(Texto arrastado do meu livro inédito Liberdades da memória)
Doutor Sinfrônio (iniciando a consulta com um tablete à
frente): Boa tarde, Sr. Limaverde, temos nos dedicado no ultimo mês a
temas pontuais como "Datas”, “Estudos”, "Estímulos”, "Manias”, etc. Na
sessão... digo, consulta de hoje, vamos nos dedicar ao tema "Sonhos”.
Claro que todo mundo sonha, é da natureza humana, e está provado que
até alguns animais irracionais sonham também. O senhor tem sonhado
ultimamente com algo interessante ou que o impressionou?
Paciente - Sr. Limaverde (respondendo na bucha): Mas e claro que sonho
e... bem, sonho bastante. Aliás, exatamente ontem, quando acordei fui
anotar no meu diário, pois tive um sonho maravilhoso!
Doutor
Sinfrônio (entusiasmado): Otimo! Então, vamos lá, descreva esse sonho
maravilhoso que mereceu registro no seu diário. E, por minha vez,
anotarei na sua ficha o que me parecer adequado para registro,
impressão e reexame no futuro.
Paciente – Sr. Limaverde
(desconfiado, mas, deixa pra lá...): Sonhei que estava saindo de casa,
e deparava com as calçadas limpas, as ruas lisinhas sem buracos, as
árvores podadas, uma beleza!
Doutor Sinfrônio (entusiasmado):
Continue!
Paciente – Sr. Limaverde (mais a vontade): Continuei
andando no sonho pela rua e reparei que havia chovido à noite, mas os
bueiros estavam desentupidos e não havia poças de água; vi que os
sinais de trânsito, bem, os semáforos estavam funcionando e eram
respeitados por pedestres e motoristas que esperavam a sua vez;
reparei que os motoqueiros andavam em fila atrás dos carros e não
entre os veículos; vi também que os ciclistas trafegavam na mão
correta e não subiam as calçadas nem mudavam de mão; sonhei que nesse
passeio ou saída de casa, os policiais cumprimentavam as pessoas antes
de abordá-las por alguma falta, mas não lhes pediam dinheiro para
evitar multas; não havia bandidos nas esquinas, nem tiros nem balas
perdidas, nem assaltantes trafegando em bicicletas e motos para roubar
cordões, relógios e celulares de pessoas que digitam e fazem selfies
por toda parte; sonhei que ninguém pegava o celular para falar ou
digitar atravessando a rua; também reparei que nenhum motorista de
ônibus ou em carro particular estava digitando no celular ou mesmo
falando enquanto dirigiam; passei pela frente de três ou quatro
agências bancárias e os terminais eletrônicos não estavam com
chupa-cabra e não tinham sido vitimas de hackers, vandalizados ou
explodidos durante a noite e tem mais, no sonho, os passageiros
esperavam os ônibus em fila nas paradas sob marquises e as pessoas se
ajudavam umas às outras na hora de entrar enquanto o motorista cuidava
só de dirigir, pois em vez de leitores eletrônicos de cartões de
passagens, havia cobradores profissionais no assento e lugar
apropriados, recebendo o valor das passagens e dando o troco aos
passageiros... e, por incrível que pareça, os cobradores mostravam boa
vontade aos passageiros e indicavam os lugares disponíveis; também
reparei no sonho que os carteiros dos serviços de correios entregavam
educadamente as correspondências para os porteiros dos edifícios que,
com uniformes limpos, assinavam documentos para as cartas registradas;
e, no final da rua, quase no fim do sonho, os táxis paravam no lugar
apropriado da calçada e os passageiros saltavam exclusivamente pelo
lado do meio-fio e não pelo lado do meio da rua... e...
Doutor
Sinfrônio (sério e anotando alguma coisa): Um momento só, Sr.
Limaverde, dava para perceber que lugar, digo, que cidade era essa do
seu sonho?
Paciente - Sr. Limaverde (meio sem graça): Bem,
doutor, repare que quando comecei a falar sobre o sonho, disse que
estava saindo de casa, e, claro, minha casa é aqui no Rio de Janeiro,
no bairro de Botafogo, aliás, bem perto do seu consultório...
Doutor Sinfrônio (mais sério ainda e anotando numa ficha eletrônica):
Bem, pelo que ouvi, vamos parar por aqui. Estou preenchendo uma
receita de remédios controlados, vou dobrar a dosagem da sua medicação
e triplicar o número de vezes para tomar durante o dia bem como antes
de deitar para dormir, pois concluí que o senhor não teve um sonho,
mas sim um surto psicótico, um delírio pra lá de extravagante e isso
me preocupou. Não precisa pagar a consulta de hoje, porque os remédios
são caros, e vamos nos ver na próxima quinta-feira as 16 horas. Boa
tarde, bom sono de verdade, e bons sonhos, mas sem delírios... nem
surtos...
Texto arrastado do livro "ARRASTÃO DE TEXTOS - Ficção de
Verdade(s)",
publicado pela 7Letras Editora/RJ
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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