Enéas Athanázio
A CASA FECHADA
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No seu silêncio abissal, aquela casa atrai muito mais minha atenção do que
se nela houvesse uma banda roqueira em permanente função. Situada nas
redondezas da minha, nada tem de extraordinário ou incomum, exceto o fato de
que permanece sempre fechada, ainda que nela viva um homem. Abre-se a
temporada, os veranistas vêm e vão, seguem-se o outono e as friagens
invernais, o ciclo vital se repete, os dias, os meses e os anos se escoam para
o poço sem fundo do tempo e ela, solitária e silenciosa, permanece fechada.
Construção de dois pisos, em sólida alvenaria, ostenta três janelas na parte
superior e duas outras, separadas por uma porta, no piso inferior. Na única
lateral visível, não encoberta por outras construções, duas pequenas janelas,
estreitas e compridas como seteiras, são o único indício de vida: estão sempre
iluminadas e, às vezes, deixam a impressão de que uma cabeça por elas espreita
em olhares rápidos e furtivos. Na reluzente pintura branca, nem de longe
apresenta aspecto de moradia abandonada. No pátio fronteiro, vazio e desolado,
não há uma árvore, uma trepadeira, um verde, uma flor. E aquele silêncio
permanente me traz à memória, não sei qual a razão, o romance “A Casa
Soturna”, de Charles Dickens, lido na já remota juventude.
Quando
levanto pela manhã e vou à porta para cumprimentar o novo dia ela está
fechada; após o almoço, ao sentar-me na área, ela continua fechada e à noite,
quando me recolho, ela teima em permanecer fechada. As aberturas a que
chamamos janelas, criadas para permitir a renovação do ar, a ventilação, a
penetração benfazeja dos raios solares e a extensão da vista pela paisagem
circundante, inclusive do mar tão próximo, na casa branca parecem pregadas,
parafusadas, herméticas. Imagino cá com os comigos de mim – como dizia
Fernando Pessoa – o ar pesado, carregado de mofo, bolor e poeira velha que irá
lá por dentro. Mas o tempo passa, os dias e as noites se sucedem e o homem
solitário vive na casa misteriosa, talvez tateando na obscuridade reinante,
isolado do mundo e das gentes. Em que se ocupa, o que faz, como preenche seu
tempo constituem mistérios insondáveis. Qualquer indagação aos moradores da
redondeza é respondida com o mesmo encolher de ombros: ninguém sabe.
Tão logo cai a noite e as sombras recobrem a cidade praiana, a casa se
transforma num imenso vulto branquicento e silencioso, mal delineado pela luz
baça da rua. Suas linhas rígidas e retas perdem a nitidez e tudo sucumbe à
escuridão, até que, num renovado indício de vida, as janelinhas laterais,
estreitas e longas como seteiras, se acendem numa claridade fraca e vacilante.
Através delas, em observações ligeiras e furtivas, alguém observa de relance o
que ocorre cá fora, como quem estuda a situação. Em minutos, no mais completo
silêncio, a porta da rua se abre e por ela sai o ermitão que ali vive. Seus
trajes são escuros, de cores neutras, e sua fisionomia não se distingue na
noite densa sob a aba do boné que lhe cobre a cabeça. Cabisbaixo e quieto, em
passos firmes e rápidos, ele se dirige ao orelhão da esquina, de onde dispara
misteriosas ligações, falando na voz baixa de quem não deseja ser ouvido por
intrometidos. Depois, no mesmo andar rápido e medido, se dirige à mercearia
próxima, prestes a encerrar as atividades do dia, e dali sai portando pequena
sacola de compras. A casa branca o engole, a porta se fecha e as janelas
herméticas continuam fechadas.
Tanto a casa como seu único morador
fecharam as janelas de comunicação com o mundo. Fico me indagando se ele terá
fechado também as janelas da alma.
(12 de
junho/2010) RT, CooJornal no 688
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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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