06/05/2006
Ano 9 -
Número 475
- A ditadura televisiva
- A voz do vento
- Algum imortal em meio à humana lida... |
Enéas Athanázio
A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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Sustentando que só flanando pelas ruas, em contato direto com o povo, se
pode conhecer uma cidade, o escritor carioca João do Rio publicou, no
início do século passado, um livro tão interessante quanto raro nos dias
de hoje – “A Alma Encantadora das Ruas” (1908). Perambulando sem cansaço
pelas ruas, praças e becos, conseguiu captar a vida urbana ao seu natural,
a fisionomia da cidade, as pequenas profissões e atividades do povo miúdo,
seus dramas, paixões e alegrias, tornando-se um dos mais autênticos
intérpretes da alma carioca e contribuindo para que se tornasse conhecida.
No seu rastro viria, pouco depois, Lima Barreto, pintor de uma paisagem
ocupada por seres sofridos mas que sabem desfrutar os momentos de fugidia
felicidade. E Jorge Amado, mais tarde, prestaria idêntico serviço a
Salvador. Ambas as cidades muito devem à literatura; foi ela que
contribuiu de forma decisiva para que se divulgasse o modo de ser de seu
povo e sua filosofia de vida.
Surge agora, em outro recanto do país, um romancista de fôlego que se
propõe a enfrentar idêntico desafio em relação à sua cidade de Teresina, a
chamada “cidade verde.” Trata-se de Oton Lustosa, escritor piauiense que
acaba de lançar o romance “Vozes da Ribanceira” (EDUFPI – Teresina –
2003), cuja ação se ambienta no bairro do Poti Velho, nos arrabaldes da
metrópole e às margens do Poti, um dos rios que a banham. Escrito numa
linguagem muito pessoal, com estilo próprio, o autor revela desde o início
conhecer com segurança a vida daquela gente e seu modo de agir e pensar,
transmitindo seu texto um retrato autêntico do meio onde batalham pela
sobrevivência os oleiros, artesãos, pescadores, pequenos comerciantes,
passarinheiros, proprietários, canoeiros, violeiros e cantadores, não
faltando malandros, traficantes, jagunços, prostitutas e todo um ror de
figuras entregues às mais variadas e estranhas ocupações. Desse meio
buliçoso, barulhento e colorido ele compõe uma poesia que brota das águas
do rio, do barro, da alma do povo, enfim.
O tema central do romance é desenvolvido em torno da gente humilde que
habita o bairro, vítima da costumeira exploração pelos mais aquinhoados ou
mal intencionados que existem em toda parte. Para complicar o quadro,
surge ali um elemento estranho, perturbando os espíritos e gerando
suspeita, na pessoa do “hippie” oriundo do Recife, cujo passado misterioso
intriga a “autoridade” e fascina o povo. Artesão habilidoso, músico e,
ainda por cima, poeta – reúne tudo que possa inquietar o coração do
soldado que impava de orgulho por ser “nobre e descendente do Visconde de
Parnaíba”, cuja maquinação junto a um investigador que farejava
“subversivos” em todos os cantos acaba por levá-lo à prisão, e, depois, à
fuga para local desconhecido, episódio em que contou com a solidariedade
silenciosa dos moradores do bairro. Além disso, seu porte atlético, suas
tatuagens e seus versos acalentavam os sonhos secretos das moças e
acabaram por seduzir uma radialista cujo programa tinha intensa penetração
popular. Ele “faz um pacto de amor com o rio de águas barrentas”, o que
implica em dizer com o povo ribeirinho.
No desenvolvimento da trama o autor se movimenta com desenvoltura,
colocando no cenário um sem número de outras figuras, situações e
episódios que revelam um mundo ativo e complexo na sua aparente singeleza,
onde explodem conflitos, maiores ou menores, nos quais todos se envolvem,
muitas vezes com paixão.
Entre tais episódios, chamam atenção a rivalidade entre adeptos de crenças
diferentes, esboçada de forma clara na festa de São Pedro, o santo
pescador, e a procissão aquática em que os seguidores de outras seitas não
deveriam participar, ainda que seus santos fossem os mesmos, provocando
intermináveis discussões. A criação da Oficina do Barro, organizando as
artesãs numa espécie de cooperativa que permite a produção de um
artesanato de luxo e a melhoria dos rendimentos das que lidam com a “massa
peguenta do barro.”As “coroas” do rio, onde medram plantas passageiras,
enquanto as águas não vêm, amores fugazes e encontros suspeitos,
observados, talvez, pelo Cabeça-de-Cuia, o pescador Crispim, cuja lenda
povoa o imaginário local. A procissão pelo rio, capitaneada pela majestosa
lancha “Sereia”, luzidia e enfeitada, compondo uma cena de cinema. A
festa, o baile, os desafios dos repentistas, as comidas típicas e as
bebidas fortes, as músicas, o permanente temor das enchentes, a
preocupação com o desmatamento, os incêndios, as invasões de terrenos e a
inevitável presença do latifúndio a sugar arrendatários. Dramas e alegrias
de um povo miúdo e sofrido, ligado ao rio por um amor carnal, físico, e
que fez um pacto de amor com a cidade desenhada no horizonte, da qual
todos se sentem integrantes. Nada escapou ao autor na pintura desse
cenário repleto de vida, luta e esperança.
Acentuando a autenticidade do ambiente, o autor lança mão de termos e
expressões locais, embora bem dosadas, evitando o exagero e a caricatura.
Revela riqueza de imagens, algumas de cunho popular e de uso comum nas
ruas: “todo lorde” (elegante), “alisado de mão” (carícia), “moças
oferecidas”, “o rio a lamber as raízes”, “o rio manso é ginete marchador”,
“em riba das canoas”, “no colo da terra”, “galego”, “quicé”, “gungrene”
etc., e assim fixando ainda mais o romance ao chão teresinense.
Concluindo, direi que o romance de Oton Lustosa é convincente e bem
escrito, contribuindo para que sua cidade seja melhor conhecida e, em
conseqüência, amada. Não temo em afirmar que Teresina ganhou o seu
romance. Como dizia Câmara Cascudo, “bata o Piauí nas tábuas do peito:
ganhou um grande escritor brasileiro!”
(06 de maio/2006)
CooJornal no 475
Enéas Athanázio é escritor
e.atha@terra.com.br
Florianópolis - SC
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