Texto arrastado do livro inédito e engavetado Liberdades da memória
Vivi um tempo no Oriente.
Ali, a reverência natural aos mais velhos faz parte da cultura
milenar. No meu pragmatismo ocidental, sem presunção antropológica
ou burocrática, interpretava o costume como honroso reconhecimento
à experiência de vida acumulada.
Não à toa, a vida na
caserna, em qualquer quadrante terreno, constitui repositório dos
segredos e artes milenares da guerra - desfecho das mais antigas e
organizadas manifestações da condição humana e, por isso, diz o
jargão que “antiguidade é posto”.
Quando retornei aos
quadrantes ocidentais, tive muitas oportunidades de refletir sobre
as tentativas epistemológicas para saber explicar a sabedoria da
experiência, porém jamais pude imaginar que encontraria as
melhores respostas aos meus questionamentos no próprio âmbito
familiar.
Sim, tenho por hábito e carinho, visitar minha
mãe nonagenária, quase centenária. Não é nem de longe pessoa
comum. Vive só, faz, lava e passa o que veste, cozinha a sua
comida, limpa o que acha que deve ser limpo em seu pequeno
apartamento deixado por meu falecido pai. Pedala máquina de
costura possivelmente da sua idade. Dorme cedo. Desperta quando
lhe apraz. Fala ao telefone com alguns poucos de seus conhecidos
contemporâneos, e com filhos, netos, sobrinhos. Não tem irmãos
sobreviventes. Não raro vai a pé, ali por perto, comprar o que
necessita nas quitandas do subúrbio onde vive, ou nos raros
armazéns ou bodegas que resistiram às investidas dos
supermercados.
Se algum dos filhos lhe diz que na sua idade
é conveniente (e até imprescindível) manter uma acompanhante ou
empregada fixa, principalmente à noite, rejeita a ideia e muda de
assunto fingindo surdez maior do que a perda comum à sua idade.
Para distrair-se, folheia revistas antigas e cativaram no tempo
certo a sua atenção e, às vezes, algum jornal mais ou menos
atualizado que compra na banca mais próxima. Ouve rádio à moda
antiga: noticiários, previsão do tempo, horóscopo, música popular
ou sertaneja. Raramente liga a televisão. Tem suas próprias
crenças e descrenças, pois mantém no quarto de dormir antigo móvel
tipo santuário com imagens pra lá de antigas, santinhos com
orações no verso e imagens trazidas de templos visitados faz
tempo. Crê em Deus ao seu modo e reza antigas orações.
Nas
paredes da pequena sala, coleciona em painéis desprovidos de
requintes simétricos, dezenas, aliás, centenas de fotografias em
preto e branco ou coloridas, dos familiares de várias gerações a
testemunhar fases distintas da sua vida.
Na parte do miúdo
apartamento que chama de área de serviço e é contígua à pequena
cozinha, distribui em prateleiras seus remédios caseiros: cascas
de laranja da terra, cipó tuíra, sementes de mururé que o seu pai
colocava no copinho de cachaça artesanal “pra matar os bichos lá
por dentro, inclusive reumatismo” antes ou depois das refeições, e
também pó de guaraná ralado em língua de pirarucu seca, sementes
de sucupira e coisas do gênero.
Mas um dos seus mais
surpreendentes comportamentos de que me lembro foi numa de minhas
visitas enquanto conversávamos sobre um pouco de tudo, inclusive
religião. Nascida e criada sob a cultura do catolicismo,
perguntei-lhe se ainda ia a alguma igreja ali por perto.
Respondeu-me que ia poucas vezes à igreja e só ali entrava “quando
não havia Padre”. Diante da singularidade da resposta insisti:
"Mas por que não entra na igreja quando tem Padre?". Ela
respondeu-me do alto da idade da sabedoria: "Padres falam muita
besteira!"
Texto extraído do livro "Arrastão de textos"
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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