Texto arrastado do livro inédito e engavetado Funeral das
elites
- Você por aqui! Executivo de financeira
internacional num funeral home de terceiro mundo?
-
Bem, apesar de não nos vermos havia séculos, eu ainda o
considerava meu amigo... acho que li ou assisti todas as peças
que escreveu, roteirizou, representou... Ele era muito bom
como dramaturgo... coitado, agora, foi-se deste mundo, pobre
Constantino!
- E nós dois, quando nos vimos pela última
vez?
- Última vez? Espera aí. Não nos vimos
pessoalmente: foi num aplicativo pela telinha do celular...
Você desligou de repente dizendo que retornava em cinco
minutos, porque um aplicativo mais moderno mudara
repentinamente a tela e.... Mas isso foi há quarenta e um
dias...
- Não diga isso! A vida pós-moderna moldada
pela tecnologia eliminadora de tempo, distância, verdade,
ilusão, ótica, moral, sonho e o escambau... Parêntese: nós
mineiros, conservadores, ainda usamos essa expressão “e o
escambau" lá em casa! Mas como ia dizendo, esse monstro
apelidado de "Tecnologia” nos absorve totalmente, desculpa a
minha indelicadeza, vivo assoberbado com as traduções para as
editoras, aliás, vivo disso, você sabe...
- Valeu!
- Ainda bem que a mãe Natureza é sabia e não morremos
todos ao mesmo tempo!
- Verdade mesmo... Pois da morte
não temos saída!
- A vida é que só tem uma saída: a
porra da Morte! Enquanto isso a Morte tem várias saídas:
putrefação, embalsamento, cremação, enterro, missa de sétimo
dia. aviso religioso nos jornais, e claro, dependendo do que o
defunto aprontou em vida: o céu, o inferno, o purgatório, a
reencarnação...
- Falando em saída, você sabe que
destino a família vai dar ao defunto, digo, ao nosso amigo
defunto?
- Acho que vai para um tumulo familiar. Há
melhor destino para os mortos?
- Formulei mal a
pergunta... É que hoje em dia há tanta burocracia com os
mortos...
- Bem, fiquei sabendo que a família, digo, as
famílias... pois ele casou várias vezes. Bem, ainda estão
resolvendo o Seguro-Funeral. Talvez precisem fazer exumação de
algum defunto precedente que ainda não completou o tempo
mínimo necessário no mundo dos mortos e enterrados... coisas
tipo assim!
- Nós sabemos que ele era um “galinha"
tremendo, não dispensava as mulheres dos amigos, nem a babá,
nem a faxineira, nem a diarista, nem a vizinha, nem a
cozinheira... E sabemos que o primeiro casamento dele acabou
porque a Mônica, a primeira mulher dele, flagrou o cara dando
receitas eróticas, in natura, à cozinheira...
- Ele
tinha muitas histórias... Lembro que no nosso tempo de
adolescente mais pra adulto do que pra menino, já ensaiando as
suas primeiras peças, a turma toda do teatro comentava que ele
era louco por freiras, mas freiras autênticas - à moda antiga
- que vestiam hábito comprido e usavam aqueles véus caídos...
Vai ver que ele associava os trajes das freiras à magia das
cortinas e camarins do teatro! Todo dramaturgo nasce sonhador,
do contrário não imaginaria as peças! Não à toa, o dramaturgo
espanhol Pedro Calderón de la Barca... falou, disse, escreveu
e representou: "A vida é sonho”
- E diziam também que
quando mais novo, claro, ele tinha uma amante pra cada dia da
semana, e, talvez por isso, também diziam que adorava mulheres
de classe inferior à dele: trepava caixeiras, balconistas,
feirantes, empregadas domésticas, agricultoras-sem-terra,
trocadoras de ônibus, e por aí...
- Mas ele não estava
errado não! Acho que cada um tem que aproveitar ao máximo suas
preferencias sociossexuais durante a vida, porque tudo o que
fomos e fizemos, ou melhor dizendo, todas as que trepamos...
sem querer dar uma de machista... Bem, enfim, o que quero
dizer e que tudo acaba nisso aí em frente: defunto!
-
Mas li num artigo sobre o nosso amigo, já faz algum tempo, não
me lembro onde li isso, bem, diziam que ele era xerófago!
- Porra! Isso é alguma doença?
- Não, não...
xerófago é quem só come frutos e alimentos secos!
- Que
coisa mais extravagante! Vai ver que por isso o nosso amigo
defunto enxergava toda mulher como fruta da vez! Foi melhor
pra ele cruzar logo a fronteira, pois o atual e legítimo
reconhecimento de que homem e mulher têm direitos e deveres
iguais ia metê-lo na cadeia!
Texto extraído do livro "Arrastão de textos"
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
contato@carlostrigueiro.art.br
www.carlostrigueiro.art.br
Direitos Reservados
É proibida a reprodução deste artigo em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do
autor.