Enéas Athanázio
ALGUM MORTAL EM MEIO À HUMANA LIDA...
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Para arrefecer o orgulho humano há quem recomende visitas periódicas a algum
cemitério, também rotulado de campo santo, necrópole, cidade dos pés juntos ou
setepés. As pessoas saem dali mais humildes e solidárias, embora existam
aquelas que se alegram ao verem seus desafetos estudando a geologia do campo
santo - como dizia mestre Machado. A grande maioria, porém, não costuma
freqüentar os cemitérios, exceto para visitar pessoas queridas ou cumprir
rituais.
Alguns deles, pela grandiosidade, se tornaram atrações
turísticas. “Père Lachaise”, em Paris, “Highgate”, em Londres, e “Arlington”,
em Washington, são visitas obrigatórias. Na entrada do primeiro são vendidos
mapas indicando os túmulos das personalidades que lá repousam. Ele deu margem
a uma das grandes páginas das memórias de Gilberto Amado, o maior memorialista
brasileiro. No de Londres se encontram os restos mortais de Karl Marx, objeto
de intensa curiosidade e constante visitação. O túmulo de Carlos Gardel, em
Buenos Aires, é muito visitado, o que também acontece com o cemitério da
Consolação, em São Paulo, onde repousam Monteiro Lobato e Mário de Andrade,
entre tantos outros. Em certas datas, para lá acorrem escritores,
intelectuais, leitores e admiradores dessas figuras.
Essas recordações
um tanto fúnebres me trouxeram à lembrança o “Sparkenbroke”, de Charles
Morgan, traduzido pelo inesquecível Mário Quintana e publicado na célebre
Coleção Nobel, da Editora Globo. Um dos maiores e mais tocantes romances que
li na juventude e ao qual volto de tempos em tempos. Nele, um escudo esculpido
à porta do túmulo dos Sparkenbroke inscreve versos que imploram a piedade dos
vivos para com os mortos, em palavras que nunca esqueci:
“Algum mortal,
em meio à humana lida, lamenta acaso quem aqui repousa? (...) Amorosos e
moços vida em fora, também já fomos como és agora! Ó tu que te
aproximas, tem piedade, Que aqui se acaba amor e mocidade! E enquanto
arde a tua primavera, Lembra que o frio do inverno inda te espera...(...)
Ó frios ventos hibernais, correi...”
Como uma lembrança puxa a outra,
recordei antiga peça teatral ambientada num campo santo. Tristes em
decorrência do abandono, os “moradores” deixam suas tumbas e se reúnem em
assembleia para darem curso, em conjunto, à tristeza. Choram copiosamente, as
lágrimas amargas escorrendo pela brancura dos mármores. Até que um deles,
ouvindo barulhos, diz: “Esperem, parece que estão vindo nos visitar!” Todos
silenciam, olham cheios de esperança, engolem os soluços, mas é rebate falso.
“Nada disso – diz outro. – Eles se dirigem ao palacete do novo príncipe para
beijar-lhe a mão!” E todos, em conjunto, voltam ao choro convulsivo, soluçando
com redobrada força.
Com um amigo que também já estuda a geologia do
campo santo, eu costumava visitar o cemitério protestante de Blumenau. Rico em
esculturas e arte funerária, sempre florido, ficava livre dos ruídos urbanos e
envolto num silêncio apaziguador. Local propício às orações e devaneios sobre
a vida e seus mistérios, lembrando os entes queridos que já partiram porque
enquanto pensarmos neles, continuarão vivos. Devo reconhecer, porém, que
apreciava mais o pequeno cemitério perdido nos campos de minha terra,
esquecido em meio ao tapete verdejante, onde repousavam seres anônimos a quem
minha visita deveria levar momentos de alegria, ainda que passageira. Pelo
menos eu assim pensava.
(29 de abril/2006) RT, Ano 9, CooJornal nª 474
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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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