promotor da Justiça catarinense (aposentado)
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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