16/08/2019
Ano 22 - Número 1.137
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO
Venha nos
visitar no Facebook
|
Do livro "Arrastão de texto - Ficção de verdade(s)
MÃE CEARENSE (preocupada): Doutor, desde
que arribei do Ceará, e vim morar aqui no Rio de Janeiro, costumo trazer
todo ano meu menino pro senhor fazer os exames de rotina e ver se falta
qualquer vacina, remédio pra crescer, ou se ele precisa tomar vitamina.
Mas seria bom mesmo o senhor dar uma aliviada nessa tosse dele, o
coitadinho tosse tanto de noite, e fica chiando o peito que nem macaco
guariba lá da terra dos meus bisavós no interior do Amazonas...
DOUTOR CARIOCA (EXAMINANDO): a pré-adolescência engana muito, mas ele está
bem; peso e altura proporcionais, medidas compatíveis com a idade, está
corado, bem nutrido, músculos em formação arretada como acho que ainda se
diz lá no Ceará, reflexos perfeitos e boa desenvoltura social. E ele me
disse que já leu mais de dois mil livros... Esse menino é um fenômeno! Um
superdotado!
MÃE CEARENSE (Curiosa): Mas Doutor, na verdade, o que
é que diz pra valer essa papelada de testes psicológicos que deixei com o
senhor na última vez que trouxe esse menino pro senhor examinar?
DOUTOR CARIOCA (Sem pestanejar): Não se preocupe, minha senhora! Examinei
bem os resultados dos testes psicológicos efetuados no colégio particular
onde ele estuda e que a senhora me trouxe na visita anterior... Bem, os
resultados são pra lá de excelentes! Os indicadores mostram que ele merece
muitos parabéns e confirmam o que eu já lhe disse, pois, de fato, ele é um
menino superdotado!
MÃE CEARENSE (Insistente): Tudo bem, Doutor,
mas eu quero saber mesmo é sobre essa tosse do menino, e qual xarope o
senhor vai passar pra ele?
DOUTOR CARIOCA (Categórico) Sobre essa
tosse asmática, lembro que ele deve evitar poeira, ambientes fechados, e o
sereno da noite com roupas leves! Se puder tomar uns banhos de mar, correr
na praia ensolarada, respirar o ar das praias, o clima marítimo seria
bom... De todo modo, vou receitar umas pílulas para aliviar a tosse dele
quando tiver crise.
MÃE CEARENSE (APREENSIVA): Doutor, outra coisa,
eu sei que toda mãe protege demais os filhos – ainda mais que ele é filho
único e o pai viaja muito a trabalho. Pois bem, o senhor falou que ele é
superdotado, mas eu acho que ele é superdotado pra outras coisas. Por
exemplo: o menino bole com tudo, e bole demais com as partes do corpo em
transformação, por isso eu estou achando que o peruzinho dele tá muito
grande pra idade... grande demais... O que é que o senhor acha?
DOUTOR (REPREENSIVO): Minha senhora, isso não tem tamanho certo não! E
evite falar desse assunto porque tem uma lei nova aí, a tal lei da
discriminação sobre isso e aquilo... Bem, é que se alguém mal-intencionado
ouvir a senhora falar disso pode até criar problema! Esse menino é
superdotado na inteligência e, com certeza, se estudar bastante vai ter
sucesso em qualquer carreira, talvez chegue a ser um cientista, um
pesquisador, um inventor, um astrônomo, mas só o futuro dirá...
FILHO (Superdotado pensando): O Doutor falou que posso até ser um
astrônomo. Se ele soubesse que pesquisei na internet e da aparelhagem
que montei com tubos de papelão, lentes de segunda-mão e diagramas copiados de
telescópios e lunetas num velho dicionário enciclopédico! Enfim, eu montei
uma luneta especial e mantenho o instrumento às escondidas debaixo da
cama. Quando estou só, pela boca da noite, como ainda se diz no Ceará,
desligo o celular e finjo que vou dormir. Mas, com o rudimentar
instrumento que construí, trago as lonjuras do universo ao alcance da mão.
Um escritor que já li várias vezes acrescentaria: “literalmente”. Pois
bem, no plano sideral vasculho a Via Láctea pelo vão da janela no meu
quarto ou basculante do banheiro. E nos quadrantes aqui da terra, aliás,
da vizinhança, se a ocasião favorece, enveredo o foco das lentes para as
janelas abertas de apartamentos nos prédios da quadra onde agora moramos
em Copacabana, aspirando encontrar Vênus em pelo. Às vezes, logro êxito!
Em seguida ao achado estelar, abaixo a bermuda, a cueca, ou a calça do
pijama, agarro meu cometa na mão, sacudo o astro pra lá e pra cá, até
salpicar o universo de estrelas. Por uns momentos, me desmancho em
nebulosas sensoriais. Descrever todo esse prazer sem imoralidade é coisa
pra superdotado mesmo! Acho que o Doutor tem razão...
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
contato@carlostrigueiro.art.br
www.carlostrigueiro.art.br
Direitos Reservados É proibida a reprodução deste artigo em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do
autor.
|
|