30/09/2006
Ano 10 - Número 496
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
OBSTÁCULO INESPERADO OU O DESAFIO DE UMA ESCADA
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O relógio do carro assinalava a meia-noite quando entramos na pequena
cidade do Planalto. Fazia um frio terrível, daqueles de encarangar, e o
vento gélido, batendo em lufadas, levantava a poeira do chão e alguns
papéis que rodopiavam no ar e desciam um pouco adiante. No céu, uma névoa
branca se adensava e baixava vagarosa sobre a cidade em silêncio.
Procuramos o hotel onde tínhamos reserva, o único da cidade. Rodamos para
lá e para cá e não o encontramos. Nem placas, nem anúncios, nem
indicações. Nada. Não havia viva alma nas ruas, nem mesmo os costumeiros
cachorros sem dono, que deveriam estar enrodilhados em algum canto,
fugindo da friagem. Não havia a quem perguntar. Que fazer? Lembrei-me do
hospital. Lá deveria haver alguém de plantão. O prédio baixo, de um
amarelo escuro, estava imerso em silêncio. Havia luz no saguão mas a porta
estava fechada e ninguém apareceu. Minhas batidas na porta metálica
repercutiam longe e de um jeito lúgubre. Fosse uma emergência, o doente
estaria em maus lençóis.
Desanimado, voltava ao carro quando avistei uma mulher com uma criança
pela mão. Apelei àquela alma salvadora, temeroso de que levasse um susto e
se pusesse a correr. Mas ela parou e explicou que o hotel ficava uns três
quarteirões para dentro, em cima de um posto. Aliviados, rumamos à procura
do hotel encantado. Achamos o posto, em total escuridão, sem nada que
pudesse indicar a existência de um hotel. Numa casa vizinha, um casal
acompanhava nossa movimentação, e saiu à janela.
“Tem que passar diante do posto e dobrar à direita. Ali tem uma portinha
estreita com campainha. É a entrada do hotel!”
Assim fizemos, encontrando a portinha estreita. Mas a campainha? Onde está
que não a vejo? Tateei aos lados, no alto, em baixo, naquela escuridão
impenetrável. Nada de campainha; deveria ser secreta. A solução foi voltar
o carro para a porta, com os faróis altos acesos, e assim localizar,
afinal, o misterioso aparelho, instalado na mais incrível posição. Toquei,
toquei, até que uma janela se abriu e uma cabeça desgrenhada surgiu lá em
cima.
“Temos reserva para esta noite!” – bradei para os céus.
Houve movimentação no alto e o homem voltou à janela.
“Pode estacionar o carro em baixo da cobertura do posto. Mais adiante tem
uma escada para subir ao hotel.”
Retiramos a bagagem, duas malas e uma sacola com calçados e petrechos
necessários, e tratamos de procurar a escada. Para surpresa nossa, nada
ali se parecia com uma escada, a dita cuja não existia. Anda para lá, anda
para cá, no escuro, deparamos com o inacreditável. Tratava-se de uma
escada de metal, em espiral, muito estreita, com corrimões altos e curvas
fechadas, subindo ao lado da coluna do prédio e que parecia rumar ao
infinito, uma vez que seu fim se perdia no breu noturno. Só havia uma
solução: enfrentar o desafio. Como eu e a mala não cabíamos, lado a lado,
nos corrimões estreitos, colocava a mala três degraus acima, depois subia
até ela, e assim até em cima. A operação foi repetida três vezes, até que
toda a bagagem chegasse ao alto. Através de um corredor estreito,
chegamos, por fim, ao apartamento que nos abrigou da intempérie. Havia, no
entanto, compensações: as camas eram boas e os acolchoados de lã tão
grossos e pesados que mal permitiam os movimentos. E o banheiro era
usável.
No dia seguinte, tive que fazer a descida de costas – ou de ré. Colocando
a mala adiante de mim, ela correria descontrola e se espatifaria lá em
baixo. Descia três degraus e puxava a mala, mais três degraus e puxava a
mala. Assim por três vezes.
Esbofado, suado e irritado, mal pude acreditar que estava no carro e de
saída para outras paragens.
Ó Literatura, a que desafios me submetes!
(30 de setembro/2006)
CooJornal no 496
Enéas Athanázio,
escritor e Promotor da Justiça catarinense (aposentado)
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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